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Eeefm Doutor Francisco De Albuquerque Montenegro
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<p>A Editora Sextante agradece a sua escolha.</p><p>Agora, você tem em mãos um dos nossos livros</p><p>e pode ficar por dentro dos nossos lançamentos,</p><p>ofertas, dicas de leitura e muito mais!</p><p>https://especial.sextante.com.br/cadastroebooks-sextante</p><p>Título original: Mythology</p><p>Copyright © 1942 por Edith Hamilton</p><p>Copyright renovado © 1969 por Dorian Fielding Reid e Doris Fielding Reid</p><p>Copyright da tradução © 2022 por GMT Editores Ltda.</p><p>Publicado mediante acordo com Little, Brown and Company, Nova York, EUA.</p><p>Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob</p><p>quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores.</p><p>tradução: Fernanda Abreu</p><p>preparo de originais: Daila Fanny</p><p>revisão: Hermínia Totti e Luis Américo Costa</p><p>revisão técnica: Cláudio Moreno</p><p>assistente editorial: Livia Cabrini</p><p>diagramação: Ana Paula Daudt Brandão</p><p>ilustrações: Chris Wormell</p><p>capa: Filipa Pinto</p><p>adaptação para e-Book: Hondana</p><p>CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO</p><p>SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ</p><p>H188m</p><p>Hamilton, Edith</p><p>Mitologia [recurso eletrônico] / Edith Hamilton; [tradução de Fernanda Abreu]. - 1. ed. -</p><p>Rio de Janeiro: Sextante, 2022.</p><p>recurso digital</p><p>Tradução de: Mythology</p><p>Formato: epub</p><p>Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions</p><p>Modo de acesso: World Wide Web</p><p>ISBN 978-65-5564-408-1 (recurso eletrônico)</p><p>1. Mitologia. 2. Mitologia clássica. 3. Livros eletrônicos. I. Abreu, Fernanda. II. Título.</p><p>22-77669 CDD: 292.13</p><p>CDU: 2-264</p><p>Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643</p><p>Todos os direitos reservados, no Brasil, por</p><p>GMT Editores Ltda.</p><p>http://www.hondana.com.br/</p><p>Rua Voluntários da Pátria, 45 – Gr. 1.404 – Botafogo</p><p>22270-000 – Rio de Janeiro – RJ</p><p>Tel.: (21) 2538-4100 – Fax: (21) 2286-9244</p><p>E-mail: atendimento@sextante.com.br</p><p>www.sextante.com.br</p><p>mailto:atendimento@sextante.com.br</p><p>http://www.sextante.com.br/</p><p>I.</p><p>II.</p><p>III.</p><p>IV.</p><p>Sumário</p><p>Prefácio</p><p>Introdução à mitologia clássica</p><p>A mitologia dos gregos</p><p>Os autores de mitologia gregos e romanos</p><p>PARTE UM: Os deuses, a criação e os primeiros heróis</p><p>Os deuses</p><p>Os titãs e os doze grandes deuses do Olimpo</p><p>Os deuses menores do Olimpo</p><p>Os deuses das águas</p><p>O mundo subterrâneo</p><p>Os deuses menores da Terra</p><p>Os deuses romanos</p><p>Os dois grandes deuses da Terra</p><p>Deméter (Ceres)</p><p>Dioniso ou Baco</p><p>Como foram criados o mundo e a humanidade</p><p>Os primeiros heróis</p><p>Prometeu e Io</p><p>Europa</p><p>O ciclope Polifemo</p><p>Mitos de �ores: Narciso, Jacinto, Adônis</p><p>I.</p><p>II.</p><p>III.</p><p>IV.</p><p>I.</p><p>II.</p><p>III.</p><p>IV.</p><p>I.</p><p>PARTE DOIS: Histórias de amor e aventura</p><p>Cupido e Psiquê</p><p>Oito breves histórias sobre amantes</p><p>Píramo e Tisbe</p><p>Orfeu e Eurídice</p><p>Céix e Alcione</p><p>Pigmalião e Galateia</p><p>Báucis e Filêmon</p><p>Endímion</p><p>Dafne</p><p>Alfeu e Aretusa</p><p>A busca pelo velocino de ouro</p><p>Quatro grandes aventuras</p><p>Faetonte</p><p>Pégaso e Belerofonte</p><p>Oto e E�altes</p><p>Dédalo</p><p>PARTE TRÊS: Os grandes heróis anteriores à guerra de Troia</p><p>Perseu</p><p>Teseu</p><p>Hércules</p><p>Atalanta</p><p>PARTE QUATRO: Os heróis da guerra de Troia</p><p>A guerra de Troia</p><p>Prólogo: O julgamento de Páris</p><p>A guerra de Troia</p><p>II.</p><p>III.</p><p>IV.</p><p>I.</p><p>II.</p><p>III.</p><p>I.</p><p>A queda de Troia</p><p>As aventuras de Odisseu</p><p>As aventuras de Eneias</p><p>Parte um: De Troia à Itália</p><p>Parte dois: A descida ao mundo subterrâneo</p><p>Parte três: A guerra na Itália</p><p>PARTE CINCO: As grandes famílias da mitologia</p><p>A casa de Atreu</p><p>Tântalo e Níobe</p><p>Agamêmnon e seus �lhos</p><p>I�gênia entre os tauros</p><p>A casa real de Tebas</p><p>Cadmo e suas �lhas</p><p>Édipo</p><p>Antígona</p><p>Os Sete contra Tebas</p><p>A casa real de Atenas</p><p>Cécrops</p><p>Procne e Filomela</p><p>Prócris e Céfalo</p><p>Orítia e Bóreas</p><p>Creúsa e Íon</p><p>PARTE SEIS: Os mitos menos importantes</p><p>Midas e outros</p><p>Esculápio</p><p>As danaides</p><p>II.</p><p>I.</p><p>II.</p><p>Glauco e Cila</p><p>Erisícton</p><p>Pomona e Vertuno</p><p>Mitos breves em ordem alfabética</p><p>PARTE SETE: A mitologia dos nórdicos</p><p>Introdução à mitologia nórdica</p><p>As histórias de Signy e Sigurd</p><p>Os deuses nórdicos</p><p>A criação</p><p>A sabedoria nórdica</p><p>Genealogias</p><p>Os principais deuses</p><p>Descendentes de Prometeu</p><p>Antepassados de Perseu e Hércules</p><p>Antepassados de Aquiles</p><p>A casa de Troia</p><p>A família de Helena de Troia</p><p>A casa real de Tebas e os descendentes de Atreu</p><p>A casa real de Atenas</p><p>Índice remissivo</p><p>Sobre a autora</p><p>Sobre a Sextante</p><p>U</p><p>Prefácio</p><p>m livro sobre mitologia precisa recorrer a fontes muito distintas. Mil e</p><p>duzentos anos separam os primeiros dos últimos autores por meio dos</p><p>quais os mitos chegaram até nós, e há histórias tão diferentes entre si quanto</p><p>Cinderela e Rei Lear. Na verdade, juntar todas elas num único livro é, em</p><p>certa medida, comparável a reunir todas as histórias da literatura inglesa –</p><p>desde Chaucer até as baladas, passando por Shakespeare, Marlowe, Swi,</p><p>Defoe, Dryden, Pope e assim por diante, até terminar, digamos, com</p><p>Tennyson e Browning; ou mesmo, para deixar a comparação ainda mais</p><p>verdadeira, com Kipling e Galsworthy. A coleção inglesa seria maior, mas</p><p>conteria materiais igualmente díspares. Na verdade, Chaucer se parece mais</p><p>com Galsworthy, e as baladas com Kipling, do que Homero com Luciano de</p><p>Samósata ou Ésquilo com Ovídio.</p><p>Diante desse problema, decidi logo de início descartar qualquer ideia de</p><p>uni�car as histórias. Fazer isso seria como reescrever Rei Lear no mesmo</p><p>nível de Cinderela, por assim dizer – uma vez que o procedimento contrário</p><p>seria obviamente impossível –, ou então contar, à minha maneira, histórias</p><p>que não eram minhas e que já foram contadas por grandes autores de</p><p>modos que eles julgaram adequados. Não quero dizer com isso, é claro, que</p><p>o estilo de um grande autor possa ser reproduzido nem que eu devesse</p><p>tentar realizar tal façanha. Minha intenção foi apenas distinguir para o leitor</p><p>os diferentes autores que trouxeram o conhecimento dos mitos até nós. Por</p><p>exemplo, Hesíodo é um escritor conhecido pela simplicidade e pela</p><p>religiosidade; é ingênuo, infantil até, por vezes, cru e sempre muito devoto.</p><p>Muitas das histórias deste livro foram contadas apenas por ele. Ao seu lado,</p><p>há histórias contadas apenas por Ovídio, sutil, re�nado, arti�cial,</p><p>pretensioso e absolutamente cético. Meu esforço foi fazer o leitor perceber</p><p>alguma diferença entre escritores tão distintos. A�nal, quando alguém pega</p><p>um livro como este, não se importa se o autor recontou as histórias de modo</p><p>mais divertido, e sim quanto conseguiu aproximá-lo do original.</p><p>Espero que aqueles que não conhecem os clássicos obtenham, assim, não</p><p>só um conhecimento em relação aos mitos, mas também uma noção de</p><p>como eram os escritores responsáveis por eternizá-los.</p><p>H</p><p>Introdução à</p><p>mitologia clássica</p><p>Outrora, a raça helênica se distinguia dos bárbaros por ter a mente mais</p><p>arguta e mais livre de tolice.</p><p>HERÓDOTO I:60</p><p>á uma crença geral de que as mitologias grega e romana nos</p><p>mostrariam como pensava e o que sentia a raça humana em tempos</p><p>imemoriais. Segundo essa visão, por meio delas seria possível reconstruir o</p><p>�o desde o homem primitivo, que convivia com a natureza em grande</p><p>proximidade, até o homem civilizado, que vive muito distante dela. O</p><p>verdadeiro atrativo dos mitos é que eles nos conduzem de volta a um tempo</p><p>em que o mundo era recente e as pessoas tinham uma conexão com a terra,</p><p>as árvores, os mares, as �ores e as montanhas, diferente de qualquer coisa</p><p>que possamos sentir hoje. Somos levados a entender que, quando as</p><p>histórias estavam sendo elaboradas, a distinção entre o real e o irreal ainda</p><p>era pequena. A imaginação era algo vivo, pujante e sem o contraponto da</p><p>razão, de tal forma que qualquer pessoa poderia ver por entre as árvores da</p><p>�oresta uma ninfa em fuga ou, ao se curvar para beber de um lago de água</p><p>límpida, avistar nas profundezas o rosto de uma náiade.</p><p>A perspectiva de voltar no tempo até esse estado deleitável é ressaltada</p><p>por praticamente todo autor que aborde a mitologia clássica, em especial os</p><p>poetas. Nesse tempo in�nitamente remoto, os humanos primitivos podiam</p><p>Ver Proteu surgir do mar;</p><p>Ou ouvir o velho Tritão sua concha soar.[1]</p><p>E por um instante podemos captar, por meio dos mitos criados à época,</p><p>um vislumbre</p><p>– a vida</p><p>de cada uma estava ligada a uma determinada árvore.</p><p>ÉOLO, rei dos ventos, também vivia na Terra. Eólia, uma ilha, era seu lar. Ele</p><p>era, mais precisamente, apenas regente dos Ventos, vice-rei dos deuses. Os</p><p>quatro Ventos principais eram BÓREAS, o Vento Norte, AQUILÃO em Roma;</p><p>ZÉFIRO, o Vento Oeste, que tinha também um segundo nome, FAVÔNIO;</p><p>NOTO, o Vento Sul, também chamado de AUSTER em latim; e o Vento Leste,</p><p>EURO, tanto em grego como em latim.</p><p>Havia alguns seres, nem humanos nem divinos, que tinham na Terra sua</p><p>morada. Os mais importantes eram:</p><p>Os CENTAUROS. Eram metade homem, metade cavalo e, em sua maioria,</p><p>criaturas selvagens, mais animais do que humanas. Um deles, contudo,</p><p>QUÍRON, era conhecido por toda parte devido a sua bondade e sua</p><p>sabedoria.</p><p>As GÓRGONAS também viviam na Terra. Eram três – Medusa, Esteno e</p><p>Euríale –, duas delas imortais. Eram criaturas aladas semelhantes a dragões,</p><p>cujo olhar transformava homens em pedra. Seu pai era Fórcis, �lho do Mar</p><p>e da Terra.</p><p>As GREIAS, irmãs das Górgonas, eram três mulheres grisalhas que dividiam</p><p>um único olho. Elas viviam na margem mais distante do Oceano.</p><p>As SEREIAS viviam numa ilha no meio do mar. Tinham vozes que</p><p>enfeitiçavam e seu canto atraía os marinheiros para a morte. Não se sabia</p><p>qual era a sua aparência, pois ninguém que as viu jamais retornou.</p><p>Muito importantes, mas sem morada atribuída nem no céu nem na</p><p>Terra, eram as MOIRAS, PARCAS em latim, as quais, segundo Hesíodo,</p><p>atribuem o mal e o bem aos homens quando estes nascem. Eram três: Cloto,</p><p>a Fiandeira, �ava o �o da vida; Láquesis, a Distribuidora, escolhia o destino</p><p>de cada homem; e Átropo, a que não se podia evitar, carregava “a temível</p><p>tesoura” para cortar o �o na hora da morte.</p><p>OS DEUSES ROMANOS</p><p>Os doze grandes deuses do Olimpo já citados também foram transformados</p><p>em deuses romanos. A in�uência da arte e da literatura gregas tornou-se tão</p><p>forte em Roma que as antigas divindades romanas foram modi�cadas para</p><p>se assemelharem aos deuses gregos correspondentes e eram consideradas as</p><p>mesmas. Em Roma, porém, a maioria tinha nome romano. Eram elas:</p><p>Júpiter (Zeus), Juno (Hera), Netuno (Poseidon), Vesta (Héstia), Marte</p><p>(Ares), Minerva (Palas Atena), Vênus (Afrodite), Mercúrio (Hermes), Diana</p><p>(Ártemis), Vulcano ou Mulcíber (Hefesto), Ceres (Deméter).</p><p>Dois mantiveram seus nomes gregos: Apolo e Plutão, mas o segundo</p><p>nunca foi chamado de Hades, como era comum na Grécia. Baco, nunca</p><p>Dioniso, era o nome do deus do vinho, que tinha também um nome latino,</p><p>Líber.</p><p>Foi uma simples questão de adotar os deuses gregos, pois os romanos</p><p>não tinham deuses de�nidamente personi�cados. Apesar de serem um povo</p><p>de grande sentimento religioso, sua imaginação era pouca. Eles nunca</p><p>poderiam ter criado os deuses do Olimpo, cada qual uma personalidade</p><p>vívida e distinta. Antes de assumirem os deuses gregos, os seus eram vagos,</p><p>pouco mais que “aqueles lá de cima”. Eram os NUMES, que signi�ca poderes</p><p>ou vontades – poderes da vontade, talvez.</p><p>Antes de a literatura e a arte gregas chegarem à Itália, os romanos não</p><p>sentiam necessidade de ter deuses belos e poéticos. Eram um povo prático e</p><p>não ligavam para “Musas coroadas de violetas que inspiram o canto” nem</p><p>para “Apolo lírico a extrair doces melodias de sua lira dourada” nem para</p><p>nada desse tipo. Queriam deuses úteis. Um poder importante, por exemplo,</p><p>era Aquele que Protege o Berço. Outro era Aquele que Cuida da Comida das</p><p>Crianças. Não se contavam histórias sobre os Numes. Na maioria dos casos,</p><p>nem sequer se distinguia se eram masculinos ou femininos. Os atos simples</p><p>da vida cotidiana, porém, estavam intimamente ligados a essas entidades, e</p><p>elas lhes atribuíam uma dignidade que não ocorria no caso de nenhum deus</p><p>grego exceto Deméter e Dioniso.</p><p>Os mais proeminentes e reverenciados de todos os Numes eram os</p><p>LARES e os PENATES. Toda família romana tinha um Lar, que era o espírito de</p><p>um ancestral, e vários Penates, deuses do fogo da casa e guardiões da</p><p>despensa. Eles eram os deuses da família, pertencentes apenas a ela,</p><p>realmente a parte mais importante dela, os guardiões e defensores de toda a</p><p>casa. Não eram venerados em templos, mas somente na casa, onde parte da</p><p>comida lhes era oferecida a cada refeição. Havia também Lares e Penates</p><p>públicos, que faziam pela cidade o que aqueles faziam pela família.</p><p>Também existiam muitos Numes relacionados à vida doméstica, como,</p><p>por exemplo, TÉRMINO, guardião das fronteiras; PRÍAPO, causa da fertilidade;</p><p>PALES, fortalecedor dos rebanhos; SILVANO, ajudante dos agricultores e</p><p>lenhadores. Seria possível fazer uma longa lista. Tudo que havia de</p><p>importante em uma fazenda �cava sob os cuidados de um poder benévolo,</p><p>para o qual nunca se imaginou uma forma de�nida.</p><p>SATURNO era originalmente um Nume, o protetor dos semeadores e da</p><p>semente, assim como sua esposa, OPS, era a ajudante da colheita. Numa</p><p>época mais tardia, dizia-se que ele era equivalente ao Cronos grego e pai de</p><p>Júpiter, o Zeus romano. Saturno então virou uma personalidade e várias</p><p>histórias foram contadas a seu respeito. Em homenagem à Idade de Ouro,</p><p>quando ele reinava na Itália, a grande festa da Saturnália ocorria anualmente</p><p>durante o inverno. A ideia era que a Idade de Ouro voltava à Terra pelos dias</p><p>que durava a festa. Nenhuma guerra podia ser declarada; escravos e</p><p>senhores comiam à mesma mesa; execuções eram adiadas; era uma</p><p>temporada de presentes; o festival mantinha viva na mente dos homens a</p><p>ideia de igualdade, de uma época em que todos estavam no mesmo nível.</p><p>JANUS também foi originalmente um Nume, “o deus dos bons começos”, que</p><p>certamente resultarão em bons �nais. Foi personi�cado até certa medida.</p><p>Seu principal templo em Roma era orientado de leste a oeste, onde o dia</p><p>nasce e termina, e tinha duas portas, entre as quais �cava sua estátua de duas</p><p>faces, uma, jovem; a outra, velha. Essas portas só �cavam fechadas quando</p><p>Roma estava em paz. Nos primeiros setecentos anos de vida da cidade,</p><p>�caram fechadas três vezes: durante o reinado do bom rei Numa; após a</p><p>primeira Guerra Púnica, quando Cartago foi derrotada em 241 a.C.; e</p><p>durante o reinado de Augusto, quando, segundo Milton,</p><p>Nenhum som de guerra ou batalha</p><p>Se ouviu no mundo inteiro.</p><p>Naturalmente o seu mês, janeiro, dava início ao ano.</p><p>FAUNO era um neto de Saturno. Era uma espécie de Pã romano, um deus</p><p>rústico. Era também um profeta e falava com os homens enquanto eles</p><p>dormiam.</p><p>Os FAUNOS eram os sátiros romanos.</p><p>QUIRINO era o nome da versão divina de Rômulo, fundador de Roma.</p><p>Os MANES eram os espíritos dos mortos bons no Hades. Às vezes eram</p><p>considerados divinos e venerados.</p><p>Os LÊMURES ou LARVAS eram os espíritos dos mortos maus e muito temidos.</p><p>As CAMENAS, no início, eram deusas úteis e práticas que cuidavam das</p><p>nascentes e dos poços, curavam doenças e previam o futuro. Quando os</p><p>deuses gregos chegaram a Roma, porém, as Camenas foram identi�cadas</p><p>com as pouco práticas divindades das Musas, que se importavam apenas</p><p>com arte e ciência. Dizia-se que Egéria, que ensinou o rei Numa, era uma</p><p>Camena.</p><p>LUCINA por vezes era considerada uma Ilítia romana, a deusa do parto, mas</p><p>o nome, em geral, é usado para designar tanto Juno como Diana.</p><p>POMONA e VERTUNO a princípio eram Numes, poderes que protegiam os</p><p>pomares e jardins. Mas foram posteriormente personi�cados e contou-se</p><p>uma história de como se apaixonaram um pelo outro.</p><p>E</p><p>CAPÍTULO II</p><p>Os dois grandes deuses da Terra</p><p>m sua maioria, os deuses imortais tinham pouca serventia para os seres</p><p>humanos, e muitas vezes eram justamente o oposto de úteis: Zeus, um</p><p>perigoso amante para as donzelas mortais e totalmente imprevisível em seu</p><p>uso do terrível raio; Ares, responsável pelas guerras e um �agelo de modo</p><p>geral; Hera, sem qualquer conceito de justiça quando enciumada, que era</p><p>como perpetuamente estava; Palas Atena, também fomentadora de guerras,</p><p>manejando a a�ada lança de raio de modo quase tão irresponsável quanto</p><p>Zeus; Afrodite, usando seu</p><p>poder principalmente para seduzir e trair. Eles</p><p>formavam, decerto, um grupo belo e radioso, e suas aventuras produziam</p><p>excelentes histórias, mas, quando não eram literalmente perigosos,</p><p>mostravam-se cheios de caprichos e nem um pouco dignos de con�ança; de</p><p>modo geral, os mortais �cavam melhor sem eles.</p><p>Dois, contudo, eram inteiramente distintos; na verdade, eram os</p><p>melhores amigos da humanidade. A saber: Deméter – Ceres em latim –, a</p><p>deusa do trigo e da agricultura, �lha de Cronos e Reia; e Dioniso, chamado</p><p>também de Baco, o deus do vinho. Deméter era mais velha, como era</p><p>natural. O trigo já era semeado bem antes de se plantarem vinhas. O</p><p>primeiro trigal foi o início da vida sedentária na Terra. As vinhas vieram</p><p>depois. Natural, também, que o poder divino que fazia brotar os grãos fosse</p><p>considerado uma deusa, não um deus. Enquanto a ocupação dos homens</p><p>era caçar e lutar, o cuidado com os campos cabia às mulheres, e à medida</p><p>que elas aravam, semeavam e ceifavam a colheita, sentiam que uma</p><p>divindade feminina seria capaz de melhor entender e ajudar o trabalho</p><p>feminino. Elas também podiam compreender melhor aquela que</p><p>veneravam, não com os sacrifícios sangrentos que os homens apreciavam</p><p>como no caso de outros deuses, mas em cada pequeno ato que tornava o</p><p>solo fértil. Graças a Deméter, o campo de cereais era consagrado. “O santo</p><p>grão de Deméter”. O local da debulha também �cava sob sua proteção.</p><p>Ambos eram o seu templo, onde ela poderia estar presente a qualquer</p><p>momento. “Na eira sagrada, quando estão joeirando, a própria Deméter dos</p><p>cabelos dourados como trigo maduro separa o grão da palha com o sopro</p><p>do vento e a pilha de palha embranquece.” “Que eu possa”, reza a ceifeira,</p><p>“junto ao altar de Deméter, enterrar em suas pilhas de trigo a grande peneira</p><p>de joeirar, enquanto ela permanece sorrindo, segurando papoulas e um</p><p>molho de espigas.”</p><p>Sua principal festa, é claro, ocorria na época da colheita. Na</p><p>Antiguidade, devia consistir num simples dia de ação de graças dos</p><p>ceifadores, quando o primeiro pão assado com o grão novo era partido e</p><p>consumido com grande respeito e preces agradecidas à deusa da qual viera</p><p>esse principal e tão necessário presente para a vida humana. Em épocas mais</p><p>tardias, o singelo banquete se transformou num culto misterioso sobre o</p><p>qual pouco sabemos. O grande festival, no mês de setembro, só acontecia de</p><p>cinco em cinco anos, mas durava nove dias. Eram dias extremamente</p><p>sagrados, durante os quais grande parte das atividades corriqueiras da vida</p><p>�cavam suspensas. Havia procissões, sacrifícios acompanhados de danças e</p><p>cantos, e folguedos generalizados. Tudo isso era conhecido e foi relatado por</p><p>muitos autores. Mas a parte principal da cerimônia, que acontecia dentro do</p><p>templo, jamais foi descrita. Aqueles que a executavam faziam um voto de</p><p>silêncio e o respeitaram tanto que só conhecemos fragmentos dispersos do</p><p>que se fazia.</p><p>O grande templo �cava em Elêusis, pequena cidade próxima a Atenas, e</p><p>a cerimônia se chamava Mistérios de Elêusis. Em todo o mundo grego, e</p><p>também no romano, esses ritos eram objeto de especial veneração. Segundo</p><p>Cícero, que escreveu no século anterior a Cristo, “Nada é tão elevado quanto</p><p>esses mistérios. Eles suavizaram nosso caráter e abrandaram nossos</p><p>costumes; �zeram-nos passar da condição de selvagens para a verdadeira</p><p>humanidade. Não apenas nos mostraram o caminho de uma vida de alegria,</p><p>mas também nos ensinaram a morrer com mais esperança”.</p><p>E mesmo assim, por mais sagrados e sublimes que fossem, os mistérios</p><p>conservavam a marca da sua origem. Uma das poucas informações que</p><p>temos a seu respeito é que, num momento muito solene, mostrava-se aos</p><p>adoradores “uma espiga de trigo que fora colhida em silêncio”.</p><p>Por algum motivo, ninguém sabe claramente como ou quando o deus da</p><p>vinha, Dioniso, também passou a ocupar seu lugar em Elêusis, lado a lado</p><p>com Deméter.</p><p>Junto a Deméter, quando tocam os címbalos,</p><p>Está sentado no trono Dioniso dos cabelos esvoaçantes.</p><p>Era natural que os dois fossem venerados juntos, já que ambos eram</p><p>divindades relativas às dádivas da terra e ambos estavam presentes nos atos</p><p>simples e cotidianos dos quais a vida depende: a partilha do pão e o</p><p>consumo do vinho. A colheita era também o festival de Dioniso, quando as</p><p>uvas eram levadas até a prensa.</p><p>O deus da alegria, Dioniso, a estrela pura</p><p>Que brilha em meio à coleta dos frutos.</p><p>Mas ele nem sempre foi um deus da alegria, tampouco Deméter sempre</p><p>foi a deusa feliz do verão. Ambos conheciam tanto a dor como a alegria.</p><p>Nisso também estavam intimamente relacionados: eram, os dois, deuses</p><p>sofredores. Os outros imortais não eram atingidos por nenhum sofrimento</p><p>duradouro. “Vivendo no Olimpo, onde o vento nunca sopra, onde nunca há</p><p>chuva nem nunca se vê o mais diminuto �oco branco de neve, eles passam</p><p>todos os seus dias felizes, banqueteando-se com néctar e ambrosia,</p><p>divertindo-se com o glorioso Apolo que toca sua lira de prata, e escutando</p><p>as doces vozes das Musas responder-lhe, enquanto as Graças dançam com</p><p>Hebe e Afrodite, e um brilho radiante ilumina tudo ao redor.” Mas as duas</p><p>divindades da terra conheciam a tristeza que estraçalha o coração.</p><p>O que acontece com os pés de trigo e com as luxuriantes vinhas novas</p><p>quando os grãos são ceifados, as uvas colhidas e o gelo negro se instala,</p><p>matando a vida recém-extraída dos campos? Era a pergunta que os homens</p><p>se faziam quando foram contadas as primeiras histórias para explicar aquilo</p><p>que era tão misterioso, as mudanças que passavam sem cessar diante dos</p><p>seus olhos, o dia que se transformava em noite, a alternância das estações e o</p><p>curso das estrelas. Embora Deméter e Dioniso fossem os deuses felizes da</p><p>colheita, no inverno �cava claro que se tornavam bem diferentes. Eles se</p><p>enlutavam e a terra �cava triste. Os homens da Antiguidade cogitavam por</p><p>que isso acontecia e contavam histórias para explicar o motivo.</p><p>DEMÉTER (CERES)</p><p>Esta história é contada apenas num poema muito primitivo, um dos</p><p>primeiros Hinos Homéricos, datado do século VIII a.C. ou início do VII</p><p>a.C. O original tem as marcas da poesia grega primitiva: bem simples,</p><p>direto e encantado com a beleza do mundo.</p><p>Deméter tinha uma única �lha, Perséfone (Proserpina em latim), a donzela</p><p>da primavera. Ela a perdeu e seu terrível sofrimento a fez negar à terra suas</p><p>dádivas, transformando-a num deserto congelado. A terra verde e �orida se</p><p>tornou gélida e sem vida porque Perséfone havia desaparecido.</p><p>O senhor do escuro mundo subterrâneo, rei da multidão dos mortos,</p><p>levou-a embora quando ela, seduzida pela maravilhosa �or do narciso, se</p><p>afastou demais das companheiras. Em sua carruagem puxada por garanhões</p><p>negros como carvão, ele surgiu de uma fenda no chão, agarrou a donzela</p><p>pelo pulso e a pôs sentada ao seu lado. Levou-a embora aos prantos para o</p><p>mundo subterrâneo. Os altos morros e as profundezas do mar ecoaram o</p><p>pranto de Perséfone e sua mãe escutou. Deméter voou depressa como um</p><p>pássaro por cima do mar e da terra à procura da �lha, mas ninguém lhe</p><p>dizia a verdade, “nenhum homem nem deus, e nenhum mensageiro seguro</p><p>dos pássaros”. Por nove dias Deméter vagou e, durante todo esse tempo, não</p><p>provou ambrosia nem levou aos lábios o doce néctar. Por �m ela chegou ao</p><p>Sol e este lhe contou a história toda: Perséfone estava no mundo debaixo da</p><p>terra, em meio à sombra dos mortos.</p><p>Então um sofrimento maior ainda tomou conta do coração de Deméter.</p><p>Ela foi embora do Olimpo; passou a viver na Terra, mas tão disfarçada que</p><p>ninguém a reconheceu, e de fato os mortais não distinguem com facilidade</p><p>os deuses. Em sua triste errância, ela chegou a Elêusis e sentou-se junto à</p><p>estrada, perto de um poço. Tinha o aspecto de uma mulher bem velha, do</p><p>tipo que, nas grandes residências, cuida das crianças ou vigia as despensas.</p><p>Quatro lindas donzelas, todas irmãs, tendo vindo pegar água no poço,</p><p>viram-na e, com pena, perguntaram o que ela estava fazendo ali. Deméter</p><p>respondeu que fugira de piratas que pretendiam</p><p>vendê-la como escrava e</p><p>que não conhecia ninguém naquela terra estranha a quem pudesse pedir</p><p>ajuda. As moças lhe disseram que qualquer casa da cidade a acolheria, mas</p><p>que prefeririam levá-la para a casa delas se ela pudesse esperar ali enquanto</p><p>iam pedir permissão à mãe. A deusa baixou a cabeça, assentindo, e as</p><p>moças, tendo enchido de água suas jarras brilhantes, foram depressa para</p><p>casa. Metaneira, sua mãe, instou-as a voltar na mesma hora e convidar a</p><p>desconhecida para ir até sua casa, e as moças voltaram correndo e</p><p>encontraram a gloriosa deusa ainda sentada ali, completamente velada e</p><p>coberta da cabeça aos pés pela túnica negra. Deméter as seguiu e, ao cruzar</p><p>a soleira e pisar no vestíbulo onde a mãe estava sentada com o �lho pequeno</p><p>no colo, uma claridade divina iluminou a passagem e Metaneira foi tomada</p><p>de assombro.</p><p>Pedindo a Deméter que se sentasse, ela mesma ofereceu seu vinho doce</p><p>feito mel, mas a deusa não quis prová-lo. Pediu, em vez disso, uma água de</p><p>cevada aromatizada com hortelã, a refrescante bebida dos ceifadores na</p><p>época da colheita e também do cálice sagrado oferecido aos adoradores em</p><p>Elêusis. Assim revigorada, pegou o menino e o segurou junto ao peito</p><p>perfumado, e o coração da mãe se encheu de satisfação. E assim Deméter</p><p>amamentou Demofonte, o �lho que Metaneira dera ao sábio Celeu. E a</p><p>criança cresceu como um pequeno deus, pois diariamente Deméter o</p><p>besuntava de ambrosia e à noite o colocava no coração vermelho do fogo.</p><p>Seu objetivo era lhe conferir uma juventude imortal.</p><p>Algo, porém, deixou a mãe descon�ada, de modo que, uma noite,</p><p>Metaneira �cou acordada e deu um grito de horror ao ver o �lho deitado</p><p>dentro do fogo. Deméter se zangou; tomou o menino e o lançou ao chão.</p><p>Sua intenção fora libertá-lo da velhice e da morte, mas isso não iria</p><p>acontecer. Mesmo assim, Demofonte havia se deitado no colo da deusa e</p><p>dormido junto ao seu peito, e, portanto, seria honrado pelo resto da vida.</p><p>Ela então se mostrou em sua forma divina. A beleza pairava à sua volta</p><p>junto com um delicioso perfume e uma luz irradiava dela de tal forma que</p><p>iluminou a grande casa. Ela era Deméter, disse então às mulheres</p><p>assombradas. Elas deveriam lhe construir um grande templo perto da</p><p>cidade para, assim, reconquistar o apreço do seu coração.</p><p>Ela então as deixou. Metaneira caiu no chão, sem palavras, e todos os</p><p>presentes tremeram de medo. Pela manhã, contaram o acontecido a Celeu,</p><p>que reuniu o povo e lhes revelou a ordem da deusa. Todos trabalharam de</p><p>bom grado para lhe construir um templo e, quando �cou pronto, Deméter</p><p>foi se sentar ali – separada dos deuses do Olimpo, sozinha, de�nhando de</p><p>saudades da �lha.</p><p>O rapto de Perséfone (Proserpina)</p><p>Aquele ano foi terrível e cruel para a humanidade em toda a Terra. Nada</p><p>cresceu; nenhuma semente brotou; os bois puxavam em vão o arado pelos</p><p>sulcos. Era como se toda a raça humana fosse morrer de fome. Por �m, Zeus</p><p>viu que precisava assumir o controle da situação. Mandou os deuses ir falar</p><p>com Deméter, um após outro, para tentar aplacar sua raiva, mas ela não deu</p><p>ouvidos a nenhum. Não deixaria a terra gerar frutos se não visse a �lha.</p><p>Zeus então percebeu que seu irmão precisaria ceder. Encarregou Hermes de</p><p>ir até o mundo inferior e pedir a Hades que deixasse sua noiva voltar para</p><p>junto de Deméter.</p><p>Hermes encontrou os dois sentados lado a lado, Perséfone toda</p><p>encolhida, acabrunhada com a falta que sentia da mãe. Ao ouvir as palavras</p><p>de Hermes, ela se levantou de um pulo, ansiosa para ir embora dali. Seu</p><p>marido sabia que precisava obedecer à ordem de Zeus e mandá-la de volta</p><p>para a terra, para longe de si, mas, antes, implorou a ela que tivesse bons</p><p>pensamentos em relação a ele e não �casse tão abatida por ser esposa de um</p><p>dos grandes entre os imortais. E a fez comer uma semente de romã, sabendo</p><p>que, se ela o �zesse, precisaria voltar para ele.</p><p>Após Hades preparar sua carruagem dourada, Hermes pegou as rédeas e</p><p>conduziu os cavalos negros para o templo onde estava Deméter. A deusa</p><p>correu ao encontro da �lha tão depressa quanto uma mênade corre encosta</p><p>abaixo na montanha. Perséfone se atirou nos braços da mãe e foi enlaçada</p><p>com força. Elas passaram o dia inteiro conversando sobre o que tinha lhes</p><p>acontecido e Deméter lamentou ao saber da semente de romã, pois temeu</p><p>não conseguir manter a �lha junto de si.</p><p>Zeus então lhe enviou outro mensageiro, uma personagem importante:</p><p>ninguém menos que sua reverenciada mãe, Reia, a mais antiga entre os</p><p>deuses. Ela desceu depressa das alturas do Olimpo até a terra estéril e sem</p><p>folhas e, em pé diante do templo, falou com Deméter:</p><p>Vamos, minha �lha, pois Zeus do trovão estrondoso que tudo vê</p><p>assim lhe ordena.</p><p>Volte outra vez aos salões dos deuses, onde será honrada,</p><p>Onde terá seu desejo, sua �lha, para reconfortar sua tristeza</p><p>Assim como cada ano se cumpre e o inverno cruel se encerra.</p><p>Apenas pela terça parte o reino das trevas �cará com ela.</p><p>No restante do tempo, ela �cará com você e com os felizes imortais.</p><p>Agora acalme-se. Dê aos homens a vida que só você pode dar.</p><p>Deméter não recusou, embora não lhe agradasse nem um pouco pensar</p><p>que precisaria perder Perséfone por quatro meses todos os anos e ver sua</p><p>jovem beleza descer para o mundo dos mortos. Mas ela foi bondosa; a</p><p>“Deusa Boa”, como os homens sempre a chamavam. Arrependeu-se da</p><p>desolação que havia causado. Tornou os campos outra vez ricos com frutos</p><p>abundantes e o mundo inteiro se coloriu com �ores e verdes folhas. Ela</p><p>também foi procurar os príncipes de Elêusis que tinham lhe construído seu</p><p>templo e escolheu um deles, Triptólemo, para ser seu embaixador junto aos</p><p>homens e lhes ensinar a semear o trigo. Ensinou a ele, a Celeu e aos outros</p><p>seus rituais sagrados, “mistérios dos quais ninguém pode falar, pois um</p><p>grande assombro prende a língua. Abençoado aquele que os tiver visto; sua</p><p>sorte será boa no mundo que está por vir”.</p><p>Rainha da perfumada Elêusis,</p><p>Que oferta as boas dádivas da terra,</p><p>Dê-me sua graça, ó Deméter.</p><p>Você também, Perséfone, mais formosa,</p><p>Donzela bela por inteiro, eu lhe ofereço</p><p>Uma canção em seu louvor.</p><p>Nas histórias de ambas as deusas, Deméter e Perséfone, a tristeza era a ideia</p><p>preponderante. Deméter, mais que a deusa da colheita farta, era a divina</p><p>mãe entristecida que via a �lha morrer a cada ano. Perséfone era a radiosa</p><p>donzela da primavera e do verão, cujo passo leve na encosta seca e marrom</p><p>da montanha bastava para torná-la verde e �orida, como escreve Safo:</p><p>Escutei os passos da �or da primavera…</p><p>Eram os passos de Perséfone. Durante todo o tempo, no entanto,</p><p>Perséfone sabia quanto essa beleza era breve: frutos, �ores, folhas, tudo que a</p><p>terra produzia de belo precisava se encerrar com a chegada do frio e se</p><p>entregar, assim como ela, ao poder da morte. Depois que o senhor do escuro</p><p>mundo inferior a levava embora, ela não mais era a jovem e alegre criatura a</p><p>brincar na campina �orida, sem qualquer anseio ou preocupação. De fato,</p><p>ressurgia dos mortos a cada primavera, mas trazia consigo a lembrança do</p><p>lugar de onde viera: junto com toda sua beleza solar havia também algo de</p><p>estranho e sublime. Muitas vezes se disse que ela era “a donzela cujo nome</p><p>não se deve pronunciar”.</p><p>Os olímpios eram “os deuses felizes”, “os deuses imortais”, muito</p><p>distantes dos humanos sofredores fadados a morrer. Mas, no seu sofrimento</p><p>e na hora da morte, os homens podiam apelar para a compaixão da deusa</p><p>que sofria e da deusa que morria.</p><p>DIONISO OU BACO</p><p>Esta história é contada de forma muito diferente em relação à de Deméter.</p><p>Dioniso foi o último deus a entrar no Olimpo. Homero não o reconhecia</p><p>como um dos grandes deuses. Não há fontes antigas para sua história, com</p><p>exceção de algumas breves alusões em Hesíodo, nos séculos VIII ou IX a.C.</p><p>Um último hino homérico, talvez tão tardio quanto o século IV a.C.,</p><p>fornece o único relato sobre o navio pirata; e o destino de Penteu é o tema</p><p>da última peça, datada do século V a.C., de Eurípides, o mais moderno de</p><p>todos</p><p>os poetas gregos.</p><p>Dioniso nasceu em Tebas, �lho de Zeus e da princesa tebana Sêmele. Ele era</p><p>o único deus cujos dois progenitores não eram divinos.</p><p>Somente em Tebas as mulheres mortais</p><p>Geram deuses imortais.</p><p>Sêmele foi a mais desafortunada de todas as mulheres pelas quais Zeus</p><p>se apaixonou, e, no seu caso, o motivo foi Hera. Zeus estava loucamente</p><p>apaixonado por Sêmele e lhe disse que faria qualquer coisa que ela pedisse;</p><p>jurou isso às margens do rio Estige, um juramento que nem mesmo ele</p><p>poderia quebrar. Ela lhe disse que o que mais queria era vê-lo em todo seu</p><p>esplendor como rei dos céus e senhor do raio. Havia sido Hera quem</p><p>instilara esse desejo em seu coração. Zeus sabia que nenhum mortal poderia</p><p>sobreviver depois de vê-lo dessa forma, mas nada pôde fazer: ele havia</p><p>jurado às margens do Estige. Surgiu como Sêmele tinha pedido e, diante</p><p>daquela luz gloriosa e tremenda, ela morreu fulminada. Mas Zeus tirou de</p><p>dentro dela o bebê que estava perto de nascer e o escondeu de Hera no</p><p>próprio �anco, até chegar a hora do parto. Hermes então o levou para ser</p><p>criado pelas ninfas do vale de Nisa, o mais formoso da Terra, mas que</p><p>nenhum homem jamais viu nem sabe onde �ca. Alguns dizem que as ninfas</p><p>eram as Híades, que Zeus, mais tarde, pôs no céu como estrelas, aquelas que</p><p>trazem chuva quando se aproximam do horizonte.</p><p>Assim, o deus da vinha nasceu do fogo e foi amamentado pela chuva, o</p><p>calor forte e calcinante que amadurece as uvas e a água que mantém a planta</p><p>viva.</p><p>Já adulto, Dioniso vagou por lugares distantes e estranhos.</p><p>As terras da Lídia, ricas em ouro,</p><p>As da Frígia também; as planícies calcinadas</p><p>Da Pérsia; as grandes muralhas da Báctria,</p><p>O país dos medos, varrido por tormentas;</p><p>E a bendita Arábia.</p><p>Por onde ia, ele ensinava aos homens o cultivo da vinha e os mistérios de</p><p>seu culto, e em todos os lugares era aceito como um deus, até o dia em que</p><p>se aproximou do próprio país.</p><p>Certo dia, no mar próximo da Grécia, chegou um navio pirata. Em terra</p><p>�rme, no alto de um grande promontório, os marinheiros viram um belo</p><p>rapaz. Seus cabelos negros e fartos esvoaçavam acima de uma túnica roxa</p><p>que lhe cobria os ombros fortes. Ele parecia um �lho de rei, alguém cujos</p><p>pais poderiam pagar um grande resgate. Exultantes, os piratas</p><p>desembarcaram e o aprisionaram. A bordo do navio, foram buscar cordas</p><p>grossas com as quais amarrá-lo, mas, para seu assombro, não o conseguiram</p><p>atar: as cordas não prendiam e os nós se desfaziam ao tocar as mãos ou os</p><p>pés do jovem. E ele permaneceu sentado, a encará-los com um sorriso nos</p><p>olhos escuros.</p><p>Da tripulação, somente o timoneiro entendeu e exclamou que aquele</p><p>rapaz devia ser um deus e que precisava ser libertado sem demora ou um</p><p>grande mal se abateria sobre todos eles. Mas o capitão zombou do</p><p>timoneiro, chamando-o de tolo, e ordenou à tripulação que se apressasse a</p><p>içar as velas. O vento encheu o pano e os marujos retesaram as velas, mas o</p><p>navio não se moveu. Então sucedeu prodígio após prodígio. Um vinho</p><p>perfumado pôs-se a escorrer pelo convés; uma vinha com vários cachos se</p><p>espalhou pela vela; uma trepadeira verde-escura, semelhante à hera, se</p><p>enrolou no mastro qual uma guirlanda, repleta de �ores e belos frutos.</p><p>Apavorados, os piratas ordenaram ao timoneiro que conduzisse o navio até</p><p>terra �rme. Tarde demais, pois, no mesmo instante em que disseram isso, o</p><p>prisioneiro se transformou num leão e pôs-se a rugir e a encará-los com</p><p>fúria. Diante dessa visão, eles pularam no mar e foram, na mesma hora,</p><p>transformados em gol�nhos, todos exceto o bom timoneiro; dele o deus se</p><p>apiedou. Manteve-o a bordo e lhe disse para não temer, pois, de fato, havia</p><p>conquistado a graça de alguém que era mesmo um deus: Dioniso, gerado</p><p>por Sêmele da união com Zeus.</p><p>Ao passar pela Trácia a caminho da Grécia, o deus foi ofendido por um</p><p>dos reis de lá, Licurgo, feroz opositor desse culto novo. Dioniso recuou</p><p>diante do rei e chegou a se refugiar nas profundezas do mar. Mais tarde,</p><p>porém, voltou, derrotou Licurgo e o puniu por sua maldade, ainda que de</p><p>modo brando,</p><p>Aprisionando-o numa caverna rochosa</p><p>Até seu feroz acesso de raiva inicial</p><p>Passar lentamente e ele aprender a reconhecer</p><p>O deus de quem tinha zombado.</p><p>Os outros deuses, porém, não foram brandos. Zeus cegou Licurgo e o rei</p><p>morreu em seguida. Ninguém que brigasse com os deuses sobrevivia.</p><p>Em algum momento durante sua errância, Dioniso encontrou Ariadne,</p><p>princesa de Creta, profundamente triste e inconsolável por ter sido</p><p>abandonada no litoral da ilha de Naxos pelo príncipe ateniense Teseu, cuja</p><p>vida tinha salvado. Dioniso teve pena dela, resgatou-a e acabou se</p><p>apaixonando por ela. Quando Ariadne morreu, ele pegou uma coroa que</p><p>tinha lhe dado e a pôs entre as estrelas.</p><p>A mãe que ele nunca tinha visto não foi esquecida. Dioniso ansiava tanto</p><p>por ela que acabou se atrevendo a enfrentar a terrível descida até o mundo</p><p>inferior à sua procura. Quando a encontrou, desa�ou o poder da Morte de</p><p>mantê-la longe dele e a Morte cedeu. Dioniso levou Sêmele embora, mas</p><p>não para viver na Terra. Levou-a para o Olimpo, onde os deuses aceitaram</p><p>recebê-la como um dos seus, uma mortal, sim, mas mãe um deus e,</p><p>portanto, digna de viver entre os imortais.</p><p>O deus do vinho tinha seus momentos de bondade e generosidade, mas</p><p>também podia ser cruel e induzir os homens a atos pavorosos. Fazia-os</p><p>enlouquecer com frequência. As MÊNADES ou BACANTES, como também</p><p>eram chamadas, eram mulheres dominadas pelo frenesi do vinho. Corriam</p><p>por matas e montanhas dando gritos agudos, brandindo seus trigos, bastões</p><p>encimados por um cone de pinheiro, movidas por um êxtase descontrolado.</p><p>Nada conseguia detê-las. Elas estraçalhavam as criaturas silvestres que</p><p>encontravam e devoravam os farrapos de carne ensanguentada. Cantavam:</p><p>Ah, que doces na montanha</p><p>São a dança e o canto,</p><p>A fuga louca e veloz.</p><p>Ah, que doce é cair no chão, extenuada.</p><p>Uma vez caçado e capturado o bode selvagem,</p><p>Ah, a alegria do sangue e da carne vermelha e crua!</p><p>Os deuses do Olimpo amavam a ordem e a beleza em seus sacrifícios e</p><p>templos. As loucas, as mênades, não tinham templos. Para prestar seu culto,</p><p>buscavam a natureza, as montanhas mais selvagens, as �orestas mais</p><p>profundas, como se ainda praticassem os costumes de um tempo antigo,</p><p>antes de os homens pensarem em construir casas para seus deuses. Elas</p><p>saíam da poeira e da multidão das cidades e retornavam à pureza</p><p>minimalista dos morros e matas desertos. Lá Dioniso lhes dava comida e</p><p>bebida: ervas, frutas silvestres e o leite das cabras selvagens. Sua cama era a</p><p>grama macia das campinas, à sombra das árvores frondosas onde, ano após</p><p>ano, caem as agulhas dos pinheiros. Elas acordavam com uma sensação de</p><p>paz e de frescor celestial; banhavam-se num regato claro. Esse culto a céu</p><p>aberto e o êxtase de alegria que ele causava diante da beleza selvagem do</p><p>mundo tinha muito de belo, de bom e de libertador. Mas sempre presente</p><p>estava também o medonho banquete de sangue.</p><p>O culto a Dioniso era centrado nesses dois conceitos, muito distantes</p><p>entre si: o de liberdade, alegria e êxtase, e o de uma selvagem brutalidade. A</p><p>quem o cultuasse, o deus do vinho podia dar uma coisa ou outra. Ao longo</p><p>de sua história de vida, ele, por vezes, é a bênção do homem, por outras, sua</p><p>ruína. De todos os terríveis feitos a ele atribuídos, o pior foi cometido em</p><p>Tebas, cidade natal de sua mãe.</p><p>Dioniso chegou a Tebas para ali �rmar seu culto. Como era o seu</p><p>costume, veio acompanhado por um séquito de mulheres que dançavam e</p><p>entoavam cantos exultantes, usando peles de cervo jovem por cima das</p><p>túnicas e acenando com seus trigos enfeitados com folhas de hera. Pareciam</p><p>enlouquecidas de alegria. Elas cantavam:</p><p>Ó, Bacanais, venham,</p><p>Ó, venham.</p><p>Cantar para Dioniso,</p><p>Cantar com o pandeiro,</p><p>Com o pandeiro de voz grave.</p><p>E louvá-lo com alegria,</p><p>Ele que traz felicidade.</p><p>A música sagrada,</p><p>Toda sagrada chama.</p><p>Para as colinas, as colinas,</p><p>Voem, ó Bacantes</p><p>De passo célere.</p><p>Avante, ó</p><p>alegres, venham depressa.</p><p>Penteu, rei de Tebas, era �lho da irmã de Sêmele, mas não fazia ideia de</p><p>que o líder daquele bando de mulheres animadas e de comportamento</p><p>estranho fosse o seu primo. Não sabia que, quando Sêmele morrera, Zeus</p><p>havia salvado seu �lho. A dança desregrada, o canto alto e alegre e o</p><p>comportamento bizarro daquelas desconhecidas lhe pareceram altamente</p><p>questionáveis, sendo preciso interrompê-los de imediato. Penteu ordenou a</p><p>seus guardas que capturassem e prendessem os visitantes, em especial o</p><p>líder, “cujo rosto está corado de vinho, um mago trapaceiro da Lídia”. Mas,</p><p>ao dizer essas palavras, o rei ouviu atrás de si um alerta solene: “O homem</p><p>que você está rejeitando é um novo deus. É o �lho de Sêmele que Zeus</p><p>resgatou. Junto com a divina Deméter, ele é grandioso para os homens da</p><p>Terra.” Quem falou foi o velho profeta cego Tirésias, o homem santo de</p><p>Tebas, que conhecia como ninguém a vontade dos deuses. No entanto,</p><p>quando Penteu se virou para lhe responder, viu que ele estava vestido como</p><p>as mulheres: um ramo de hera nos cabelos brancos, os velhos ombros</p><p>cobertos por uma pele de cervo novo, na mão trêmula um estranho bastão</p><p>com uma pinha na extremidade. Penteu olhou Tirésias de cima a baixo e riu,</p><p>com zombaria, então lhe ordenou com desdém que sumisse da sua frente. E</p><p>assim selou o próprio destino, pois se recusou a ouvir quando os deuses lhe</p><p>falaram.</p><p>Um grupo de soldados conduziu Dioniso até diante do rei. Disseram que</p><p>o deus não tentara fugir nem resistir, mas �zera todo o possível para facilitar</p><p>a própria captura e condução de tal modo que eles se envergonharam e</p><p>disseram estar cumprindo ordens, não agindo por vontade própria. Os</p><p>soldados declararam também que as jovens que tinham capturado haviam</p><p>todas fugido para as montanhas. As amarras não as prendiam; as portas se</p><p>abriam sozinhas. “Este homem veio a Tebas com muitos prodígios”,</p><p>disseram eles.</p><p>Penteu, a essa altura, não conseguia ver nada exceto a própria raiva e seu</p><p>desdém. Dirigiu-se com rispidez a Dioniso, que lhe respondeu com toda a</p><p>gentileza, aparentemente tentando alcançar o verdadeiro eu do rei e abrir</p><p>seus olhos para que Penteu percebesse estar diante de um deus. Avisou-lhe</p><p>que ele não poderia mantê-lo preso, “pois Deus me libertará”.</p><p>– Deus? – caçoou Penteu.</p><p>– Sim – respondeu Dioniso. – Ele está aqui e vê meu sofrimento.</p><p>– Meus olhos não conseguem vê-lo – falou Penteu.</p><p>– Ele está onde eu estou – respondeu Dioniso. – Você não o consegue</p><p>ver porque não é puro.</p><p>Irado, Penteu ordenou aos soldados que o amarrassem e levassem para a</p><p>prisão, e Dioniso foi. Enquanto era levado, ele falou: “O mal que você faz a</p><p>mim é um mal feito aos deuses.”</p><p>Mas a prisão não foi capaz de conter Dioniso. Ele se libertou, foi</p><p>procurar Penteu e mais uma vez tentou convencê-lo a ceder ao que aqueles</p><p>prodígios mostravam ser claramente divino e a acolher aquele culto novo a</p><p>um novo e poderoso deus. No entanto, quando Penteu só fez cobri-lo de</p><p>ofensas e ameaças, Dioniso o abandonou à própria sorte. E ela foi a mais</p><p>horrível que poderia haver.</p><p>Penteu saiu no encalço das seguidoras do deus pelas colinas, para onde</p><p>as jovens tinham fugido após escaparem da prisão. Muitas das mulheres de</p><p>Tebas tinham se juntado a elas; a mãe e as irmãs do rei estavam lá. E lá</p><p>Dioniso se mostrou em seu aspecto mais terrível. Ele fez todas as mulheres</p><p>perderem a razão. Elas tomaram Penteu por um animal selvagem, um leão</p><p>da montanha, e correram para matá-lo, sendo a primeira de todas a própria</p><p>mãe. Quando se abateram sobre ele, Penteu compreendeu, por �m, que</p><p>havia desa�ado um deus e que agora precisaria pagar com a própria vida. As</p><p>mulheres lhe arrancaram todos os membros, um a um, e então, somente</p><p>então, o deus lhes devolveu a razão e a mãe de Penteu viu o que tinha feito.</p><p>Ao testemunhar a agonia dela, as jovens, agora todas sóbrias, tendo cessado</p><p>as danças, os cantos e os acenos desordenados dos trigos, disseram entre si:</p><p>Os deuses visitam os homens de modos estranhos, difíceis de</p><p>conhecer.</p><p>Muitos foram seus feitos a superar as esperanças,</p><p>E o que se previa de outro modo se deu.</p><p>Deus encontrou para nós um caminho que nunca imaginamos.</p><p>E assim isso aconteceu.</p><p>À primeira vista, as ideias a respeito de Dioniso nessas diferentes histórias</p><p>parecem contraditórias. Numa, ele é o deus da alegria,</p><p>Ele, cujos cachos entremeados de ouro,</p><p>Corado Baco,</p><p>Amigo das mênades,</p><p>De quem a tocha feliz arde.</p><p>Em outra, é o deus impiedoso, selvagem, brutal:</p><p>Ele que, com um riso zombeteiro,</p><p>Sua presa caça,</p><p>Captura e arrasta para a morte</p><p>Com as suas Bacantes.</p><p>A verdade, porém, é que essas duas ideias advieram, de modo bem</p><p>simples e lógico, do fato de ele ser o deus do vinho. O vinho é ao mesmo</p><p>tempo ruim e bom. Alegra e aquece o coração dos homens; e também os</p><p>embriaga. Os gregos eram um povo que via os fatos com muita clareza. Não</p><p>podiam fechar os olhos para o lado feio e degradante do consumo do vinho</p><p>e ver apenas seu lado de prazer. Dioniso era o deus da vinha; portanto, era</p><p>um poder que, às vezes, levava os homens a cometer crimes atrozes e</p><p>assustadores. Ninguém os podia defender; ninguém jamais tentaria</p><p>contestar o destino de Penteu. Mas, como diziam os gregos entre si, essas</p><p>coisas realmente acontecem quando as pessoas se entregam ao frenesi da</p><p>bebida. Essa verdade não os cegava para a outra, a de que o vinho era o</p><p>“fazedor de alegria” que iluminava o coração dos homens e proporcionava</p><p>descontração despreocupada, alegria e diversão.</p><p>O vinho de Dioniso,</p><p>Quando as a�ições e o cansaço dos homens</p><p>Abandonam todo coração.</p><p>Viajamos para uma terra que nunca existiu.</p><p>Os pobres se tornam ricos; os ricos, generosos.</p><p>As �echas feitas da vinha tudo conquistam.</p><p>O motivo que tornava Dioniso tão diferente de um momento para outro</p><p>era essa natureza dupla do vinho e, portanto, do seu deus. Ele era o benfeitor</p><p>dos homens, e também seu destruidor.</p><p>Em seu aspecto bom, era mais do que o deus que alegra os homens. Seu</p><p>cálice</p><p>Dava a vida, curava todos os males.</p><p>Sob sua in�uência, a coragem era atiçada e o medo, espantado, pelo</p><p>menos naquele instante. Ele dava ânimo àqueles que o cultuavam e os fazia</p><p>sentir que podiam realizar o que não pensavam ser capazes. Essas felizes</p><p>liberdade e con�ança acabavam passando, claro, à medida que as pessoas</p><p>�cavam ou sóbrias ou então completamente embriagadas, mas enquanto</p><p>duravam, sentiam estar possuídas por um poder maior do que elas mesmas.</p><p>Assim, o que as pessoas sentiam em relação a Dioniso era distinto do que</p><p>sentiam por qualquer outro deus. Ele existia não apenas fora delas, mas</p><p>também no seu interior. Elas podiam ser transformadas por ele, �car</p><p>parecidas com ele. A sensação momentânea de poder exultante conferida</p><p>pelo vinho era apenas um sinal para mostrar aos homens que eles tinham</p><p>dentro de si mais do que sabiam: “que podiam, eles próprios, se tornar</p><p>divinos”.</p><p>Esse pensamento era muito distante da antiga ideia de venerar o deus ao</p><p>beber o bastante para se alegrar, ou para se libertar das preocupações, ou</p><p>para se embriagar. Alguns seguidores de Dioniso nunca bebiam vinho. Não</p><p>se sabe quando a grande mudança ocorreu, alçando o deus que libertava os</p><p>homens momentaneamente com a embriaguez ao deus que os libertava com</p><p>a inspiração, mas um resultado muito notável foi Dioniso ter se tornado</p><p>para todo o sempre o mais importante dos deuses da Grécia.</p><p>Os Mistérios de Elêusis, que sempre pertenceram sobretudo a Deméter,</p><p>tiveram de fato grande importância. Durante centenas de anos, como disse</p><p>Cícero, eles ajudaram os homens “a viver com alegria e a morrer com</p><p>esperança”. Mas sua in�uência não durou, muito provavelmente porque</p><p>ninguém tinha permissão para ensinar suas ideias ou escrever sobre elas</p><p>abertamente. No �m, deles restou apenas uma lembrança difusa. Com</p><p>Dioniso aconteceu justamente o contrário. Aquilo que se fazia no seu grande</p><p>festival acontecia às claras, na frente de todos, e é hoje uma in�uência viva.</p><p>Nenhum outro festival</p><p>na Grécia chegava aos seus pés. Ele ocorria na</p><p>primavera, quando os galhos das vinhas estavam começando a brotar, e</p><p>durava cinco dias. Eram dias de perfeita paz e contentamento. Todos os</p><p>afazeres normais da vida se interrompiam. Ninguém podia ser posto na</p><p>prisão; prisioneiros chegavam a ser libertados para poderem participar da</p><p>folgança. Mas o lugar em que as pessoas se reuniam para honrar o deus não</p><p>era uma mata selvagem horri�cada por atos de selvageria e por um banquete</p><p>sangrento; não era sequer o recinto de um templo, com sacrifícios</p><p>ordenados e cerimônias conduzidas por sacerdotes. O festival acontecia</p><p>num teatro e a cerimônia era a apresentação de uma peça. A melhor poesia</p><p>da Grécia, e uma das melhores do mundo, foi escrita para Dioniso. Os</p><p>poetas que escreviam as peças, os atores e cantores que nelas atuavam, todos</p><p>eram considerados servos do deus. As representações eram sagradas; assim</p><p>como os autores e atores, os espectadores também estavam realizando um</p><p>ato de devoção. O próprio Dioniso supostamente estava presente; seu</p><p>sacerdote ocupava o lugar de honra.</p><p>Está claro, portanto, que a ideia do deus de inspiração sagrada, capaz de</p><p>imbuir os homens de seu espírito e de fazê-los escrever e atuar</p><p>gloriosamente, se tornou bem mais importante do que as ideias anteriores a</p><p>seu respeito. As primeiras peças trágicas, algumas das melhores que há,</p><p>nunca igualadas senão por Shakespeare, foram produzidas no teatro de</p><p>Dioniso. Comédias também foram produzidas ali, mas as tragédias foram</p><p>bem mais numerosas, e isso aconteceu por um motivo.</p><p>Esse deus estranho, o alegre celebrante, o cruel caçador, o inspirador</p><p>divino, era também um sofredor. Assim como Deméter, Dioniso sofria, não</p><p>de tristeza por outrem como ela, mas por causa da sua dor. Ele era a vinha,</p><p>que sempre é podada como nenhuma outra planta frutífera: todos os seus</p><p>galhos são cortados e resta apenas o tronco nu; durante todo o inverno a</p><p>vinha é como uma coisa morta, um velho toco retorcido aparentemente</p><p>incapaz de voltar a produzir folhas. Assim como Perséfone, Dioniso morria</p><p>com a chegada do frio. Ao contrário dela, sua morte era terrível: ele era</p><p>estraçalhado, em algumas histórias, pelos titãs, e em outras, por ordem de</p><p>Hera. Era sempre trazido de volta à vida; morria e tornava a viver. O que se</p><p>celebrava no seu teatro era a sua feliz ressurreição, mas a ideia dos atos</p><p>terríveis cometidos contra ele e pelos homens sob sua in�uência estava tão</p><p>intimamente associada a ele que não podia ser esquecida. Dioniso era mais</p><p>do que o deus que sofria. Ele era o deus da tragédia. Não existia nenhum</p><p>outro.</p><p>E Dioniso tinha ainda outro lado. Ele era a garantia de que a morte não</p><p>encerra tudo. Aqueles que o cultuavam acreditavam que suas morte e</p><p>ressurreição demonstravam que a alma tem vida eterna depois que o corpo</p><p>morre. Essa fé fazia parte dos Mistérios de Elêusis. No início, tinha como</p><p>foco Perséfone, que também voltava dos mortos toda primavera. Mas, na</p><p>condição de rainha do escuro mundo subterrâneo, ela mantinha até mesmo</p><p>no claro mundo superior uma sugestão de algo estranho, ruim: como era</p><p>possível ela, que sempre carregava consigo a lembrança da morte,</p><p>representar a ressurreição, a derrota da morte? Dioniso, pelo contrário,</p><p>nunca foi considerado uma força no reino da morte. Existem muitas</p><p>histórias sobre Perséfone no mundo inferior, mas apenas uma sobre</p><p>Dioniso: ele foi lá resgatar a mãe. Em sua ressurreição, ele era a</p><p>personi�cação da vida, que é mais forte do que a morte. Ele, não Perséfone,</p><p>tornou-se o centro da crença na imortalidade.</p><p>Por volta do ano 80 d.C., um grande autor grego, Plutarco, quando</p><p>estava longe de casa, recebeu a notícia de que sua �lha pequena – segundo</p><p>ele, a mais dócil das crianças – tinha morrido. Na carta que escreve para a</p><p>esposa ele diz: “Sobre isso de que você ouviu falar, minha querida, de que a</p><p>alma, quando deixa o corpo, desaparece e nada sente, sei que você não</p><p>acredita nessas a�rmações por causa das sagradas e �éis promessas feitas</p><p>durante os mistérios de Baco, as quais nós, que pertencemos a essa</p><p>irmandade religiosa, conhecemos. Nós cremos com �rmeza numa verdade</p><p>inconteste: que nossa alma é incorruptível e imortal. Devemos pensar [dos</p><p>mortos] que eles partem para um lugar melhor e para uma condição mais</p><p>feliz. Comportemo-nos de acordo com isso, ordenando exteriormente</p><p>nossas vidas enquanto, interiormente, tudo deve ser mais puro, mais sábio,</p><p>incorruptível.”</p><p>E</p><p>CAPÍTULO III</p><p>Como foram criados o</p><p>mundo e a humanidade</p><p>Com exceção da história sobre a punição de Prometeu, contada por Ésquilo</p><p>no século V a.C., o material deste capítulo foi tirado de Hesíodo, que viveu</p><p>pelo menos 300 anos antes. Ele é a principal autoridade sobre os mitos</p><p>relacionados ao começo de tudo. Tanto a crueza da história de Cronos</p><p>quanto a ingenuidade da história de Pandora são características dele.</p><p>No início era o Caos, o vasto, incomensurável abismo,</p><p>Espantoso como um mar, sombrio, desolado, selvagem.</p><p>ssas palavras, embora sejam de Milton, exprimem com precisão o que</p><p>os gregos pensavam estar por trás do começo de tudo. Bem antes de os</p><p>deuses surgirem, num passado impreciso, em tempos imemoriais, tudo que</p><p>existia era a confusão amorfa do caos em uma escuridão sem �m. Em</p><p>determinado momento, mas de um modo que ninguém nunca tentou</p><p>explicar, desse nada informe nasceram dois �lhos. A Noite era �lha do Caos,</p><p>bem como o Érebo, a profundeza insondável onde reside a morte. No</p><p>Universo inteiro não existia mais nada: tudo era escuro, vazio, silencioso,</p><p>in�nito.</p><p>Então ocorreu uma maravilha entre as maravilhas. Do meio desse horror</p><p>vazio e in�nito, a melhor de todas as coisas se fez, misteriosamente. Um</p><p>grande dramaturgo, o poeta cômico Aristófanes, descreve seu advento em</p><p>palavras bastante citadas:</p><p>No seio do Érebo escuro e profundo</p><p>A negra e alada Noite</p><p>Botou um ovo gerado pelo vento, e com o passar das estações</p><p>Dali nasceu o Amor, ansiado, brilhante, com asas de ouro.</p><p>Da escuridão e da morte nasceu o Amor e, com seu nascimento, a</p><p>ordem e a beleza começaram a expulsar a confusão cega. O Amor criou a</p><p>Luz e, com ela, seu companheiro, o radioso Dia.</p><p>O que ocorreu em seguida foi a criação da Terra, mas isso tampouco</p><p>tentaram explicar. Simplesmente aconteceu. Com a chegada do Amor e da</p><p>Luz, parecia natural que a Terra também surgisse. O poeta Hesíodo,</p><p>primeiro grego a tentar explicar como as coisas começaram, escreveu:</p><p>Terra, a bela, surgiu,</p><p>Com seu busto largo, ela que é a base �rme</p><p>De todas as coisas. E a formosa Terra primeiro</p><p>Gerou o estrelado Céu, seu semelhante,</p><p>Para cobri-la por todos os lados e ser</p><p>Para sempre o lar dos abençoados deuses.</p><p>Em todo esse pensamento sobre o passado ainda não havia sido feita</p><p>qualquer distinção entre lugares e pessoas. A Terra era o chão sólido, mas</p><p>era também, de modo vago, uma personalidade. O Céu era a redoma azul lá</p><p>no alto, mas, sob certos aspectos, agia como um ser humano agiria. Para as</p><p>pessoas que contavam essas histórias, o Universo inteiro era animado pelo</p><p>mesmo tipo de vida que elas conheciam dentro de si. Elas eram indivíduos,</p><p>portanto personi�cavam tudo aquilo que carregasse as marcas evidentes da</p><p>vida, tudo que se movia e se modi�cava: a terra no inverno e no verão, o céu</p><p>com suas estrelas móveis, o mar irrequieto e assim por diante. Era apenas</p><p>uma personi�cação difusa: algo vago e imenso que, com seu movimento,</p><p>produzia mudança, e, portanto, estava vivo.</p><p>Ao contarem sobre a chegada do Amor e da Luz, porém, os autores</p><p>primitivos estavam montando o cenário para a aparição dos humanos e</p><p>começaram a personi�car com mais precisão. Eles atribuíram formas</p><p>distintas às forças naturais. Viam-nas como as precursoras dos homens e as</p><p>de�niram como indivíduos de modo bem mais claro do que tinham feito</p><p>com a Terra e o Céu. Mostraram-nas agindo de todas as formas que os seres</p><p>humanos agiam: caminhando, por exemplo, e comendo – coisas que a Terra</p><p>e o Céu obviamente não faziam. Esses dois</p><p>foram postos à parte. Se estavam</p><p>vivos, era de uma forma que dizia respeito somente a eles.</p><p>As primeiras criaturas com aparência de vida foram os �lhos da Mãe</p><p>Terra e do Pai Céu (Gaia e Urano). Eram monstros. Assim como nós, os</p><p>gregos também acreditavam que a Terra antigamente era habitada por</p><p>estranhas e gigantescas criaturas. Só que eles não as concebiam como</p><p>imensos lagartos e mamutes, mas como algo um pouco semelhante aos</p><p>homens e, ao mesmo tempo, inumano. Essas criaturas tinham a força</p><p>destruidora e colossal dos terremotos, furacões e vulcões. Nas histórias a seu</p><p>respeito, não parecem realmente vivas, mas pertencentes a um mundo onde</p><p>ainda não há vida, apenas movimentos tremendos de forças irresistíveis que</p><p>erguem montanhas e fazem os mares se derramarem. Os gregos, pelo visto,</p><p>tinham um sentimento assim, pois nas suas histórias, embora representem</p><p>essas criaturas como seres vivos, eles as tornam diferentes de qualquer forma</p><p>de vida conhecida pelo homem.</p><p>Três dessas criaturas, monstruosamente gigantescas e fortes, tinham</p><p>cada uma cem mãos e cinquenta cabeças. A três outras foi dado o nome de</p><p>Ciclopes (que têm o olho feito uma roda), pois as três tinham apenas um</p><p>único olho enorme no meio da testa, redondo e grande como uma roda.</p><p>Também gigantescos, os ciclopes se erguiam qual imensas montanhas</p><p>escarpadas de poder devastador. Por último vieram os titãs. Eles eram</p><p>vários, e de modo algum inferiores aos outros em matéria de tamanho e</p><p>força, mas não eram puramente destrutivos. Vários deles eram até mesmo</p><p>bons. Um de fato, depois de os homens serem criados, salvou-os da</p><p>destruição.</p><p>Era natural pensar nessas temíveis criações como �lhas da Mãe Terra,</p><p>geradas em suas sombrias profundezas quando o mundo era jovem. Mas é</p><p>extremamente estranho elas serem também �lhas do Céu. Mas era isso que</p><p>os gregos diziam, e eles pintaram o Céu como um pai cruel. Embora fossem</p><p>suas �lhas, o Céu detestava aquelas coisas de cem mãos e cinquenta cabeças</p><p>e, conforme cada uma delas nascia, ele as aprisionava num lugar secreto</p><p>dentro da terra. Deixou soltos os ciclopes e os titãs, e a Terra, enfurecida</p><p>com os maus-tratos in�igidos a seus outros �lhos, lhes pediu ajuda. Apenas</p><p>um teve coragem su�ciente para enfrentar o pai: o titã Cronos. Ele �cou de</p><p>tocaia à espera do pai e o feriu gravemente. Do seu sangue nasceram os</p><p>Gigantes, a quarta raça de monstros. Desse mesmo sangue nasceram</p><p>também as Erínias (Fúrias). Sua tarefa era perseguir e punir os pecadores.</p><p>Elas eram chamadas de “aquelas que caminham na escuridão” e tinham um</p><p>aspecto terrível, com cobras a se contorcer no lugar dos cabelos e olhos que</p><p>vertiam lágrimas de sangue. Os outros monstros acabaram expulsos da</p><p>Terra, mas as Erínias não. Enquanto houvesse pecado no mundo, elas não</p><p>poderiam ser banidas.</p><p>Desse ponto em diante, por um tempo incalculável, Cronos, aquele que,</p><p>como vimos, era chamado de Saturno pelos romanos, foi o senhor do</p><p>Universo ao lado de sua irmã e rainha Reia (Ops em latim). Por �m, um de</p><p>seus �lhos, o futuro senhor do céu e da terra cujo nome em grego é Zeus e</p><p>em latim, Júpiter, rebelou-se contra ele. Tinha bons motivos para tal, pois</p><p>Cronos, ao saber que um de seus �lhos estava fadado a tirá-lo um dia do</p><p>trono, tentou contrariar o destino, engolindo-os assim que nasciam. Mas</p><p>quando Reia deu à luz Zeus, seu sexto �lho, conseguiu fazê-lo ser levado em</p><p>segredo para Creta enquanto dava ao marido uma grande pedra enrolada</p><p>em cueiros, que ele imaginou ser o bebê e devidamente deglutiu. Mais tarde,</p><p>já adulto e com a ajuda da avó Terra, Zeus obrigou o pai a cuspir a pedra</p><p>junto com os cinco �lhos que ele havia engolido, e a pedra foi posta em</p><p>Delfos, onde muito tempo depois um grande viajante chamado Pausânias</p><p>relata tê-la visto por volta do ano de 180 d.C.: “Uma pedra de tamanho não</p><p>muito grande, que os sacerdotes de Delfos besuntam de óleo diariamente.”</p><p>Seguiu-se uma guerra terrível que opôs Cronos, ajudado por seus irmãos</p><p>titãs, a Zeus e seus cinco irmãos e irmãs – uma guerra que quase destruiu o</p><p>Universo.</p><p>Um som medonho perturbou o mar sem �m.</p><p>A terra inteira soltou um grito imenso.</p><p>O vasto céu sacudido gemeu.</p><p>Em sua base, o distante Olimpo tremeu</p><p>Sob o ataque dos deuses imortais,</p><p>E tremendo se agarrou ao negro Tártaro.</p><p>Os titãs foram vencidos em parte porque Zeus libertou da prisão os</p><p>monstros de cem mãos, que combateram ao seu lado com suas armas</p><p>invencíveis – o trovão, o raio e o terremoto –, e também porque um dos</p><p>�lhos do titã Jápeto, que se chamava Prometeu e era muito sensato, tomou o</p><p>partido de Zeus.</p><p>A punição de Zeus a seus inimigos derrotados foi terrível. Eles foram</p><p>Presos com amargas correntes sob a vastidão da terra,</p><p>Tão abaixo dela quanto o céu está acima,</p><p>Pois nessa grande profundeza �ca o Tártaro.</p><p>Por nove dias e nove noites uma bigorna que caísse do céu,</p><p>Só no décimo dia chegaria à terra.</p><p>E então de novo teria de cair, por nove dias e nove noites,</p><p>Para chegar ao Tártaro com seu brônzeos portões.</p><p>Atlas, irmão de Prometeu, teve um destino ainda pior. Ele foi condenado</p><p>A suportar para sempre nas costas</p><p>A força cruel do mundo esmagador</p><p>E a redoma do céu.</p><p>Sobre seus ombros, a grande pilastra</p><p>Que separa a terra do céu,</p><p>Um peso que não é fácil suportar.</p><p>Com esse fardo nos ombros, Atlas permanece para sempre diante do</p><p>lugar envolvo em nuvens e escuridão onde a Noite e o Dia se aproximam e</p><p>se cumprimentam. O interior da casa nunca recebe Noite e Dia juntos; mas</p><p>sempre um, de partida, visita a Terra, e o outro, dentro da casa, aguarda a</p><p>hora de partir; ele com a luz que se vê de longe para os que estão na Terra,</p><p>ela, de mãos dadas com o Sono, irmão da Morte.</p><p>Mesmo depois de os titãs serem derrotados e destruídos, a vitória de</p><p>Zeus não foi completa. A Terra deu à luz seu último e mais temível rebento,</p><p>uma criatura mais terrível do que qualquer outra que a precedera. Seu nome</p><p>era Tífon.</p><p>Um monstro �amejante de cem cabeças</p><p>Que se rebelou contra todos os deuses.</p><p>A morte silvava entre suas temíveis presas</p><p>E em seus olhos chispava o fogo da ira.</p><p>Mas Zeus, a essa altura, já tinha assumido o controle do trovão e do raio.</p><p>Eles haviam se tornado suas armas e não eram usados por mais ninguém.</p><p>Ele acertou Tífon com</p><p>O raio que nunca dorme,</p><p>O trovão com seu hálito de chamas.</p><p>O fogo incendiou seu coração.</p><p>Sua força foi transformada em cinzas.</p><p>E ele, agora, jaz uma coisa inútil</p><p>Junto ao Etna, de onde às vezes irrompem</p><p>Rios de lava vermelha, a consumir com dentes vorazes</p><p>Os campos mansos da Sicília</p><p>Com seus belos frutos.</p><p>Essa é a raiva de Tífon a ferver,</p><p>Seus dardos �amejantes.</p><p>Mais tarde houve ainda outra tentativa de destronar Zeus: os Gigantes se</p><p>rebelaram. Mas, a essa altura, os deuses já eram muito fortes e foram</p><p>também ajudados pelo poderoso Hércules, um �lho de Zeus. Os Gigantes</p><p>foram derrotados e atirados no Tártaro, e a vitória das forças radiosas do</p><p>Céu contra as forças brutais da Terra se completou. A partir de então, Zeus e</p><p>seus irmãos e irmãs passaram a governar sem oposição, senhores de tudo.</p><p>Até então não existiam seres humanos, mas o mundo, agora liberado dos</p><p>monstros, estava pronto para a humanidade. Era um lugar em que pessoas</p><p>poderiam viver com algum conforto e segurança, sem precisar temer a</p><p>súbita aparição de um titã ou de um Gigante. Acreditava-se que a Terra fosse</p><p>um disco redondo dividido em duas partes iguais pelo mar, como</p><p>chamavam os gregos – o que hoje conhecemos como Mediterrâneo –, e por</p><p>aquilo que hoje chamamos de mar Negro. (Os gregos, no início, o</p><p>chamavam de Axino, que signi�ca “mar não amigável”, e depois, talvez à</p><p>medida que as pessoas foram se familiarizando com ele, passaram a chamá-</p><p>lo de Euxino, o “mar amigável”. Ocasionalmente sugere-se que ele tenha sido</p><p>batizado com esse nome agradável para fazê-lo demonstrar uma disposição</p><p>favorável aos homens.) Em volta da Terra corria o grande rio Oceano, nunca</p><p>perturbado por ventos ou tempestades. Na margem mais distante de Oceano</p><p>vivia</p><p>um povo misterioso, que poucas pessoas na Terra jamais encontraram.</p><p>Lá viviam os cimérios, mas ninguém sabia se a leste, oeste, norte ou sul. Era</p><p>um lugar envolto em nuvens, brumoso, onde nunca se via a luz do dia; uma</p><p>terra que o brilhante sol jamais visitava com seu esplendor, nem mesmo</p><p>quando subia pelo céu estrelado ao nascer do dia e tampouco quando descia</p><p>do céu em direção à Terra ao anoitecer. Uma noite sem �m pairava acima de</p><p>seus melancólicos habitantes.</p><p>Com exceção desse único povo, todos os que viviam do outro lado do</p><p>Oceano eram extremamente afortunados. No longínquo norte, tão distante</p><p>que �cava atrás do Vento Norte, havia uma terra feliz habitada pelos</p><p>hiperbóreos. Apenas uns poucos forasteiros, grandes heróis, a tinham</p><p>visitado. Nem de navio nem a pé se podia encontrar o caminho até o</p><p>maravilhoso lugar em que viviam os hiperbóreos. Mas as Musas viviam não</p><p>muito longe dali, como convinha a seus costumes. Pois, por toda parte, se</p><p>agitava a dança das donzelas, soava o límpido canto da lira e ecoavam as</p><p>notas das �autas. Com loureiro dourado elas enfeitavam os cabelos e alegres</p><p>eram seus festejos. Nessa raça sagrada não existia doença nem a mortal</p><p>velhice. Bem longe, ao sul, �cava o país dos etíopes, sobre os quais sabemos</p><p>apenas que eram tão favorecidos pelos deuses que estes se juntavam a eles</p><p>para alegres banquetes em seus salões.</p><p>Nas margens de Oceano �cava também o lar dos mortos abençoados.</p><p>Nessa terra não nevava, tampouco havia inverno ou qualquer tempestade ou</p><p>chuva, mas o Vento Oeste soprava suave e animado, vindo de Oceano, para</p><p>refrescar a alma dos homens. Para lá partiam, ao deixarem a Terra, aqueles</p><p>que se mantivessem puros de todo erro.</p><p>Sua recompensa é a vida para sempre livre de labuta.</p><p>Sem mais perturbar a terra ou as águas do mar</p><p>Com suas fortes mãos,</p><p>Trabalhando pela comida que não sacia.</p><p>Mas honrados pelos deuses eles vivem</p><p>Uma vida em que não há mais lágrimas.</p><p>Em volta dessas ilhas abençoadas sopram suaves ventos marinhos</p><p>E �ores douradas cintilam nas árvores</p><p>E também sobre as águas.</p><p>Agora estava tudo pronto para a aparição dos homens. Até mesmo os</p><p>lugares para onde os bons e os maus deveriam ir depois da morte já tinham</p><p>sido organizados. Estava na hora de os seres humanos serem criados. Há</p><p>mais de um relato sobre o que aconteceu. Alguns dizem que a tarefa foi</p><p>delegada pelos deuses a Prometeu, o titã que havia tomado o partido de</p><p>Zeus na guerra contra os titãs, e a seu irmão Epimeteu. Prometeu, cujo</p><p>nome signi�ca aquele que pensa antes de agir, era muito sensato, mais</p><p>sensato até do que os deuses, mas Epimeteu, que signi�ca aquele que age</p><p>antes de pensar, era um indivíduo desmiolado, que invariavelmente seguia</p><p>seu primeiro impulso e depois mudava de ideia. E foi o que ele fez nesse</p><p>caso. Antes de criar os homens, con�ou todos os melhores dons aos animais:</p><p>força, rapidez, coragem e astúcia, pelos, penas, asas, conchas e assim por</p><p>diante, até não sobrar nada de bom para os homens, nenhuma cobertura</p><p>protetora e nenhuma qualidade que os tornasse páreo para os animais.</p><p>Tarde demais, como de costume, Epimeteu se arrependeu e pediu ajuda ao</p><p>irmão. Prometeu então assumiu a tarefa da criação e pensou num jeito de</p><p>tornar os homens superiores. Criou-os com uma forma mais nobre do que a</p><p>dos animais, eretos como os deuses, e então foi até o céu, até o Sol, onde</p><p>acendeu uma tocha para trazer o fogo, uma proteção para os homens muito</p><p>melhor do que qualquer outra, fossem pelos, penas, força ou velocidade.</p><p>E agora, embora fracos e de vida curta,</p><p>Os homens tinham o fogo �amejante e dele</p><p>Aprenderam muitos ofícios.</p><p>Segundo outra história, foram os próprios deuses que criaram os</p><p>homens. Primeiro eles criaram uma raça dourada. Embora mortais, esses</p><p>seres viviam como deuses, sem sofrimento no coração e longe de qualquer</p><p>labuta ou dor. Seus trigais fruti�cavam sozinhos, em abundância. Eles</p><p>também eram ricos em rebanhos e amados pelos deuses. Ao morrer,</p><p>tornavam-se espíritos puros e bondosos, os guardiães da humanidade.</p><p>Nesse relato da criação, os deuses pareciam decididos a experimentar</p><p>com os diversos metais e, de modo um tanto curioso, procediam de maneira</p><p>decrescente, do excelente para o bom, em seguida ao pior e assim por diante.</p><p>Depois de tentarem o ouro, passaram para a prata. Essa segunda raça de</p><p>prata era muito inferior à primeira. Esses seres também eram tão pouco</p><p>inteligentes que não conseguiam evitar ferir uns aos outros. Eles também</p><p>morreram, mas, ao contrário da raça de ouro, seu espírito não continuou</p><p>vivo depois. A raça seguinte foi a de bronze. Eram homens terríveis, dotados</p><p>de uma força imensa, e amavam tanto a guerra e a violência que foram</p><p>completamente destruídos pelas próprias mãos. Mas isso foi bom, pois eles</p><p>foram seguidos por uma raça esplêndida de heróis semelhantes a deuses,</p><p>que travaram guerras gloriosas e partiram em grandes aventuras que os</p><p>homens vêm narrando e cantando ao longo dos séculos desde então. Estes</p><p>partiram, en�m, para as Ilhas dos Abençoados, onde viveram para sempre</p><p>em perfeita felicidade.</p><p>A quinta raça é a que hoje povoa a Terra: a raça de ferro. Esses homens</p><p>vivem em tempos maus e há muita maldade em sua índole, por isso eles</p><p>nunca descansam da labuta e da tristeza. Vão piorando com o passar das</p><p>gerações: os �lhos são sempre inferiores aos pais. Chegará um tempo em</p><p>que terão se tornado tão maus que irão venerar o poder, a força suplantará o</p><p>que é certo e o respeito do que é bom deixará de existir. Por �m, quando</p><p>nenhum homem mais sentir raiva diante da injustiça ou vergonha diante da</p><p>presença dos miseráveis, Zeus os destruirá também. Mas, mesmo então,</p><p>talvez algo possa ser feito, contanto que o povo comum se rebele e derrube</p><p>os governantes que o oprimem.</p><p>Por mais diferentes que sejam, essas duas histórias sobre a criação – a das</p><p>cinco idades e a de Prometeu e Epimeteu – concordam em relação a uma</p><p>coisa. Durante muito tempo, e certamente durante a feliz Idade de Ouro,</p><p>havia somente homens na Terra; não existiam mulheres. Zeus as criou mais</p><p>tarde, com raiva de Prometeu por ter se importado tanto com os homens.</p><p>Prometeu não apenas tinha roubado o fogo para os homens; tinha também</p><p>garantido que eles �cassem com a melhor parte de qualquer animal</p><p>sacri�cado, e os deuses, com a pior. Ele esquartejou um grande boi e</p><p>embrulhou no couro as partes boas e comestíveis, disfarçando-as ainda mais</p><p>ao empilhar as vísceras por cima. Ao lado dessa pilha, ergueu outra com</p><p>todos os ossos, engenhosamente dispostos e cobertos de gordura reluzente, e</p><p>pediu a Zeus que escolhesse uma das duas. Zeus escolheu a gordura branca e</p><p>zangou-se ao ver os ossos astutamente disfarçados. Mas ele tinha feito sua</p><p>escolha e precisava respeitá-la. Dali em diante, apenas gordura e ossos eram</p><p>queimados para os deuses em seus altares. Os homens guardavam a boa</p><p>carne para si.</p><p>Mas o pai dos homens e dos deuses não era do tipo que suportava ser</p><p>tratado assim. Ele jurou se vingar, primeiro dos humanos, depois, do amigo</p><p>dos humanos. Criou um grande mal para os homens, uma coisa bela e</p><p>encantadora de se ver, com a aparência de uma tímida donzela, e todos os</p><p>deuses a cobriram de presentes: trajes de prata, um véu bordado sublime aos</p><p>olhos, guirlandas cintilantes de �ores e uma coroa de ouro que irradiava</p><p>grande beleza. Por causa do que lhe deram, eles a batizaram de Pandora, que</p><p>signi�ca “o presente de todos”. Depois de criado esse lindo desastre, Zeus a</p><p>mostrou e, ao vê-lo, tanto deuses como homens foram tomados de</p><p>assombro. Foi dela, a primeira mulher, que nasceu a raça das mulheres, que</p><p>são um mal para os homens e cuja índole os leva a fazer o mal.</p><p>Outra história sobre Pandora é que a origem de todo o infortúnio não</p><p>foi sua índole má, mas somente sua curiosidade. Os deuses a presentearam</p><p>com uma caixa na qual cada um tinha posto algo perigoso e a proibiram de</p><p>abri-la. Então a mandaram ao encontro de Epimeteu, que a recebeu de bom</p><p>grado, muito embora Prometeu o tivesse</p><p>avisado para nunca aceitar nada de</p><p>Zeus. Epimeteu a recebeu e então, quando aquela coisa perigosa, uma</p><p>mulher, se tornou sua, ele entendeu como tinha sido bom o conselho do</p><p>irmão. Pois Pandora era muito curiosa. Ela precisava saber o que havia</p><p>dentro da caixa. Um dia, ergueu a tampa e de lá saíram incontáveis pestes,</p><p>sofrimentos e problemas para a humanidade. Aterrorizada, Pandora fechou</p><p>a tampa outra vez, mas era tarde. Dentro da caixa, porém, havia uma coisa</p><p>boa: a esperança. Era o único bem que a caixa continha entre os muitos</p><p>males e até hoje continua a ser o único reconforto dos humanos em caso de</p><p>infortúnio. Assim, os mortais aprenderam que não é possível derrotar Zeus</p><p>nem algum dia enganá-lo. O sábio e generoso Prometeu também descobriu</p><p>isso.</p><p>Depois de punir os homens dando-lhes as mulheres, Zeus voltou sua</p><p>atenção para o principal dos pecadores. O novo líder dos deuses devia muito</p><p>a Prometeu por tê-lo ajudado a derrotar os outros titãs, mas essa dívida foi</p><p>esquecida. Zeus mandou seus ajudantes, a Força e a Violência, capturarem</p><p>Prometeu e o levarem para o Cáucaso, onde ele foi amarrado</p><p>Pandora ergueu a tampa e de lá saíram pestes e sofrimentos para a humanidade.</p><p>Num rochedo comprido, alto e escarpado,</p><p>Com correntes inquebrantáveis que ninguém é capaz de romper,</p><p>e lhe disseram:</p><p>Para todo o sempre o intolerável presente será seu tormento.</p><p>E aquele que o libertará ainda está por nascer.</p><p>É esse o fruto que você colhe por ter se aliado aos homens.</p><p>Você, também um deus, não temeu a ira divina,</p><p>Mas deu aos mortais uma honra que eles não mereciam.</p><p>E, portanto, deve guardar este triste rochedo,</p><p>Sem descanso, sem sono, sem um instante de trégua.</p><p>Os gemidos serão sua voz; os lamentos, suas únicas palavras.</p><p>O motivo para in�igir essa tortura não era só punir Prometeu, mas</p><p>também forçá-lo a revelar um segredo muito importante para o senhor do</p><p>Olimpo. Zeus sabia que o destino, que tudo faz acontecer, havia decretado</p><p>que, um dia, um �lho seu o tiraria do trono e expulsaria os deuses do seu lar</p><p>celestial, mas somente Prometeu sabia quem seria a mãe desse �lho.</p><p>Enquanto ele agonizava amarrado ao rochedo, Zeus despachou seu</p><p>mensageiro Hermes para lhe pedir que revelasse o segredo. Prometeu disse a</p><p>Hermes:</p><p>Vá convencer a onda do mar a não quebrar,</p><p>Será tão difícil quando tentar convencer a mim.</p><p>Hermes alertou-o de que, caso insistisse naquele silêncio obstinado,</p><p>Prometeu teria de suportar sofrimentos ainda mais terríveis:</p><p>Uma águia vermelha de sangue</p><p>Virá, sem ter sido convidada para o seu banquete.</p><p>Durante o dia inteiro irá bicar seu corpo,</p><p>Devorando com fúria o fígado enegrecido.</p><p>Mas nada, nenhuma ameaça ou tortura conseguiu quebrar Prometeu.</p><p>Embora seu corpo estivesse preso, seu espírito estava livre. Ele se recusou a</p><p>ceder à crueldade e à tirania. Sabia ter ajudado Zeus, e sabia ter feito a coisa</p><p>certa ao se apiedar da impotência dos mortais. Seu sofrimento era</p><p>absolutamente injusto e ele não iria ceder ao poder brutal, a despeito do</p><p>custo. Então disse a Hermes:</p><p>Não há força que me obrigue a falar.</p><p>Que Zeus lance seus raios de fogo</p><p>E com as asas brancas da neve,</p><p>Com o trovão e o terremoto,</p><p>Estarreça o mundo atordoado.</p><p>Nada disso me fará mudar de ideia.</p><p>Hermes exclamou:</p><p>Ora, isso são devaneios que se poderia ouvir de um louco</p><p>e deixou Prometeu sofrer o que precisava sofrer. Gerações mais tarde</p><p>sabemos que ele foi solto, mas como ou por quê não é dito com clareza em</p><p>lugar algum. Segundo uma estranha história, o centauro Quíron, embora</p><p>imortal, dispôs-se a morrer por ele e foi autorizado a fazê-lo. Quando estava</p><p>insistindo com Prometeu para ceder ao pedido de Zeus, Hermes falou sobre</p><p>isso, mas de tal modo a fazer com que parecesse um incrível sacrifício:</p><p>Não espere um �m para essa agonia</p><p>A menos que um deus se ofereça para sofrer por você.</p><p>Assuma sua dor como dele e, no seu lugar,</p><p>Desça até onde o sol se transforma em escuridão,</p><p>Nas negras profundezas da morte.</p><p>Mas foi isso que Quíron fez, e Zeus, pelo visto, o aceitou como</p><p>substituto. Ficamos sabendo também que Hércules matou a águia e libertou</p><p>Prometeu das correntes, e que Zeus permitiu que isso fosse feito. Mas por</p><p>que Zeus mudou de ideia, e se Prometeu revelou o segredo ao ser libertado,</p><p>isso não sabemos. Uma coisa é certa, porém: seja lá o modo como os dois se</p><p>reconciliaram, não foi Prometeu quem cedeu. Seu nome perdurou ao longo</p><p>dos séculos, desde a época dos gregos até a nossa, como o do grande rebelde</p><p>contra as injustiças e a autoridade do poder.</p><p>Existe ainda outro relato sobre a criação dos homens. Na história das cinco</p><p>idades, os homens são descendentes da raça de ferro. Na de Prometeu, não</p><p>�ca claro se os homens que ele salvou da destruição pertenciam a essa raça</p><p>ou à de bronze. O fogo teria sido tão necessário para uma quanto para outra.</p><p>Na terceira história, os homens vêm de uma raça de pedra. Essa história</p><p>começa com o dilúvio.</p><p>Por toda a Terra, os homens se tornaram tão malvados que Zeus, por</p><p>�m, resolveu destruí-los. Ele decidiu</p><p>Misturar tormenta e tempestade pela terra sem �m</p><p>E extinguir por completo o homem mortal.</p><p>Ele mandou a enchente. Pediu ajuda a seu irmão, o senhor dos mares, e</p><p>juntos, com chuvas torrenciais do céu, e rios desgovernados na Terra, os dois</p><p>inundaram tudo.</p><p>O poder das águas subjugou a terra escura</p><p>até os cumes das mais altas montanhas. Apenas o altíssimo monte</p><p>Parnaso não foi inteiramente coberto e o pedacinho de terra seca em seu</p><p>topo foi o meio que a raça humana encontrou para escapar à destruição.</p><p>Depois de uma chuva que durou nove dias e nove noites, apareceu �utuando</p><p>ali o que parecia ser uma grande arca de madeira, mas seguros lá dentro</p><p>estavam dois seres humanos vivos, um homem e uma mulher. Eram</p><p>Deucalião e Pirra; ele, o �lho de Prometeu, e ela, sua sobrinha, �lha de</p><p>Epimeteu e Pandora. Prometeu, a pessoa mais sábia de todo o Universo,</p><p>tinha conseguido proteger a própria família. Sabia que o dilúvio iria chegar e</p><p>pedira ao �lho que construísse a arca, a equipasse com provisões e nela</p><p>embarcasse junto com a esposa.</p><p>Felizmente Zeus não se ofendeu, porque tanto Deucalião como Pirra</p><p>eram adoradores dedicados e �éis dos deuses. Quando a arca chegou a terra</p><p>�rme e ele saíram, sem ver qualquer sinal de vida em lugar algum, somente</p><p>uma imensidão de água, Zeus se apiedou deles e secou a enchente. Aos</p><p>poucos, como a maré que recua, o mar e os rios baixaram e a terra secou</p><p>outra vez. Pirra e Deucalião desceram do monte Parnaso; eram as únicas</p><p>criaturas vivas num mundo morto. Encontraram um templo coberto de</p><p>limo, mas não inteiramente destruído, e ali agradeceram por terem escapado</p><p>e rezaram pedindo ajuda em sua terrível solidão.</p><p>Ouviram uma voz dizer:</p><p>– Cubram a cabeça com véu e lancem atrás de si os ossos de sua mãe.</p><p>Essa ordem os deixou horrorizados.</p><p>Pirra protestou:</p><p>– Não nos atrevemos a fazer tal coisa!</p><p>Deucalião foi obrigado a concordar com ela, mas tentou pensar no que</p><p>poderia haver por trás daquelas palavras e, de repente, entendeu seu</p><p>signi�cado.</p><p>– A mãe de todos é a Terra – disse ele à esposa. – Seus ossos são as</p><p>pedras. Podemos lançá-las atrás de nós sem fazer nada errado.</p><p>E eles assim �zeram, e as pedras, ao caírem, assumiram forma humana.</p><p>Esses seres foram chamados de Povo da Pedra e foram uma raça dura,</p><p>resistente, como era de esperar, e de fato como precisavam ser para salvar a</p><p>Terra da desolação deixada pelo dilúvio.</p><p>CAPÍTULO IV</p><p>Os primeiros heróis</p><p>PROMETEU E IO</p><p>O material desta história provém de dois poetas, o grego Ésquilo e o romano</p><p>Ovídio, separados por 450 anos e ainda mais por seus dons e</p><p>temperamentos. Os dois são as melhores fontes para esta narrativa. É fácil</p><p>distinguir as partes contadas por cada um: Ésquilo, grave e direto, Ovídio,</p><p>leve e divertido. O detalhe sobre as mentiras que os amantes contam é típico</p><p>de Ovídio, como também a pequena história sobre Siringe.</p><p>Na época em que Prometeu tinha acabado de dar o fogo aos homens e ser</p><p>acorrentado</p><p>ao pico rochoso no Cáucaso, ele recebeu uma estranha visita.</p><p>Uma criatura alada escalou, muito abalada, as montanhas e escarpas até</p><p>onde ele estava. Parecia uma novilha, mas falava como uma menina</p><p>aparentemente transtornada de tristeza. Ao ver Prometeu, ela se deteve.</p><p>Exclamou:</p><p>O que vejo aqui?</p><p>Uma forma castigada pela tormenta,</p><p>Presa ao rochedo.</p><p>Você cometeu algum erro?</p><p>É essa a sua punição?</p><p>Onde estou eu?</p><p>Fale com uma pobre viajante.</p><p>Chega – já fui su�cientemente testada –</p><p>Minha errância – esta longa errância.</p><p>Mas não achei lugar algum</p><p>Em que deixar meu sofrimento.</p><p>Sou uma menina que lhe fala,</p><p>Mas tenho chifres na cabeça.</p><p>Prometeu a reconheceu. Ele sabia sua história e disse o seu nome:</p><p>Eu a conheço, menina: você é Io, �lha de Ínaco.</p><p>Com amor esquentou o coração do deus</p><p>E Hera a odeia. É ela</p><p>Quem a condena a essa fuga sem �m.</p><p>O espanto conteve o frenesi de Io. Ela �cou parada, tomada de</p><p>assombro. Seu nome, pronunciado por aquele estranho ser, naquele lugar</p><p>estranho e desolado! Ela implorou:</p><p>Quem é você, sofredor, que diz a verdade</p><p>A alguém que sofre?</p><p>E Prometeu respondeu:</p><p>Você está vendo Prometeu, que deu o fogo aos mortais.</p><p>Io então �cou conhecendo a ele e sua história.</p><p>Você, aquele que socorreu toda a raça dos homens?</p><p>Você, aquele Prometeu, o ousado, o resistente?</p><p>A conversa entre eles �uiu livremente. Prometeu lhe contou como Zeus</p><p>o havia tratado e Io lhe disse que Zeus era o motivo pelo qual ela, antes uma</p><p>princesa e uma menina feliz, fora transformada em</p><p>Um animal, um animal faminto,</p><p>A correr num frenesi de saltos e pulos desengonçados.</p><p>Ah, que vergonha…</p><p>A causa direta de seus infortúnios era a ciumenta Hera, esposa de Zeus,</p><p>mas, por trás de tudo, a causa era o próprio Zeus. Ele se apaixonou por Io e</p><p>começou a mandar</p><p>O tempo todo, ao meu quarto de donzela,</p><p>Visões noturnas</p><p>E a me convencer com palavras gentis:</p><p>“Ó menina, feliz menina,</p><p>Por que ainda é donzela?</p><p>A �echa do desejo acertou Zeus.</p><p>Por você ele se abrasou.</p><p>É com você que ele quer conquistar o amor.”</p><p>Sempre, toda noite eu tinha esses sonhos.</p><p>Maior ainda que o amor de Zeus, porém, era o medo que Io sentia do</p><p>ciúme de Hera. Ele agiu, porém, com muito pouca sensatez para o pai dos</p><p>deuses e dos homens ao tentar esconder a si e Io envolvendo a Terra numa</p><p>nuvem tão espessa e escura que uma noite repentina pareceu expulsar a luz</p><p>clara do dia. Hera sabia muito bem que aquele estranho acontecimento</p><p>tinha um motivo e, na mesma hora, descon�ou do marido. Quando não</p><p>conseguiu encontrá-lo em lugar nenhum do céu, desceu rapidamente à</p><p>Terra e ordenou à nuvem que se afastasse. Mas Zeus também tinha sido</p><p>rápido. Quando Hera o viu, ele estava em pé junto a uma linda novilha</p><p>branca: era Io, claro. Zeus jurou ser aquela a primeira vez que a via, depois</p><p>de ela brotar recém-nascida de dentro da terra. E isso, segundo Ovídio,</p><p>mostra que as mentiras que os amantes contam não deixam os deuses</p><p>zangados. Mas mostra também que essas mentiras não têm grande utilidade,</p><p>pois Hera não acreditou em nada daquilo. Disse que a novilha era muito</p><p>bonita e perguntou se Zeus faria o favor de lhe dar o animal de presente. Por</p><p>mais que ele lamentasse, viu na hora que recusar revelaria todo o embuste.</p><p>Que desculpa poderia inventar? Uma vaquinha insigni�cante… Com</p><p>relutância, Zeus entregou Io à esposa. Hera sabia muito bem como mantê-la</p><p>longe do marido.</p><p>Hera con�ou Io aos cuidados de Argos, um arranjo excelente para o que</p><p>ela queria, já que Argos tinha cem olhos. Com um vigia assim, capaz de</p><p>dormir com alguns de seus olhos e �car de guarda com os outros, Zeus</p><p>parecia não ter o que fazer. O deus, assistindo à infelicidade de Io,</p><p>transformada num animal e expulsa de casa, não se atreveu a ajudá-la. Por</p><p>�m, porém, recorreu ao �lho Hermes, o mensageiro dos deuses, e lhe disse</p><p>que precisava encontrar um jeito de matar Argos. Não havia deus mais</p><p>esperto do que Hermes. Assim que chegou à Terra vindo do céu, ele deixou</p><p>de lado tudo que o identi�cava como ser divino e abordou Argos como um</p><p>camponês, tocando uma suave melodia numa �auta de junco. Argos gostou</p><p>do som da �auta e pediu ao músico que chegasse mais perto. “Pode até se</p><p>sentar ao meu lado nesta pedra”, disse ele. “Fica na sombra, como vê… ideal</p><p>para um pastor.” Embora nada pudesse ter sido melhor para os planos de</p><p>Hermes, nada aconteceu. Ele tocou, então se pôs a falar ininterruptamente,</p><p>do modo mais sonolento e monótono que conseguiu; parte dos cem olhos</p><p>adormecia, mas parte continuava sempre acordada. No �m, porém, uma</p><p>história deu certo: a do deus Pã, de como ele amou uma ninfa chamada</p><p>Siringe, que fugiu dele; quando ele ia agarrá-la, ela foi transformada pelas</p><p>irmãs ninfas numa touceira de juncos. “Mesmo assim você vai ser minha”,</p><p>disse Pã, e com aquilo em que ela havia se transformado ele fabricou</p><p>Uma �auta de pastor</p><p>Com juncos unidos por cera de abelha.</p><p>A pequena história não parece ser do tipo a induzir especialmente o</p><p>sono, mas Argos achou que sim. Todos os seus olhos adormeceram. Hermes</p><p>o matou no ato, claro, mas Hera pegou os olhos e os pôs na cauda do pavão,</p><p>sua ave preferida.</p><p>Io parecia estar livre, mas não: Hera recomeçou a atormentá-la na</p><p>mesma hora. Mandou uma mutuca que a enlouqueceu com suas picadas. Io</p><p>disse a Prometeu:</p><p>Ela me faz andar por toda a longa margem do mar.</p><p>Não posso parar nem para comer nem para beber.</p><p>Ela não me deixa dormir.</p><p>Prometeu tentou reconfortá-la, mas só conseguia lhe apontar um futuro</p><p>distante. O que havia no seu futuro imediato era ainda mais errância em</p><p>terras assustadoras. Naturalmente, a parte do mar pela qual Io primeiro</p><p>correu em seu frenesi seria batizada de mar Iônico (Jônico) em sua</p><p>homenagem, e o estreito do Bósforo, que signi�ca “a passagem da vaca”,</p><p>preservaria sua memória quando ela o atravessasse. Mas seu verdadeiro</p><p>consolo se daria quando ela �nalmente chegasse ao Nilo, onde Zeus lhe</p><p>devolveria a forma humana. Ela lhe daria um �lho chamado Épafo e viveria</p><p>dali em diante feliz e cheia de honrarias. E</p><p>Saiba disso: da sua raça nascerá</p><p>Um ser glorioso com um arco, de coração valente,</p><p>E ele me libertará.</p><p>O descendente de Io seria Hércules, o maior de todos os heróis, quase</p><p>superior aos próprios deuses, e a quem Prometeu deveria sua liberdade.</p><p>EUROPA</p><p>Esta história, tão semelhante ao conceito renascentista de clássico –</p><p>fantástica, delicadamente decorada e colorida – foi extraída de um poema</p><p>de Mosco, poeta alexandrino que viveu por volta do século II a.C., e é de</p><p>longe o melhor relato sobre o tema.</p><p>Io não foi a única jovem a conquistar fama geográ�ca por ter sido alvo da</p><p>paixão de Zeus. Houve outra, bem mais conhecida: Europa, �lha do rei de</p><p>Sídon. Mas, enquanto a pobre Io precisou pagar caro por esse privilégio,</p><p>Europa foi extremamente afortunada. Tirando alguns poucos instantes de</p><p>terror, quando se viu atravessando o mar profundo montada num touro, ela</p><p>nada sofreu. A história não diz o que Hera estava fazendo na ocasião, mas</p><p>�ca claro que a deusa estava distraída e seu marido, livre para fazer o que</p><p>quisesse.</p><p>Certa manhã, no céu, enquanto Zeus observava a Terra absorto, ele viu</p><p>de repente um espetáculo encantador. Europa tinha acordado cedo,</p><p>atormentada por um sonho como Io, só que, dessa vez, não com um deus</p><p>que a amava, mas com dois continentes que, cada qual em forma de mulher,</p><p>tentavam se apoderar dela: a Ásia, que a�rmava tê-la parido e, portanto, era</p><p>sua dona, e outra, ainda desconhecida, declarando que a tinha recebido</p><p>como presente de Zeus.</p><p>Uma vez despertada dessa estranha visão ocorrida na alvorada, horário</p><p>em que os verdadeiros sonhos visitam com mais frequência os mortais,</p><p>Europa decidiu não tentar voltar a dormir, mas chamar suas companheiras,</p><p>moças nascidas no mesmo ano que ela e todas de origem nobre, para</p><p>acompanhá-la até as lindas campinas �oridas junto ao mar. Aquele era o seu</p><p>local de encontro preferido, quisessem elas dançar, banhar seus belos corpos</p><p>na foz do rio ou colher �ores.</p><p>Dessa vez todas tinham</p><p>desse mundo tão estranho quanto belo.</p><p>No entanto, basta uma rápida consideração sobre os costumes dos povos</p><p>não civilizados de qualquer parte e qualquer era para furar essa bolha</p><p>romântica. Não há dúvida de que o homem primitivo, seja na atual Nova</p><p>Guiné, seja nas selvas pré-históricas de milênios atrás, não é nem nunca foi</p><p>uma criatura que povoa seu mundo com criações radiantes e lindas visões.</p><p>Horrores espreitavam nas �orestas, não ninfas e náiades. Lá vivia o Terror,</p><p>com sua companheira íntima, a Magia, e sua defesa mais comum, o</p><p>Sacrifício Humano. O principal recurso humano na tentativa de escapar da</p><p>ira de quaisquer divindades que pudessem estar à solta consistia em algum</p><p>rito mágico, desprovido de sentido mas carregado de poder, ou em alguma</p><p>oferenda feita à custa de dor e tristeza.</p><p>A MITOLOGIA DOS GREGOS</p><p>Esse quadro sombrio não poderia estar mais distante das histórias da</p><p>mitologia clássica. Os gregos não contribuem muito para o estudo de como</p><p>o homem dos tempos primitivos via o ambiente à sua volta. É digno de nota</p><p>o tratamento breve dos mitos gregos por parte dos antropólogos.</p><p>É claro que os gregos também tinham suas raízes no lodo primordial. É</p><p>claro que eles também, um dia, levaram uma vida selvagem, feia e brutal.</p><p>Mas o que seus mitos mostram é quão alto eles tinham se alçado acima da</p><p>sujeira e da violência ancestrais no momento em que passamos a ter</p><p>qualquer conhecimento a seu respeito. Só é possível encontrar, nas histórias,</p><p>uns poucos indícios dessa época.</p><p>Não sabemos quando essas histórias foram contadas pela primeira vez</p><p>em sua forma atual, mas é certo que a vida primitiva já tinha sido deixada</p><p>para trás havia muito. Os mitos, tais como os conhecemos hoje, são uma</p><p>criação de grandes poetas. O primeiro registro escrito da Grécia é a Ilíada. A</p><p>mitologia grega nasce com Homero, que, acredita-se, viveu não menos que</p><p>mil anos antes de Cristo. A Ilíada é, ou contém, a mais antiga literatura</p><p>grega, e é escrita numa linguagem rica, bela e sutil, decerto precedida por</p><p>séculos de esforço humano para se expressar com clareza e beleza, prova</p><p>indiscutível de civilização. As histórias da mitologia grega não lançam uma</p><p>luz esclarecedora sobre o que era a humanidade antiga. Elas lançam, isso</p><p>sim, farta luz sobre como eram os antigos gregos, uma questão</p><p>aparentemente mais importante para nós, que somos seus descendentes dos</p><p>pontos de vista intelectual, artístico e também político. Nada que</p><p>aprendamos a seu respeito nos é estranho.</p><p>Muitas vezes se fala sobre “o milagre grego”. O que essa expressão tenta</p><p>transmitir é o renascimento do mundo ocorrido com o despertar da Grécia.</p><p>“As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas.” Algo desse</p><p>tipo aconteceu na Grécia.</p><p>Por que isso aconteceu, ou quando, não temos a menor ideia. Tudo que</p><p>sabemos é que, nos primeiros poetas gregos, surgiu um ponto de vista novo,</p><p>jamais sonhado no mundo anterior a eles, mas que nunca desapareceria do</p><p>mundo posterior. Quando a Grécia se destacou, a humanidade se tornou o</p><p>centro do Universo, a coisa mais importante nele contida. Essa foi uma</p><p>revolução do pensamento. Até então, os seres humanos pouco signi�cavam.</p><p>Foi na Grécia que eles se deram conta, pela primeira vez, do que era a raça</p><p>humana.</p><p>Os gregos criaram seus deuses à própria imagem. Isso nunca antes havia</p><p>passado pela mente humana. Até então, os deuses não tinham qualquer</p><p>semelhança com a realidade. Eram diferentes de qualquer criatura viva. No</p><p>Egito eram um colosso gigantesco, imóvel, ao qual nem mesmo a</p><p>imaginação era capaz de atribuir movimento, tão �xo na pedra quanto as</p><p>gigantescas colunas dos templos, uma representação da forma humana</p><p>tornada propositalmente não humana. Ou então uma �gura rígida, uma</p><p>mulher com cabeça de gato a sugerir uma crueldade in�exível e desumana.</p><p>Ou ainda uma es�nge monstruosa e cheia de mistério, alheia a tudo que</p><p>vive. Na Mesopotâmia, eram baixos-relevos de formas animalescas</p><p>diferentes de qualquer animal conhecido até então, homens com cabeça de</p><p>pássaro e leões com cabeça de touro, ambos dotados de asas de águia,</p><p>criações de artistas desejosos de produzir algo jamais visto a não ser na</p><p>própria mente, a verdadeira consumação da irrealidade.</p><p>Ao contrário dos egípcios, os gregos criaram seus deuses à própria imagem.</p><p>Esses eram o tipo de deuses que o mundo anterior aos gregos venerava.</p><p>Mas basta imaginar ao seu lado qualquer estátua grega de um deus, tão</p><p>normal e natural em toda a sua beleza humana, para perceber que uma nova</p><p>ideia surgira no mundo. Com a sua chegada, o Universo se tornou racional.</p><p>O apóstolo Paulo disse que era preciso entender o invisível por meio do</p><p>visível. Esse não é um conceito hebraico, mas grego. No mundo antigo,</p><p>somente na Grécia as pessoas se preocupavam com o visível; elas</p><p>encontravam a satisfação de seus desejos no que era de fato o mundo à sua</p><p>volta. O escultor observava os atletas disputando os jogos e sentia que nada</p><p>que pudesse imaginar seria tão belo quanto aqueles corpos jovens e fortes.</p><p>Então esculpia sua estátua de Apolo. O contador de histórias encontrava</p><p>Hermes entre as pessoas por quem passava na rua. Ele via o deus “como um</p><p>rapaz naquela idade em que a juventude é mais bela”, como diz Homero. Os</p><p>artistas e poetas gregos se deram conta do esplendor que um homem podia</p><p>ser: ereto, forte, veloz. Ele era a personi�cação da sua busca por beleza. Esses</p><p>artistas e poetas não tinham desejo algum de criar uma fantasia forjada na</p><p>própria mente. Toda a arte e todo o pensamento da Grécia giravam em</p><p>torno dos seres humanos.</p><p>Deuses humanos naturalmente faziam do céu um lugar agradável e</p><p>familiar. Os gregos se sentiam em casa ali. Sabiam exatamente o que seus</p><p>divinos habitantes lá faziam, o que comiam e bebiam, onde faziam seus</p><p>banquetes e como se divertiam. É claro que os deuses deveriam ser temidos,</p><p>pois eram muito poderosos e muito perigosos quando zangados, mas, com o</p><p>devido cuidado, um humano podia se sentir razoavelmente à vontade em</p><p>sua companhia. Era, inclusive, perfeitamente livre para rir deles. Ao tentar</p><p>esconder da esposa seus casos de amor e ser descoberto, Zeus era uma</p><p>grande fonte de graça. Os gregos se divertiam com ele e o apreciavam ainda</p><p>mais por causa disso. Hera era aquele personagem clássico da comédia, a</p><p>típica esposa enciumada, e seus truques engenhosos para constranger o</p><p>marido e punir as rivais, longe de desagradar aos gregos, divertiam-nos</p><p>tanto quanto as versões modernas de Hera nos divertem hoje. Essas histórias</p><p>geravam um sentimento de amizade. Rir diante de uma es�nge egípcia ou de</p><p>um monstro alado assírio era algo inconcebível, mas no Olimpo o riso era</p><p>perfeitamente natural e tornava os deuses simpáticos.</p><p>Também na Terra as divindades eram extrema e humanamente</p><p>atraentes. Na forma de lindos rapazes e moças, povoavam os bosques, as</p><p>�orestas, os rios e o mar, em harmonia com a formosa terra e com as águas</p><p>cintilantes.</p><p>Esse é o milagre da mitologia grega: um mundo humanizado, homens</p><p>libertados do medo paralisante de um Desconhecido onipotente. As</p><p>terríveis incompreensões veneradas em outras partes e os espíritos</p><p>pavorosos que povoavam terra, ar e mar foram banidos da Grécia. Dizer que</p><p>os homens que criaram os mitos não tinham apreço pelo irracional e</p><p>amavam os fatos pode parecer estranho, mas é verdade, por mais</p><p>extravagantes e fantásticas que sejam algumas de suas histórias. Qualquer</p><p>um que as leia com atenção descobre que até mesmo aquelas que fazem</p><p>menos sentido ocorrem num mundo de essência racional e prática.</p><p>Hércules, cuja vida foi um grande combate contra monstros absurdos,</p><p>sempre foi apresentado como um nativo de Tebas. O local exato em que</p><p>Afrodite nasceu da espuma podia ser visitado por qualquer turista da</p><p>Antiguidade: �cava no litoral da ilha de Citera. O garanhão alado Pégaso,</p><p>depois de passar o dia voando, ia dormir todas as noites num confortável</p><p>estábulo em Corinto. Uma ambientação próxima e conhecida conferia</p><p>realidade a todos os</p><p>levado cestos, pois sabiam que as �ores agora</p><p>estavam perfeitas. O cesto de Europa era feito de ouro, lindamente gravado</p><p>com ilustrações que representavam, fato um tanto estranho, a história de Io,</p><p>suas andanças na forma de uma vaca, a morte de Argos e Zeus a tocá-la de</p><p>leve com sua mão divina para transformá-la de novo em mulher. Como se</p><p>pode notar, o cesto era um objeto maravilhoso e fora fabricado por ninguém</p><p>menos que Hefesto, o artesão celestial do Olimpo.</p><p>Por mais belo que fosse o cesto, havia �ores igualmente belas com as</p><p>quais enchê-lo: perfumados narcisos, jacintos, violetas e açafrões amarelos, e</p><p>as mais radiosas de todas, o esplendor carmim das rosas selvagens. As jovens</p><p>as colheram com deleite e percorreram toda a campina, cada qual mais bela</p><p>do que a outra; mesmo assim, Europa se destacou entre elas da mesma</p><p>forma que a deusa do amor suplanta as irmãs Graças. E foi justamente a</p><p>deusa do amor a responsável pelo que aconteceu a seguir. Enquanto Zeus,</p><p>no céu, assistia à bela cena, aquela que é a única capaz de vencê-lo – além de</p><p>seu �lho, o travesso menino Cupido – disparou uma de suas �echas no seu</p><p>coração e Zeus se apaixonou loucamente por Europa nesse exato instante.</p><p>Embora Hera estivesse longe, ele achou melhor tomar cuidado e, antes de se</p><p>mostrar a Europa, se transformou num touro. Não daqueles que se poderia</p><p>ver num curral ou pastando num campo, mas um touro mais lindo do que</p><p>qualquer outro, de pelo avermelhado brilhante, com um círculo prateado na</p><p>testa e chifres que pareciam o crescente da jovem lua. Ele parecia tão manso</p><p>quanto belo, de modo que as moças não se assustaram com sua chegada,</p><p>mas se reuniram para acariciá-lo e sentir o perfume celestial que emanava</p><p>dele, mais delicioso até do que a campina �orida. Foi de Europa que ele se</p><p>aproximou e, quando ela delicadamente o tocou, ele deu um mugido tão</p><p>sonoro que nenhuma �auta poderia ter produzido um som mais melodioso.</p><p>O rapto de Europa</p><p>Ele então se deitou aos pés da moça, parecendo lhe mostrar as costas</p><p>largas, e ela gritou para as outras irem montá-lo também.</p><p>Pois ele certamente nos deixará montá-lo,</p><p>Já que é tão manso, dócil e suave de aspecto.</p><p>Não se parece com um touro, mas com um homem bom e �el,</p><p>Exceto por não saber falar.</p><p>Sorrindo, Europa se sentou nas costas do touro, mas as outras, embora</p><p>tenham ido depressa atrás dela, não tiveram essa chance. O touro deu um</p><p>salto e correu a toda para a beira do mar, mas, em vez de entrar na água,</p><p>partiu por cima da vasta superfície. As ondas se acalmavam diante dele e</p><p>toda uma procissão surgiu das profundezas e passou a acompanhá-lo: os</p><p>estranhos deuses do mar, nereidas montadas em gol�nhos, tritões tocando</p><p>suas cornetas e o poderoso senhor dos mares em pessoa, irmão do próprio</p><p>Zeus.</p><p>Europa, assustada em igual medida pelas espantosas criaturas que via e</p><p>pelas águas que se moviam por toda a sua volta, agarrou com uma das mãos</p><p>o imenso chifre do touro e, com a outra, segurou o vestido roxo, para não</p><p>molhá-lo. Os ventos</p><p>In�aram das profundezas como se in�a</p><p>A vela de um navio e com a mesma delicadeza</p><p>A carregaram.</p><p>Aquilo não podia ser um touro, pensou Europa, mas com toda a certeza</p><p>era um deus; e pôs-se a implorar a ele, suplicando que tivesse pena dela e</p><p>não a deixasse sozinha em algum lugar desconhecido. Ele lhe respondeu e</p><p>mostrou-lhe que ela havia acertado ao adivinhar quem ele era. Não tinha</p><p>nada a temer, falou. Ele era Zeus, o maior de todos os deuses, e tudo que</p><p>estava fazendo era por amor a ela. Estava levando-a para Creta, sua ilha,</p><p>onde a mãe o havia escondido de Cronos depois de ele nascer, e lá ela lhe</p><p>daria</p><p>Gloriosos �lhos cujos cetros governarão</p><p>Todos os homens da Terra.</p><p>Tudo aconteceu como Zeus tinha dito, claro. Creta surgiu ao longe, eles</p><p>aportaram e as Estações, guardiãs dos portões do Olimpo, vestiram Europa</p><p>para as bodas. Seus �lhos foram homens famosos, não só neste mundo, mas</p><p>no outro, onde dois deles, Minos e Radamanto, foram recompensados por</p><p>sua justiça na Terra, sendo nomeados juízes dos mortos. Mas o nome que</p><p>permanece mais conhecido é o da própria Europa.</p><p>O CICLOPE POLIFEMO</p><p>A primeira parte desta história remonta à Odisseia; a segunda é contada</p><p>apenas por Teócrito, poeta alexandrino do século III a.C.; a última não</p><p>poderia ter sido escrita por ninguém senão o satirista Luciano, no século II</p><p>d.C. Mil anos no mínimo separam o início do �m. O vigor e a potência da</p><p>narrativa de Homero, as imaginativas cenas narradas por Teócrito e o</p><p>cinismo inteligente de Luciano ilustram, em sua gradação, a evolução da</p><p>literatura grega.</p><p>Todas as monstruosas formas de vida a serem criadas no início, as criaturas</p><p>de cem mãos, os Gigantes e as outras, foram permanentemente banidas da</p><p>Terra ao ser vencidas, com uma única exceção: os ciclopes. Estes tiveram</p><p>permissão para voltar e no �m acabaram se tornando grandes protegidos de</p><p>Zeus. Trabalhadores fantásticos, eram eles que forjavam seus raios. No início</p><p>eram apenas três, mas depois viraram muitos. Zeus lhes deu um lar numa</p><p>terra aprazível, onde os vinhedos e trigais davam frutos abundantes sem que</p><p>fosse preciso semear nem arar. Os ciclopes tinham também grandes</p><p>rebanhos de ovelhas e cabras, e levavam uma vida folgada. Sua ferocidade e</p><p>seu temperamento selvagem, porém, não arrefeceram: eles não tinham leis</p><p>nem tribunais de justiça e cada um agia como bem entendesse. Não era um</p><p>lugar bom para forasteiros.</p><p>Muito tempo depois de Prometeu ser punido, quando os descendentes</p><p>dos homens que ele ajudara já tinham se civilizado e aprendido a construir</p><p>navios que navegavam até lugares distantes, um príncipe grego atracou seu</p><p>barco na margem dessa terra perigosa. Seu nome era Odisseu (Ulisses em</p><p>latim) e ele estava a caminho de casa após destruir Troia. Nem na mais</p><p>árdua batalha que travou com os troianos ele chegou tão perto da morte</p><p>quanto nessa ocasião.</p><p>Não muito longe do local em que sua tripulação tinha ancorado o navio</p><p>havia uma caverna, aberta na direção do mar e muito espaçosa. Parecia</p><p>desabitada; diante da entrada havia uma sólida cerca. Odisseu partiu com</p><p>doze de seus homens para explorá-la. Precisavam de comida e Odisseu levou</p><p>consigo um cantil cheio de um vinho forte e saboroso para dar a quem</p><p>vivesse ali em troca de hospitalidade. O portão da cerca não estava fechado e</p><p>eles entraram na caverna. Embora não houvesse ninguém lá dentro, era</p><p>claramente a morada de alguém muito próspero. Muitos currais lotados de</p><p>cordeiros e cabritos margeavam as paredes. Havia também prateleiras</p><p>repletas de queijos e baldes cheios de leite, um deleite para os viajantes</p><p>cansados de navegar, que comeram e beberam enquanto esperavam o dono</p><p>da caverna chegar.</p><p>Ele por �m apareceu, medonho e gigantesco, alto como uma imensa</p><p>escarpa de montanha. Tocando seu rebanho, entrou e fechou a entrada da</p><p>caverna com uma imensa placa de pedra. Então olhou em volta, avistou os</p><p>forasteiros e exclamou, com uma voz terrível e ribombante: “Quem são</p><p>vocês para entrar na casa de Polifemo sem serem convidados? Comerciantes</p><p>ou piratas ladrões?” Os marinheiros �caram apavorados com seu aspecto e</p><p>sua voz, mas Odisseu se apressou em responder, e com �rmeza: “Somos</p><p>guerreiros naufragados de Troia e seus hóspedes sob a proteção de Zeus,</p><p>deus da Hospitalidade.” Mas Polifemo rugiu, dizendo que não se importava</p><p>com Zeus. Era maior do que qualquer deus e não temia nenhum deles. Ao</p><p>dizer isso, estendeu seus braços fortes e em cada mão imensa agarrou um</p><p>dos homens e esmigalhou seus miolos no chão. Bem devagar, banqueteou-se</p><p>com eles até o último pedaço e então, satisfeito, esticou-se no chão da</p><p>caverna e dormiu. Estava a salvo de qualquer ataque. Ninguém exceto ele</p><p>conseguiria fazer rolar a imensa pedra que fechava a entrada e, se os homens</p><p>horrorizados tivessem conseguido reunir coragem e força su�cientes para</p><p>matá-lo, teriam �cado presos ali para sempre.</p><p>Durante essa longa e terrível noite, Odisseu foi obrigado a encarar a</p><p>verdade cruel do que acontecera</p><p>e do que iria acontecer com todos eles caso</p><p>não conseguisse pensar num jeito de fugir. Mas ainda não havia tido</p><p>nenhuma ideia quando o dia raiou e o rebanho reunido na entrada da</p><p>caverna acordou o ciclope. Foi obrigado a ver dois outros companheiros</p><p>seus morrerem, pois Polifemo fez o desjejum da mesma forma que tinha</p><p>feito a ceia. A criatura então saiu com seu rebanho, removendo a imensa</p><p>pedra na entrada e recolocando-a outra vez no lugar com a mesma</p><p>facilidade com que um homem abre e fecha a tampa de sua aljava. Odisseu</p><p>passou o dia inteiro pensando, preso dentro da caverna. Quatro de seus</p><p>homens tinham perdido a vida de forma medonha. Será que todos eles</p><p>precisariam partir do mesmo jeito horrível? Por �m, um plano surgiu em</p><p>sua mente. Perto dos currais havia um imenso tronco de madeira, tão</p><p>comprido e tão grosso quanto o mastro de um navio de vinte remos. Ele</p><p>cortou um bom pedaço do tronco e então, junto com seus homens, a�ou-o e</p><p>endureceu a ponta, girando-a várias vezes no fogo. Quando o ciclope voltou,</p><p>eles já tinham terminado e escondido a arma. O mesmo horrendo banquete</p><p>de antes se repetiu. Quando o ciclope acabou de comer, Odisseu encheu</p><p>uma caneca com o vinho que ele próprio levara consigo e lhe ofereceu. O</p><p>ciclope esvaziou a caneca com deleite e pediu mais, e Odisseu o serviu até</p><p>ele sucumbir, por �m, a um sono embriagado. Odisseu e seus homens então</p><p>pegaram a grande estaca no esconderijo e esquentaram a ponta na fogueira</p><p>até ela quase pegar fogo. Algum poder superior insu�ou-lhes uma coragem</p><p>insana e eles cravaram a estaca em brasa no único olho do ciclope. Com um</p><p>grito terrível, ele acordou e arrancou a estaca. Pôs-se a cambalear de um</p><p>lado para outro pela caverna à procura de seus algozes, mas, como estava</p><p>cego, os marinheiros conseguiram escapar.</p><p>Por �m, o ciclope afastou a pedra que fechava a caverna, sentou em cima</p><p>e estendeu os braços pelo vão, pretendendo assim capturá-los quando eles</p><p>tentassem sair. Mas Odisseu tinha pensado num plano para isso também.</p><p>Mandou cada homem escolher três carneiros de lã grossa e amarrá-los um</p><p>no outro com tiras fortes e maleáveis feitas de casca de árvore; em seguida,</p><p>mandou que esperassem o dia, quando o rebanho seria conduzido para</p><p>pastar do lado de fora. Por �m, a aurora chegou e, à medida que os animais</p><p>aglomerados junto à entrada iam saindo, Polifemo os tateava para se</p><p>certi�car de que nenhum estivesse carregando um homem nas costas.</p><p>Nunca lhe ocorreu tatear por baixo, mas era ali que os homens estavam,</p><p>cada qual encolhido debaixo do carneiro do meio, agarrado à lã comprida.</p><p>Assim que escaparam daquele lugar assustador, os homens largaram os</p><p>animais, correram para o navio e sem demora subiram a bordo e zarparam.</p><p>Mas Odisseu estava zangado demais para partir naquele silêncio prudente.</p><p>Por cima da água, lançou um sonoro grito para o gigante cego na entrada da</p><p>caverna: “Quer dizer, ciclope, que você não teve força su�ciente para devorar</p><p>todos os fracos homens? Está sendo justamente punido pelo que fez com</p><p>aqueles que foram hóspedes na sua casa!”</p><p>As palavras atingiram em cheio o coração de Polifemo. Ele se levantou</p><p>num pulo, arrancou um grande rochedo da montanha e o arremessou na</p><p>direção do navio. A pedra por um triz não esmagou a proa e a agitação que</p><p>produziu no mar devolveu o navio a terra �rme. A tripulação remou com</p><p>todas as forças e por pouco conseguiu se afastar. Quando Odisseu viu que</p><p>estavam a uma distância segura, tornou a gritar em tom de provocação:</p><p>“Ciclope, quem cegou seu olho foi Odisseu, o destruidor de cidades. Diga</p><p>isso a quem perguntar!” Mas eles agora já estavam longe demais e o gigante</p><p>nada pôde fazer. Ficou sentado na margem, cego.</p><p>Essa foi a única história contada sobre Polifemo por muitos anos. Os</p><p>séculos passaram e ele continuou o mesmo: um monstro assustador, sem</p><p>forma, imenso, cego do único olho. Mas en�m mudou, como aquilo que é</p><p>feio e mau tende a mudar e se abrandar com o tempo. Talvez algum</p><p>contador de histórias tenha visto na criatura imponente e sofredora</p><p>abandonada por Odisseu algo digno de pena. Seja como for, a história</p><p>seguinte o mostra sob uma luz muito agradável, nem um pouco</p><p>aterrorizante, mas um pobre monstro crédulo, um monstro ridículo, muito</p><p>consciente de quão horrendo, tosco e repulsivo era, e, portanto, infeliz,</p><p>porque estava loucamente apaixonado pela encantadora e zombeteira ninfa</p><p>do mar Galateia. Ele agora vivia na Sicília e conseguira, não se sabe como,</p><p>recuperar o olho, talvez graças a algum milagre de seu pai, que, nessa</p><p>história, é Poseidon, o grande deus do mar. O gigante apaixonado sabia que</p><p>Galateia jamais o aceitaria; ele era um caso perdido. Mesmo assim, toda vez</p><p>que sua dor o fazia endurecer o coração contra ela e dizer a si mesmo</p><p>“Ordenhe a ovelha que você tem; por que perseguir aquilo que o rejeita?”, a</p><p>sedutora jovem se aproximava dele mansamente. Então, de repente, uma</p><p>chuva de maçãs atingia seu rebanho e a voz dela ecoava em seus ouvidos</p><p>chamando-o de lerdo no amor. Assim que se levantava para ir atrás dela,</p><p>Galateia saía correndo, rindo da sua lentidão e falta de jeito ao tentar segui-</p><p>la. Tudo que ele podia fazer era novamente se sentar na beira do mar,</p><p>desolado e impotente, mas dessa vez sem tentar matar pessoas enfurecido,</p><p>apenas cantando tristes canções de amor para amolecer o coração da ninfa</p><p>do mar.</p><p>Numa história muito posterior, Galateia se tornou bondosa, não por ter</p><p>a donzela deslumbrante, delicada e branca como leite – como Polifemo a</p><p>chamava em seus cantos – se apaixonado pela medonha criatura de um olho</p><p>só (nessa história também ele recuperou o olho), mas por ter pensado,</p><p>prudentemente, que ele, sendo o �lho preferido do senhor dos mares, não</p><p>era alguém a ser desprezado de forma alguma. Galateia disse isso à irmã, a</p><p>ninfa Dóris, que nutria alguma esperança de atrair ela própria o ciclope e</p><p>iniciou a conversa dizendo com desdém: “Que belo amante você arrumou…</p><p>aquele pastor siciliano. Todo mundo está comentando.”</p><p>GALATEIA: Por favor, não seja arrogante. Ele é �lho de Poseidon. Aí</p><p>está!</p><p>DÓRIS: Para mim pode ser �lho até de Zeus. Uma coisa é certa: ele é</p><p>um bruto feio e sem modos.</p><p>GALATEIA: Vou lhe dizer uma coisa, Dóris: ele tem algo de muito</p><p>másculo. Naturalmente é verdade que tem um olho só, mas vê tão</p><p>bem com ele quanto se tivesse dois.</p><p>DÓRIS: Quem a ouve pensa que você também está apaixonada.</p><p>GALATEIA: Apaixonada… por Polifemo! Eu não. Mas posso adivinhar</p><p>o que a faz falar assim, claro. Você sabe muito bem que ele nunca</p><p>reparou em você, só em mim.</p><p>DÓRIS: Um pastor de um olho só acha você bonita! Isso é motivo de</p><p>orgulho. Pelo menos não vai precisar cozinhar para ele. Pelo que</p><p>eu soube, ele sabe transformar qualquer viajante numa bela</p><p>refeição.</p><p>Mas Polifemo nunca conquistou Galateia. Ela se apaixonou por um</p><p>lindo e jovem príncipe chamado Ácis, que Polifemo matou num acesso de</p><p>fúria e ciúme. Ácis, porém, foi transformado num deus do rio, então a</p><p>história acabou bem. Mas não nos é dito se Polifemo jamais tenha amado</p><p>qualquer donzela a não ser Galateia nem que qualquer outra donzela algum</p><p>dia o tenha amado.</p><p>MITOS DE FLORES: NARCISO, JACINTO, ADÔNIS</p><p>A primeira história sobre a criação do narciso é contada somente num dos</p><p>primeiros Hinos Homéricos, do século VII ou VIII a.C., e a segunda foi</p><p>tirada de Ovídio. A diferença entre os dois poetas é imensa: não apenas</p><p>seiscentos ou até mesmo setecentos anos os separam, mas também a</p><p>diferença fundamental entre gregos e romanos. O hino é escrito de modo</p><p>objetivo, simples, sem qualquer afetação. O poeta está pensando no seu</p><p>tema. Ovídio, como sempre, está pensando no seu público. Apesar disso, ele</p><p>conta bem essa história. O trecho sobre o fantasma que tenta ver o próprio</p><p>re�exo no rio da morte é um detalhe sutil bem típico dele e bastante distinto</p><p>de qualquer autor grego. Eurípides fornece o melhor relato sobre o festival</p><p>de Jacinto; tanto Apolodoro como Ovídio contam essa história. Sempre que</p><p>minha narrativa</p><p>demonstrar qualquer vividez, ela pode ser atribuída com</p><p>segurança a Ovídio. Apolodoro não se distrai com nada desse gênero. Já a</p><p>história de Adônis foi tirada de dois poetas do século III a.C., Teócrito e</p><p>Bíon. É uma história típica dos poetas alexandrinos, terna, um pouco</p><p>sentimental, mas sempre de um bom gosto ímpar.</p><p>Na Grécia existem lindas �ores silvestres. Elas seriam belas em qualquer</p><p>lugar, mas a Grécia não é um país rico e fértil, de vastas campinas e</p><p>plantações fecundas, onde as �ores aparecem à vontade. É um país de</p><p>planícies rochosas, colinas pedregosas e montanhas escarpadas, e em lugares</p><p>assim o vívido e deslumbrante desabrochar das �ores silvestres,</p><p>Uma profusão de deleites,</p><p>Alegre, espantosamente vívida,</p><p>espanta e surpreende. Altitudes desoladas se cobrem de cores radiantes;</p><p>todas as fendas e reentrâncias de rudes escarpas desabrocham. O contraste</p><p>dessa beleza risonha e luxuriante com a grandiosidade aguda e austera do</p><p>entorno prende com força a atenção. Em outros lugares, as �ores silvestres</p><p>podem passar quase despercebidas, mas na Grécia, jamais.</p><p>Isso era tão verdadeiro em épocas passadas quanto hoje em dia. Nos</p><p>tempos distantes em que as histórias da mitologia grega estava tomando</p><p>forma, os homens viam com assombro e deleite as coloridas �ores da</p><p>primavera grega. Esse povo, separado de nós por milhares de anos e</p><p>praticamente desconhecido, sentia a mesma coisa que sentimos diante do</p><p>milagre da beleza, cada �or tão delicada e todas juntas a cobrir o chão como</p><p>um manto de arco-íris jogado sobre as colinas. Os primeiros contadores de</p><p>histórias da Grécia �zeram vários relatos sobre essas �ores, como tinham</p><p>sido criadas e por que eram tão lindas.</p><p>Relacioná-las aos deuses era a coisa mais natural possível. Tudo no céu e</p><p>na Terra estava misteriosamente ligado aos poderes divinos, mas</p><p>principalmente as coisas belas. Muitas vezes uma �or particularmente</p><p>deslumbrante era considerada a criação direta de um deus para propósitos</p><p>pessoais. O narciso era uma delas, uma �or diferente da nossa com o mesmo</p><p>nome, uma bela e radiante in�orescência roxa e prateada. Zeus a criou para</p><p>ajudar o irmão Hades, senhor do escuro mundo subterrâneo, quando quis</p><p>levar embora a donzela por quem tinha se apaixonado, Perséfone, �lha de</p><p>Deméter. A moça estava colhendo �ores com as amigas no vale de Enna,</p><p>uma campina de grama macia, rosas, açafrões e belas violetas, íris e jacintos.</p><p>De repente, vislumbrou algo novo: uma �or mais linda do que qualquer</p><p>outra que já vira, uma �or estranha e gloriosa que a todos maravilhava,</p><p>tanto deuses imortais quanto homens mortais. Uma centena de botões</p><p>brotavam das raízes e o perfume era muito agradável. O vasto céu lá em</p><p>cima e a terra inteira sorriam ao vê-la, e também as ondas salgadas do mar.</p><p>Das moças, somente Perséfone tinha visto a �or. As outras estavam do</p><p>outro lado da campina. Ela se aproximou sorrateiramente, um pouco</p><p>assustada por estar sozinha, mas incapaz de resistir ao desejo de encher seu</p><p>cesto com aquela �or, justamente como Zeus imaginara que fosse acontecer.</p><p>Curiosa, estendeu a mão para colher o mimo encantador, mas, antes de</p><p>conseguir tocá-lo, um abismo se abriu no chão e dele irromperam cavalos</p><p>negros como carvão, que vinham puxando uma carruagem e eram</p><p>conduzidos por um personagem de sombrio esplendor, majestoso, belo e</p><p>terrível. Ele a arrebatou e a estreitou junto a si. Um segundo depois, ela</p><p>estava sendo levada embora da radiosa terra primaveril rumo ao mundo dos</p><p>mortos pelo rei que a governa.</p><p>Essa não era a única história sobre essa bela �or. Havia outra, igualmente</p><p>mágica, mas bem diferente. Seu herói era um lindo rapaz chamado Narciso.</p><p>A beleza de Narciso era tão notável que todas as moças que o viam ansiavam</p><p>serem suas, mas ele não queria nenhuma. Passava distraído até pela mais</p><p>formosa, por mais que ela se esforçasse para atrair seu olhar. Nem mesmo a</p><p>mais bela das ninfas, Eco, conseguiu tocar seu coração. Eco era uma</p><p>protegida de Ártemis, deusa das matas e criaturas selvagens, mas acabou</p><p>desagradando a uma deusa ainda mais poderosa, a própria Hera, dedicada à</p><p>sua costumeira ocupação de tentar descobrir o que Zeus andava aprontando.</p><p>Hera descon�ou que Zeus estivesse apaixonado por uma das ninfas e foi</p><p>examiná-las para tentar descobrir qual. No entanto, distraiu-se</p><p>imediatamente de sua missão ao ouvir Eco tagarelar alegremente. Enquanto</p><p>Hera ouvia, achando graça, as outras se retiraram em silêncio e a deusa não</p><p>conseguiu chegar a conclusão alguma em relação ao objeto do volúvel desejo</p><p>de Zeus. Com sua injustiça habitual, ela se virou contra Eco. E a ninfa se</p><p>tornou mais uma moça infeliz punida por Hera. A deusa a condenou a</p><p>nunca mais usar a língua senão para repetir o que lhe fosse dito. “Você terá</p><p>sempre a última palavra”, disse Hera, “mas não poderá falar primeiro.”</p><p>Isso era muito difícil, mas �cou mais difícil ainda quando, a exemplo de</p><p>todas as outras donzelas apaixonadas, Eco também se apaixonou por</p><p>Narciso. Ela podia segui-lo, mas não podia falar com ele. Como, então,</p><p>conseguiria fazer um rapaz que nunca olhava para moça alguma prestar</p><p>atenção nela? Um dia, porém, sua oportunidade pareceu se apresentar.</p><p>Narciso estava chamando os companheiros.</p><p>– Tem alguém aqui? – perguntou.</p><p>Eco respondeu, enlevada:</p><p>– Aqui… aqui.</p><p>Como ainda estava escondida entre as árvores, ele não a viu e gritou:</p><p>– Venha! – Exatamente o que ela ansiava lhe dizer.</p><p>Eco respondeu alegremente:</p><p>– Venha!</p><p>E saiu do meio das árvores com os braços estendidos. Mas Narciso lhe</p><p>virou as costas com raiva e repulsa.</p><p>– Nada disso – falou. – Pre�ro morrer a me deixar dominar por você.</p><p>Ao que ela respondeu apenas, com voz tímida e sedutora:</p><p>– Me deixar dominar por você.</p><p>Mas ele já tinha desaparecido. Eco escondeu o rubor das faces e a</p><p>vergonha numa caverna isolada e ninguém jamais a conseguiu consolar. Até</p><p>hoje ela vive em lugares assim, e dizem que de�nhou tanto de saudade que</p><p>agora tudo que lhe resta é a voz.</p><p>Narciso então seguiu seu caminho cruel, desdenhando do amor. Por �m,</p><p>uma daquelas a quem magoou fez uma prece que os deuses atenderam:</p><p>“Faça aquele que não ama ninguém amar a si mesmo.” A grande deusa</p><p>Nêmesis, que signi�ca justa cólera, empenhou-se em fazer isso acontecer.</p><p>Quando Narciso se curvou diante de uma poça de água limpa para beber e</p><p>viu ali o próprio re�exo, no mesmo instante se apaixonou. “Agora eu sei”,</p><p>disse ele, “o que os outros sofreram por minha causa, pois estou ardendo de</p><p>amor por mim mesmo. Mas como poderei alcançar essa beleza que vejo</p><p>re�etida na água? Não consigo me afastar dela. Somente a morte pode me</p><p>libertar.” E foi o que aconteceu. Ele foi de�nhando, debruçado sobre a poça</p><p>d’água, sem conseguir desviar o olhar. Eco estava por perto, mas não pôde</p><p>fazer nada. Apenas quando Narciso, à beira da morte, disse à própria</p><p>imagem “Adeus… adeus”, ela pôde repetir suas palavras como uma</p><p>despedida derradeira.</p><p>Dizem que, quando o espírito de Narciso atravessou o rio que rodeia o</p><p>mundo dos mortos, ele se curvou no barco para ver pela última vez o</p><p>próprio re�exo na água.</p><p>As ninfas que havia desprezado foram bondosas com ele depois de</p><p>morto e procuraram seu corpo para sepultá-lo, mas não o conseguiram</p><p>encontrar. No lugar em que caíra morto havia brotado uma �or nova e bela,</p><p>e elas a batizaram com seu nome, narciso.</p><p>Outra �or surgida a partir da morte de um lindo jovem foi o jacinto, que</p><p>tampouco se parece com a �or que assim chamamos, mas tem um formato</p><p>de lírio e um tom roxo-escuro ou, segundo alguns, um esplêndido tom</p><p>carmim. Foi uma morte trágica e anualmente celebrada pelo</p><p>Festival de Jacinto,</p><p>Que dura toda a noite tranquila.</p><p>Numa luta com Apolo</p><p>Ele foi morto.</p><p>Os dois competiam no disco,</p><p>E o veloz lançamento do deus</p><p>Ultrapassou o objetivo que era seu alvo</p><p>e acertou Jacinto bem na testa, causando um ferimento terrível. Jacinto</p><p>era o companheiro mais querido de Apolo. Não havia rivalidade entre eles</p><p>quando quiseram ver quem lançava o disco mais</p><p>longe; estavam apenas</p><p>jogando. Ao ver o sangue esguichar e o rapaz, pálido como a morte, desabar</p><p>no chão, o deus �cou horrorizado. Empalideceu também e, tomando Jacinto</p><p>nos braços, tentou estancar a hemorragia. Mas já era tarde. Enquanto Apolo</p><p>o segurava, a cabeça do rapaz caiu para trás como uma �or cujo caule se</p><p>partiu. Jacinto morreu e Apolo chorou ajoelhado ao seu lado por vê-lo</p><p>morrer tão jovem, tão belo. O deus o havia matado sem querer e lamentou-</p><p>se: “Ah, se eu pudesse dar minha vida em troca da sua ou morrer junto com</p><p>você!” Assim que disse isso, a grama manchada de sangue tornou a �car</p><p>verde e dela brotou a espantosa �or que tornaria conhecido o nome do</p><p>jovem para sempre. O próprio Apolo escreveu sobre as pétalas – alguns</p><p>dizem que eram as iniciais de Jacinto; outros dizem que eram as duas letras</p><p>da palavra grega que signi�ca “Ai de mim”. Seja como for, é um símbolo da</p><p>grande tristeza sentida pelo deus.</p><p>Existe também uma história segundo a qual o responsável direto pela</p><p>morte não foi Apolo, mas Zé�ro, o Vento Oeste, que também amava o</p><p>formoso rapaz e, enfurecido de ciúme ao ver que Jacinto preferia Apolo,</p><p>soprou o disco e o fez acertar a testa do rapaz.</p><p>Esses relatos encantadores de belos jovens que, ao morrerem na primavera</p><p>da vida, foram devidamente transformados em �ores primaveris</p><p>provavelmente têm um fundo sombrio. Eles dão uma pista dos atos</p><p>obscuros que eram cometidos no passado distante. Bem antes de qualquer</p><p>história ser contada na Grécia, ou de qualquer poema que tenha chegado até</p><p>nós, talvez antes mesmo de haver contadores de histórias ou poetas, se os</p><p>campos ao redor de algum vilarejo não fossem fecundos ou se o trigo não</p><p>brotasse como deveria, podia acontecer de um dos aldeões ser morto e seu</p><p>sangue ser espalhado sobre a terra estéril. Ainda não havia conceitos em</p><p>relação aos deuses radiosos do Olimpo, que teriam detestado esse odioso</p><p>sacrifício. A humanidade tinha apenas uma vaga noção de que, assim como</p><p>sua vida dependia inteiramente da semeadura e da colheita, devia haver uma</p><p>forte conexão entre o homem e a terra, de modo que o sangue humano, que</p><p>era nutrido pelo trigo, poderia, por sua vez, nutrir o trigo quando</p><p>necessário. Portanto, se um lindo rapaz tivesse sido morto dessa forma, mais</p><p>tarde, quando narcisos ou jacintos brotassem do chão, não seria natural</p><p>pensar que as �ores eram o próprio jovem, transmutado e novamente vivo?</p><p>Assim as pessoas contavam umas às outras o acontecido, um belo milagre</p><p>que fazia a morte cruel parecer menos cruel. Conforme o tempo passou e</p><p>deixou-se de acreditar que a terra precisava de sangue para ser fecunda, tudo</p><p>que havia de cruel na história foi deixado de lado até ser en�m esquecido.</p><p>Ninguém mais recordava que um dia foram feitas coisas terríveis. Diriam</p><p>que Jacinto não tinha morrido assassinado pelo próprio povo em troca de</p><p>comida, apenas por causa de um triste erro.</p><p>De todas essas mortes e ressurreições �oridas, a mais célebre foi a de</p><p>Adônis. Anualmente as jovens gregas lamentavam sua morte e anualmente</p><p>se alegravam quando sua �or, a anêmona cor de sangue, a �or do vento, era</p><p>vista desabrochando outra vez. Afrodite amava Adônis. A deusa do amor,</p><p>que fere com suas �echas o coração tanto dos deuses quanto dos homens,</p><p>estava fadada ela própria a sofrer essa mesma dor lancinante.</p><p>Afrodite viu o rapaz quando ele nasceu e, já naquele instante, o amou e</p><p>decidiu que ele precisava ser seu. Levou-o até Perséfone para que o criasse,</p><p>mas Perséfone também o amou e não quis devolvê-lo para Afrodite, nem</p><p>mesmo quando a deusa desceu até o mundo subterrâneo para buscá-lo.</p><p>Nenhuma das duas quis ceder e, por �m, o próprio Zeus foi quem precisou</p><p>intervir. Ele decidiu que Adônis passaria metade do ano com cada uma: o</p><p>outono e o inverno com a rainha dos mortos e a primavera e o verão com a</p><p>deusa do amor e da beleza.</p><p>Durante todo o tempo que Adônis passava com Afrodite, ela só pensava</p><p>em agradá-lo. O rapaz gostava de caçar e ela muitas vezes abandonava sua</p><p>carruagem puxada por cisnes, a bordo da qual costumava deslizar</p><p>tranquilamente pelos ares, e o seguia por trilhas difíceis na mata, vestida de</p><p>caçadora. Num dia infeliz, porém, ela não estava presente quando Adônis</p><p>encontrou um grande javali. Com seus cães de caça, ele havia acuado o</p><p>bicho. Atirou sua lança nele, mas só conseguiu feri-lo; antes de fugir, o javali,</p><p>ensandecido de dor, correu para cima dele e o estripou com suas imensas</p><p>presas. Em sua carruagem alada acima da Terra, Afrodite escutou os gritos</p><p>do amado e foi acudi-lo.</p><p>A vida de Adônis se esvaía em suaves suspiros, o sangue escuro escorria</p><p>por sua pele alva como a neve e seus olhos iam �cando cada vez mais</p><p>pesados e sem brilho. Afrodite o beijou, mas Adônis nem sequer soube que</p><p>ela o havia beijado, pois naquele exato instante havia morrido. Por mais</p><p>grave que fosse o seu ferimento, a ferida no coração da deusa foi mais</p><p>profunda. Embora soubesse que Adônis não podia escutá-la, Afrodite falou:</p><p>“Você morre, ó três vezes desejado,</p><p>E meu desejo se vai como um sonho.</p><p>Junto com você se vai o cinturão da minha beleza,</p><p>Mas eu mesma preciso viver, pois sou uma deusa,</p><p>E não posso acompanhá-lo.</p><p>Beije-me mais uma vez, um último e demorado beijo,</p><p>Até eu sorver com os lábios sua alma</p><p>E beber todo o seu amor.”</p><p>As montanhas todas chamavam e os carvalhos respondiam,</p><p>Ó, pesar, pesar por Adônis. Ele está morto.</p><p>E Eco exclamou em resposta, Ó pesar, pesar por Adônis.</p><p>E todos os Amores choraram por ele, e todas as Musas também.</p><p>Mas, nas profundezas do negro mundo subterrâneo, Adônis não podia</p><p>escutá-las nem ver a �or cor de carmim que nasceu nos pontos em que cada</p><p>gota do seu sangue manchara a terra.</p><p>PARTE DOIS</p><p>Histórias de amor</p><p>e aventura</p><p>H</p><p>CAPÍTULO I</p><p>Cupido e Psiquê</p><p>Esta história é contada somente por Apuleio, autor latino do século II d.C.,</p><p>por isso foram usados os nomes latinos dos deuses. É uma história contada</p><p>de um jeito bonito, à moda de Ovídio. Apesar de se divertir, o autor não</p><p>acredita em nada do que narra.</p><p>avia um rei que tinha três �lhas, todas bonitas donzelas, mas a caçula,</p><p>Psiquê, era tão mais bela que as irmãs que, junto delas, parecia uma</p><p>verdadeira deusa ao lado de reles mortais. A fama de sua beleza se espalhou</p><p>pela Terra, atraindo homens de todas as partes. Eles iam até ela para admirá-</p><p>la, com assombro e adoração, e lhe prestar homenagem como se fosse</p><p>mesmo uma imortal. Chegavam a dizer que nem a própria Vênus se</p><p>comparava àquela mortal. Os homens foram se juntando em quantidades</p><p>cada vez maiores para adorar sua beleza, até que ninguém mais prestou</p><p>atenção na própria Vênus. Seus templos foram abandonados, seus altares</p><p>foram largados sujos com cinzas frias, suas cidades preferidas se tornaram</p><p>desertas e sucumbiram à ruína. Toda a honra que antes era sua passou a ser</p><p>demonstrada a uma simples menina fadada a um dia morrer.</p><p>É de imaginar que a deusa não toleraria esse tratamento. Como sempre</p><p>fazia quando tinha problemas, Vênus pediu ajuda ao �lho, o lindo jovem</p><p>alado que alguns chamam de Cupido e outros chamam de Amor, contra</p><p>cujas �echas não há defesa possível nem no céu nem na Terra. Vênus lhe</p><p>contou o que a a�igia e Cupido, como sempre, se dispôs a obedecer: “Use</p><p>seu poder”, ordenou ela, “e faça aquela sirigaita se apaixonar perdidamente</p><p>pela criatura mais vil e mais desprezível que houver no mundo.” Assim</p><p>Cupido sem dúvida teria feito se Vênus não lhe tivesse antes mostrado</p><p>Psiquê, sem pensar (de tão tomada pela raiva e pelo ciúme) no que uma</p><p>beleza como aquela poderia fazer até mesmo com o próprio deus do amor.</p><p>Quando Cupido viu Psiquê, foi como se tivesse disparado uma de suas</p><p>�echas no próprio coração. Não disse nada à mãe, até porque não conseguia</p><p>pronunciar palavra alguma, e Vênus foi embora feliz, certa de que ele, sem</p><p>demora, causaria a ruína de Psiquê.</p><p>O que aconteceu foi diferente do que Vênus esperava. Psiquê não se</p><p>apaixonou por nenhum ser reles e horrível: ela não se apaixonou por</p><p>ninguém. Mais estranho ainda, ninguém se apaixonou por ela. Os homens</p><p>se contentavam em admirá-la, maravilhar-se e adorá-la, para depois</p><p>seguirem seu caminho e irem desposar outra. As duas irmãs da jovem,</p><p>indizivelmente menos belas, �zeram enlaces esplêndidos, ambas com reis. E</p><p>Psiquê, a mais linda de todas, continuou triste e sozinha, somente sendo</p><p>admirada, nunca amada. Era como se nenhum homem a quisesse.</p><p>É claro que isso causou grande perturbação à família da jovem. Seu pai</p><p>então viajou até um oráculo de Apolo para pedir conselho ao deus sobre</p><p>como arrumar um bom marido para Psiquê. Apolo respondeu, mas foram</p><p>palavras terríveis. Cupido tinha lhe contado a história toda e implorado sua</p><p>ajuda. Apolo então disse que Psiquê, trajando o mais fechado luto, deveria</p><p>ser posta no alto de uma colina rochosa e ali deixada sozinha, e que o</p><p>marido que lhe estava destinado, uma temível serpente alada, mais forte do</p><p>que os próprios deuses, a encontraria e faria dela sua esposa.</p><p>Pode-se imaginar a infelicidade geral quando o pai de Psiquê voltou para</p><p>casa com essa triste notícia. A jovem foi vestida como para a morte e levada</p><p>até a colina com mais tristeza do que se a estivessem levando para o túmulo.</p><p>Mas Psiquê não desanimou. “Vocês deveriam ter chorado por mim antes”,</p><p>disse-lhes ela, “por causa da beleza que me fez ser alvo do ciúme do céu.</p><p>Agora podem ir, e saibam que estou feliz por ter chegado o �m.” Com</p><p>profunda tristeza, eles deixaram a bela e impotente criatura sozinha para</p><p>enfrentar seu cruel destino e se fecharam em seu palácio para chorar a perda</p><p>da �lha pelo resto de seus dias.</p><p>No alto da colina, Psiquê �cou sentada na escuridão, esperando um</p><p>terror desconhecido. E lá, enquanto ela chorava e tremia, uma brisa suave se</p><p>ergueu no ar parado e a tocou, o doce sopro de Zé�ro, o mais doce e suave</p><p>dos ventos. Ela se sentiu levar por ele. Flutuou para longe da colina rochosa</p><p>e foi descendo, até se ver deitada na grama de uma campina macia como</p><p>uma cama e toda perfumada de �ores. A paz ali era tamanha que ela</p><p>esqueceu todas as preocupações e dormiu. Acordou junto a um rio de águas</p><p>cintilantes e na margem havia uma mansão tão bela e imponente quanto se</p><p>houvesse sido construída para um deus, com colunas de ouro, paredes de</p><p>prata e pisos cravejados de pedras preciosas. Som nenhum se fazia ouvir; o</p><p>palácio parecia deserto. Psiquê foi até lá, assombrada diante de tamanho</p><p>esplendor. No limiar da porta, ela hesitou e vozes soaram em seus ouvidos.</p><p>Psiquê não viu ninguém, mas distinguiu com clareza as palavras. A casa era</p><p>dela, diziam. Ela deveria entrar sem medo, banhar-se e refrescar-se. Depois</p><p>a mesa de um banquete seria posta para ela. “Somos seus criados”, disseram</p><p>as vozes, “prontos para fazer o que desejar.”</p><p>O banho foi um deleite, a comida uma delícia maior do que tudo que ela</p><p>jamais havia provado. Enquanto comia, uma música melodiosa começou a</p><p>soar à sua volta: um coro majestoso parecia cantar acompanhando uma</p><p>harpa, mas ela só conseguia ouvir, não ver. Passou o dia inteiro sozinha, a</p><p>não ser pela estranha companhia das vozes, mas de algum modo</p><p>inexplicável teve certeza de que, ao cair da noite, seu marido estaria com ela.</p><p>E assim foi. Quando ela o sentiu ao seu lado e ouviu sua voz murmurar</p><p>baixinho em seu ouvido, todos os seus medos se foram. Ela soube, sem vê-</p><p>lo, que ele não era nenhum monstro ou forma aterrorizante, mas o amante e</p><p>marido pelo qual tanto havia ansiado e esperado.</p><p>Essa companhia pela metade não a satisfez de todo, mas mesmo assim</p><p>ela �cou feliz e o tempo passou depressa. Certa noite, porém, seu querido</p><p>mas invisível marido lhe falou com gravidade e a alertou de que o perigo</p><p>estava se aproximando na forma de suas duas irmãs. “Elas estão indo</p><p>pranteá-la na colina onde você desapareceu”, disse ele, “mas você não pode</p><p>permitir que a vejam, senão causará grande sofrimento para mim e ruína</p><p>para si mesma.” Psiquê lhe prometeu não se deixar ver, mas passou todo o</p><p>dia seguinte aos prantos, pensando nas irmãs e sem poder consolá-las.</p><p>Ainda estava chorando quando o marido apareceu e nem mesmo as carícias</p><p>dele conseguiram secar suas lágrimas. Por �m, ele cedeu, triste, ao grande</p><p>desejo dela. “Faça o que quiser”, falou, “mas está buscando a própria</p><p>destruição.” Ele então a alertou solenemente para não se deixar convencer</p><p>por ninguém a tentar vê-lo, sob pena de ter que suportar a dor de se separar</p><p>dele para sempre. Psiquê exclamou que jamais faria isso. Preferiria morrer</p><p>cem vezes a viver sem ele. “Mas me dê a alegria de ver minhas irmãs”, pediu</p><p>ela. Com tristeza, ele lhe prometeu que assim seria.</p><p>No dia seguinte as irmãs apareceram, trazidas da montanha por Zé�ro.</p><p>Feliz e animada, Psiquê estava à espera delas. Demorou para as três</p><p>conseguirem conversar, pois sua alegria foi demasiado grande para ser</p><p>expressa por outra coisa que não lágrimas e abraços. Mas quando as três</p><p>en�m adentraram o palácio e as irmãs mais velhas viram seus tesouros</p><p>incomparáveis, quando se sentaram diante do lauto banquete e escutaram a</p><p>música esplêndida, uma inveja amarga se apoderou delas, assim como uma</p><p>curiosidade insuportável sobre quem seria o senhor de toda aquela</p><p>magni�cência e marido da sua irmã. Mas Psiquê cumpriu sua palavra: disse</p><p>apenas que ele era um homem jovem e que tinha partido numa expedição</p><p>de caça. Então, enchendo as mãos das duas de ouro e joias, mandou que</p><p>Zé�ro as levasse de volta para a colina. As irmãs foram embora sem resistir,</p><p>mas o coração delas ardia de inveja. Toda a sua riqueza e sorte lhes parecia</p><p>nada signi�car em comparação com as de Psiquê, e sua raiva invejosa tanto</p><p>as atormentou que elas �nalmente começaram a tramar um meio de causar</p><p>a ruína da irmã.</p><p>Nessa mesma noite o marido de Psiquê a alertou novamente. Ela não lhe</p><p>deu ouvidos quando ele lhe implorou que não deixasse as irmãs irem visitá-</p><p>la outra vez. Ela lembrou-lhe que não podia vê-lo. Estava também proibida</p><p>de ver todos os outros, até mesmo suas tão queridas irmãs? Ele cedeu como</p><p>da primeira vez e pouco depois as duas malvadas mulheres chegaram, com</p><p>seu plano cuidadosamente tramado.</p><p>Por causa das respostas hesitantes e contraditórias de Psiquê quando lhe</p><p>perguntavam como era o seu marido, as duas já tinham se convencido de</p><p>que ela nunca o tinha visto nem sabia realmente o que ele era. Não lhe</p><p>disseram isso, mas a repreenderam por esconder delas sua terrível situação –</p><p>delas, suas irmãs. Tinham �cado sabendo, disseram, e sabiam ser verdade,</p><p>que seu marido não era um homem, mas sim a temível serpente que o</p><p>oráculo de Apolo previra. Ele estava se mostrando gentil agora, sem dúvida,</p><p>mas certamente alguma noite se viraria contra ela e a devoraria.</p><p>Consternada, Psiquê sentiu o terror inundar seu coração no lugar do</p><p>amor. Tinha se perguntado muitas vezes por que o marido nunca lhe</p><p>permitia vê-lo. Devia haver algum motivo terrível. O que ela sabia de fato a</p><p>seu respeito? Se ele não tinha um aspecto horrível, então era cruel por</p><p>proibir a esposa de vê-lo. Muito abalada, tropeçando nas palavras e</p><p>gaguejando, ela deu a entender às irmãs que não podia negar o que diziam,</p><p>pois só estivera com ele no escuro. “Deve haver algo muito errado”, falou,</p><p>aos soluços, “para fazê-lo fugir assim da luz do dia.” E Psiquê implorou que</p><p>as duas a aconselhassem.</p><p>As irmãs já tinham seu conselho pronto. Naquela noite Psiquê deveria</p><p>esconder perto da cama uma faca a�ada e um lampião. Quando o marido</p><p>estivesse dormindo profundamente, deveria sair da cama, acender o lampião</p><p>e pegar a faca. Deveria tomar coragem e cravá-la depressa no coração do ser</p><p>assustador que a luz certamente iria lhe mostrar. “Estaremos por perto”,</p><p>disseram elas, “e a levaremos embora conosco depois que ele tiver morrido.”</p><p>As duas então a deixaram, atormentada pela dúvida e sem saber o que</p><p>fazer. Ela o amava; ele era seu querido marido. Não; ele era uma serpente</p><p>horrível e ela o detestava. Iria matá-lo… não iria matá-lo. Precisava ter</p><p>certeza… não queria ter certeza. E assim</p><p>seus pensamentos passaram o dia</p><p>inteiro brigando entre si. Quando a noite caiu, porém, ela havia desistido de</p><p>lutar. Uma coisa estava decidida a fazer: iria vê-lo.</p><p>Quando seu marido en�m adormeceu, Psiquê muniu-se de coragem e</p><p>acendeu o lampião. Aproximou-se da cama pé ante pé e, erguendo o</p><p>lampião acima da cabeça, olhou o que estava deitado ali. Ah, que alívio, que</p><p>êxtase lhe encheu o coração! A luz não revelou nenhum monstro, mas a</p><p>mais doce e bela de todas as criaturas, cuja imagem parecia fazer o próprio</p><p>lampião brilhar mais forte. Com a vergonha que sentiu de seu desatino e sua</p><p>falta de fé, Psiquê caiu de joelhos, e teria cravado a faca no próprio peito se</p><p>esta não lhe houvesse escapado das mãos trêmulas. Mas essas mesmas mãos</p><p>vacilantes que a salvaram também a traíram, pois, enquanto ela estava</p><p>parada junto ao marido, seduzida por sua imagem e sem conseguir se negar</p><p>a felicidade de encher os olhos com sua beleza, um pouco do óleo quente do</p><p>lampião pingou no ombro dele. Seu marido acordou, viu a luz e soube que a</p><p>esposa não cumprira o prometido. Sem dizer nada, ele fugiu.</p><p>Psiquê saiu correndo noite afora atrás dele. Não conseguia vê-lo, mas</p><p>ouvia sua voz lhe falar. Ele lhe revelou quem era e, com tristeza, lhe disse</p><p>adeus. “Onde não existe con�ança não pode existir amor”, falou e se foi.</p><p>O deus do amor!, pensou ela. “Era ele o meu marido, e eu, miserável, não</p><p>soube lhe ser �el. Será que ele se foi para sempre? Seja como for”, disse ela a</p><p>si mesma com uma coragem cada vez maior, “posso passar o resto da vida à</p><p>sua procura. Se não lhe sobrar mais nenhum amor por mim, pelo menos</p><p>posso lhe mostrar quanto o amo.” E ela partiu em sua jornada. Não fazia</p><p>ideia de para onde ir, sabia apenas que jamais desistiria de procurar por ele.</p><p>Cupido, enquanto isso, tinha ido para o quarto da mãe cuidar da</p><p>queimadura, mas, quando Vênus ouviu sua história e soube que sua</p><p>escolhida tinha sido Psiquê, saiu zangada, deixando-o sozinho em sua dor, e</p><p>partiu para encontrar a moça por quem o �lho a tinha feito sentir ainda</p><p>mais ciúme. Vênus estava decidida a mostrar a Psiquê o que signi�cava</p><p>causar o desprazer de uma deusa.</p><p>Já a pobre Psiquê, em sua errância desolada, tentava conquistar os</p><p>deuses para a sua causa. Oferecia-lhes o tempo todo preces fervorosas, mas</p><p>nenhum deles quis fazer nada que pudesse ganhar a inimizade de Vênus. Por</p><p>�m, a moça entendeu que não havia esperança nem no céu nem na Terra e</p><p>tomou uma decisão desesperada: falar diretamente com Vênus, oferecer-se</p><p>como sua humilde criada e tentar abrandar sua raiva. E quem sabe se ele</p><p>próprio não vai estar lá, na casa da mãe?, pensou. Assim, ela partiu ao</p><p>encontro da deusa que a procurava por toda parte.</p><p>Quando Psiquê chegou diante de Vênus, a deusa riu bem alto e lhe</p><p>perguntou com desdém se ela estava à procura de um marido, já que o seu</p><p>antigo não queria mais nada com ela, tendo quase morrido da queimadura</p><p>que ela lhe in�igira. “Mas você, na verdade, é uma moça tão sem graça e tão</p><p>desprovida de formosura que nunca vai conseguir arranjar um amante a não</p><p>ser por meio de diligentes e dolorosos serviços. Sendo assim, vou lhe dar</p><p>uma prova da minha boa vontade e treiná-la para isso.” Assim dizendo,</p><p>Vênus pegou uma grande quantidade de pequeníssimas sementes de trigo,</p><p>papoula, painço e outras plantas e misturou-as todas numa pilha só.</p><p>“Quando a noite cair, estas sementes precisam estar separadas”, falou. “Faça</p><p>isso para o seu bem.” E, dizendo isso, Vênus se foi.</p><p>Deixada sozinha, Psiquê �cou sentada olhando para a pilha de sementes.</p><p>Ela não sabia o que pensar da crueldade daquela ordem, e de fato não</p><p>adiantava nada iniciar uma tarefa tão obviamente impossível. Nesse</p><p>momento de provação, porém, ela, que não havia despertado a compaixão</p><p>nem dos mortais nem dos imortais, causou a pena das mais diminutas</p><p>criaturas do campo: as pequenas formigas de passo célere. Elas exclamaram</p><p>umas para as outras: “Vamos, tenham dó dessa pobre jovem e ajudem-na</p><p>com empenho!” Na mesma hora elas vieram, em ondas sucessivas, e</p><p>trataram de separar e dividir as sementes até que aquilo que antes era uma</p><p>massa confusa estivesse em perfeita ordem, cada semente com as outras da</p><p>mesma espécie. Foi isso que Vênus viu ao voltar, e a visão a deixou muito</p><p>zangada. “Seu trabalho não está de modo algum terminado”, falou. Então</p><p>entregou a Psiquê uma côdea de pão e a mandou dormir no chão enquanto</p><p>ela ia se acomodar em seu macio e perfumado divã. Com certeza, se</p><p>conseguisse manter a moça trabalhando duro e bastante faminta também,</p><p>aquela detestável beleza em breve se perderia. Até lá, precisaria garantir que</p><p>o �lho �casse bem protegido em seu quarto, onde ainda cuidava da</p><p>queimadura. Vênus estava feliz com o modo como as coisas caminhavam.</p><p>Psiquê olha para Cupido adormecido.</p><p>No dia seguinte ela arrumou outra tarefa para Psiquê, dessa vez uma</p><p>tarefa perigosa. “Lá embaixo, perto da margem do rio”, falou, “onde os</p><p>arbustos se adensam, há ovelhas com velos de ouro. Vá até lá e me traga um</p><p>pouco da lã brilhante.” Quando a moça cansada chegou diante do regato de</p><p>correnteza mansa, foi tomada por um forte anseio de se atirar lá dentro e</p><p>assim pôr �m a toda a sua dor e seu desespero. Quando estava debruçada</p><p>sobre a água, porém, ouviu uma vozinha vinda de junto dos pés e, ao baixar</p><p>os olhos, viu que vinha de um junco verde. Ela não precisava se afogar, disse</p><p>o junco. As coisas não eram tão ruins assim. As ovelhas de fato eram muito</p><p>ariscas, mas se Psiquê esperasse até que elas saíssem do meio dos arbustos,</p><p>ao cair do dia, para descansar junto ao rio, poderia entrar na mata e</p><p>encontrar bastante lã dourada presa na vegetação espinhosa.</p><p>Assim falou o junco bondoso e gentil, e Psiquê, seguindo as instruções,</p><p>pôde levar para sua cruel senhora uma boa quantidade de lã brilhante.</p><p>Vênus a recebeu com um sorriso malé�co. “Alguém a ajudou”, disse a deusa,</p><p>ríspida. “Você nunca teria feito isso sozinha. Mas vou lhe dar uma</p><p>oportunidade de provar que tem de fato o coração forte e a singular</p><p>prudência que tanto demonstra. Está vendo aquela água negra que escorre</p><p>daquela colina? Lá �ca a nascente do terrível rio que chamam de odioso, o</p><p>Estige. Você precisa encher nele este cantil.” Como Psiquê pôde ver ao se</p><p>aproximar da queda-d’água, aquela era a pior tarefa até então. Apenas uma</p><p>criatura alada poderia alcançar a nascente, de tão íngremes e escorregadias</p><p>eram as pedras de todos os lados e de tão violenta a força das águas que</p><p>caíam. Mas, a esta altura, já deve estar claro para todos os leitores desta</p><p>história (como talvez a própria Psiquê tenha percebido no fundo do seu</p><p>coração) que, embora todas as suas provações lhe parecessem de uma</p><p>di�culdade intransponível, sempre surgia um modo excelente de dar conta</p><p>delas. Dessa vez sua salvadora foi uma águia, que parou ao seu lado com</p><p>suas grandes asas, pegou o cantil com o bico e o trouxe de volta cheio da</p><p>água negra.</p><p>Mas Vênus não descansou. É impossível não acusá-la de certa estupidez.</p><p>O único efeito de tudo que acontecia era fazê-la tentar outra vez. Ela</p><p>entregou a Psiquê uma caixa que a jovem teria que levar até o mundo</p><p>subterrâneo para pedir a Proserpina que a enchesse com um pouco da sua</p><p>beleza. Deveria dizer que Vênus estava precisando muito, de tão exaurida</p><p>que estava por cuidar do �lho doente. Obediente como sempre, Psiquê saiu</p><p>à procura da estrada que conduzia ao Hades. Encontrou seu guia numa torre</p><p>pela qual passou. A torre lhe deu instruções detalhadas sobre como chegar</p><p>ao palácio de Proserpina: primeiro, atravessando um grande buraco na terra,</p><p>depois, descendo o rio da morte, onde precisaria entregar ao barqueiro</p><p>Caronte um óbolo como pagamento pela travessia. Dali, a estrada conduzia</p><p>diretamente ao palácio. Quem vigiava a entrada era Cérbero, o cão de três</p><p>cabeças, mas, se ela lhe desse um bolo, ele se mostraria manso e a deixaria</p><p>passar.</p><p>Tudo aconteceu, é claro, como a torre previra. Proserpina aceitou fazer</p><p>um favor para Vênus, e Psiquê, muito</p><p>animada, levou a caixa e fez o</p><p>caminho de volta bem mais depressa do que �zera o de ida.</p><p>Sua provação seguinte foi provocada por ela mesma, devido à sua</p><p>curiosidade e, principalmente, à sua vaidade. Sentiu que precisava ver que</p><p>amuleto de beleza a caixa continha e, quem sabe, usar um pouco para si.</p><p>Sabia tão bem quanto Vênus que sua beleza não melhorara com todas as</p><p>suas agruras e nunca parara de pensar que poderia, a qualquer momento,</p><p>encontrar Cupido. Ah, se conseguisse se fazer mais bela para ele! Foi incapaz</p><p>de resistir à tentação e abriu a caixa. Para sua completa decepção, não viu</p><p>nada lá dentro; a caixa lhe pareceu vazia. Na mesma hora, porém, um langor</p><p>mortal se apoderou de Psiquê e ela caiu num sono profundo.</p><p>Foi nessa hora que o deus do amor em pessoa apareceu. Cupido estava</p><p>agora curado da queimadura e com saudade de Psiquê. É difícil aprisionar o</p><p>Amor. Vênus havia trancado a porta, mas restaram as janelas. Tudo que</p><p>Cupido precisou fazer foi sair voando e começar a procurar a esposa. Ela</p><p>estava deitada quase ao lado do palácio e ele não demorou a encontrá-la.</p><p>Num instante enxugou o sono dos seus olhos e o guardou de volta na caixa.</p><p>Então, acordando-a com a espetadela de uma �echa e repreendendo-a um</p><p>pouco por sua curiosidade, mandou que ela levasse a caixa de Proserpina</p><p>para sua mãe e lhe garantiu que, depois disso, tudo �caria bem.</p><p>Enquanto a feliz Psiquê ia depressa cumprir a tarefa da qual fora</p><p>incumbida, o deus subiu voando até o Olimpo. Como queria se certi�car de</p><p>que Vênus não lhes causaria mais problemas, foi diretamente falar com</p><p>Júpiter. O pai dos deuses e dos homens autorizou na mesma hora tudo que</p><p>Cupido lhe pediu, “muito embora você tenha me prejudicado muito no</p><p>passado”, falou, “e maculado gravemente meu nome e minha dignidade, me</p><p>obrigando a me transformar em touro, em cisne e assim por diante… Mas</p><p>não posso lhe negar o que está me pedindo”.</p><p>Júpiter então convocou uma reunião com todos os deuses e anunciou a</p><p>todos, inclusive a Vênus, que Cupido e Psiquê estavam o�cialmente casados</p><p>e que ele tinha a intenção de tornar a noiva imortal. Mercúrio levou Psiquê</p><p>até o palácio dos deuses e o próprio Júpiter a fez provar a ambrosia que a fez</p><p>imortal. Isso naturalmente mudou a situação por completo. Vênus não podia</p><p>se opor a ter uma deusa por nora; o enlace havia se tornado extremamente</p><p>adequado. Ela sem dúvida pensou também que Psiquê, morando no céu e</p><p>com marido e �lhos para cuidar, não poderia estar muito na Terra para virar</p><p>a cabeça dos homens e interferir em seu culto.</p><p>Assim, tudo terminou do modo mais feliz possível. O Amor e a Alma</p><p>(pois é esse o signi�cado de Psiquê) tinham se buscado e, depois de duras</p><p>provações, se encontraram, e essa união jamais poderia ser desfeita.</p><p>CAPÍTULO II</p><p>Oito breves histórias sobre amantes</p><p>PÍRAMO E TISBE</p><p>Esta história é encontrada somente em Ovídio. É uma excelente</p><p>representação de suas características: bem contada, com vários monólogos</p><p>retóricos e acrescida de um pequeno ensaio sobre o Amor.</p><p>Houve um tempo em que os frutos vermelhos da amoreira eram brancos</p><p>como a neve. A mudança de cor aconteceu por um motivo estranho e triste:</p><p>a morte de dois jovens amantes.</p><p>Píramo e Tisbe, o mais belo rapaz e a mais formosa donzela de todo o</p><p>Oriente, viviam na Babilônia, cidade da rainha Semíramis, em casas tão</p><p>próximas que tinham uma parede em comum. Tendo sido criados assim,</p><p>lado a lado, os dois aprenderam a se amar. Queriam se casar, mas seus pais</p><p>os proibiam. Só que não se pode proibir o amor. Quanto mais sua chama é</p><p>abafada, mais intensamente ela arde. Além do mais, o amor sempre encontra</p><p>um caminho. Era impossível manter separados aqueles dois cujo coração</p><p>ardia um pelo outro.</p><p>Na parede comum às duas casas havia uma pequena rachadura.</p><p>Ninguém nunca tinha reparado nela, mas não há nada em que um ser</p><p>apaixonado não repare. Nossos dois jovens a descobriram, e, por ela,</p><p>conseguiam sussurrar docemente um para o outro, Tisbe de um lado,</p><p>Píramo do outro. A odiosa parede que os separava havia se tornado seu</p><p>modo de se alcançar. “Se não fosse você, nós poderíamos nos tocar, nos</p><p>beijar”, diziam eles. “Mas pelo menos você nos deixa falar. Permite a</p><p>passagem de palavras amorosas para que cheguem a ouvidos amorosos. Não</p><p>lhe somos ingratos.” Assim os dois conversavam e, quando vinha a noite e</p><p>precisavam se separar, ambos davam na parede beijos que não conseguiam</p><p>chegar aos lábios do outro lado.</p><p>Todo dia de manhã, quando a aurora apagava as estrelas e os raios do sol</p><p>secavam a geada na grama, eles iam sorrateiramente até a rachadura e, de pé</p><p>na sua frente, murmuravam ora palavras de amor ardente, ora lamentos por</p><p>causa da sua dura sina, mas sempre com o mais suave dos sussurros. Por</p><p>�m, chegou o dia que não aguentaram mais. Decidiram que, naquela mesma</p><p>noite, tentariam fugir e sair da cidade até o campo aberto, onde poderiam,</p><p>en�m, �car juntos livremente. Combinaram se encontrar num lugar</p><p>conhecido, o túmulo de Nino, debaixo de uma árvore que havia ali: uma</p><p>amoreira carregada de frutos brancos como a neve, perto da qual</p><p>borbulhava uma fresca nascente. O plano lhes agradou e pareceu-lhes que</p><p>aquele dia nunca iria acabar.</p><p>O sol �nalmente afundou no mar e a noite caiu. No escuro, Tisbe saiu de</p><p>casa sem se fazer notar e muito secretamente foi até o túmulo. Píramo ainda</p><p>não havia chegado; mesmo assim ela o esperou, pois o amor lhe dava</p><p>coragem. De repente, porém, viu à luz da lua uma leoa. O feroz animal havia</p><p>matado alguém: tinha a boca suja de sangue e estava indo saciar a sede na</p><p>nascente. Ainda estava longe e Tisbe conseguiu escapar, mas ao fugir deixou</p><p>cair sua capa. A leoa encontrou a capa no caminho de volta para sua toca e</p><p>mordeu-a e rasgou-a antes de sumir na mata. Foi isso que Píramo viu ao</p><p>chegar, poucos minutos depois. Diante dele estavam os frangalhos</p><p>ensanguentados da capa e, visíveis no chão de terra batida, as pegadas da</p><p>leoa. A conclusão foi inevitável. Ele nunca duvidou que havia entendido</p><p>tudo. Tisbe estava morta. Ele havia deixado sua amada, uma jovem donzela,</p><p>se dirigir sozinha a um lugar cheio de perigos e não chegara lá primeiro para</p><p>protegê-la. “Fui eu que a matei”, concluiu. Pegou no chão pisoteado o que</p><p>restava da capa e, tornando a beijá-la, levou-a até a amoreira. “Agora você</p><p>também vai beber meu sangue”, falou. Sacou a espada e a cravou no próprio</p><p>�anco. O sangue esguichou nas frutas e as tingiu de vermelho-escuro.</p><p>Embora apavorada com a leoa, Tisbe tinha ainda mais medo de não</p><p>cumprir o combinado com seu amado. Atreveu-se a voltar até a árvore do</p><p>encontro, a amoreira com seus brilhantes frutos brancos. Não a encontrou.</p><p>Havia uma árvore ali, mas não se via em seus galhos nenhum lampejo de</p><p>branco. Enquanto ela �tava aquilo, algo se moveu no chão debaixo da</p><p>árvore. Ela recuou, estremecendo. Mas num instante, em meio às sombras,</p><p>viu o que havia ali. Era Píramo, coberto de sangue, agonizando. Correu até</p><p>ele e o abraçou. Beijou seus lábios frios e lhe implorou que a encarasse, que</p><p>falasse com ela. “Sou eu, sua Tisbe, sua querida”, falou chorando. Ao ouvir o</p><p>nome dela, Píramo abriu os olhos pesados para um último olhar. Então a</p><p>morte os fechou.</p><p>Tisbe viu a espada caída da mão dele e, ao lado, a própria túnica, rasgada</p><p>e suja de sangue. Compreendeu tudo. “Você mesmo se matou”, falou, “você e</p><p>o amor que tem por mim. Eu também posso ser valente. Eu também posso</p><p>amar. Apenas a morte teria o poder de nos separar. Não vai ter esse poder</p><p>agora.” E cravou no coração a espada ainda molhada com o sangue da vida</p><p>de Píramo.</p><p>Os deuses, no �m, se mostraram piedosos, e os pais dos dois</p><p>enamorados também. Os frutos vermelho-escuros da amoreira são a</p><p>homenagem eterna a esses verdadeiros amantes e uma mesma urna guarda</p><p>as cinzas dos dois que nem a morte foi capaz de separar.</p><p>ORFEU E EURÍDICE</p><p>O relato de Orfeu com os Argonautas é feito apenas por Apolônio de Rodes,</p><p>poeta grego do século III a.C. Para o restante da história, o melhor relato</p><p>é</p><p>o de dois poetas romanos, Virgílio e Ovídio, ambos num estilo bem</p><p>semelhante. Sendo assim, os nomes latinos dos deuses são usados aqui.</p><p>Apolônio in�uenciou bastante Virgílio. Na verdade, qualquer um dos três</p><p>poderia ter escrito a história inteira tal como aparece aqui.</p><p>Os primeiros músicos foram os deuses. Palas Atena não se destacava nesse</p><p>quesito, mas ela inventou a �auta, embora nunca a tenha tocado. Hermes</p><p>fabricou a lira e a deu de presente para Apolo, que dela tirou sons tão</p><p>melodiosos que, quando a tocava no Olimpo, os deuses esqueciam tudo</p><p>mais. Hermes também fabricou para si a siringe e dela tirou um som</p><p>encantador. Pã criou a �auta de junco, capaz de um canto tão doce quanto o</p><p>do rouxinol na primavera. As Musas não tinham nenhum instrumento</p><p>próprio, mas suas vozes eram de uma beleza incomparável.</p><p>Em segundo lugar vinham alguns mortais, tão exímios em sua arte que</p><p>quase se equiparavam aos artistas divinos. O maior de todos era Orfeu. Pelo</p><p>lado da mãe, Orfeu era mais do que mortal: era �lho de uma das Musas com</p><p>um príncipe da Trácia. Recebeu da mãe o dom da música e na Trácia, onde</p><p>cresceu, o aprimorou. Os trácios eram o povo mais musical da Grécia. Mas</p><p>Orfeu não tinha nenhum rival à altura, nem lá nem em qualquer outro</p><p>lugar, a não ser os próprios deuses. Quando ele tocava e cantava, seu poder</p><p>não tinha limites. Nada nem ninguém era capaz de resistir ao seu encanto.</p><p>Nas matas profundas e tranquilas no alto das montanhas da Trácia</p><p>Orfeu com sua lira cantante conduzia as árvores</p><p>E os animais selvagens da natureza.</p><p>Tudo o seguia, fossem coisas animadas ou inanimadas. Ele mudava a</p><p>posição das pedras nas encostas e desviava o curso dos rios.</p><p>Pouco se conta sobre sua vida antes do malfadado casamento, pelo qual</p><p>ele é mais conhecido do que pela sua música, mas ele partiu numa famosa</p><p>expedição, da qual se revelou um integrante muito útil. Zarpou com Jasão a</p><p>bordo do Argo e, quando os heróis estavam cansados, ou nos momentos em</p><p>que era especialmente difícil remar, Orfeu empunhava sua lira e a energia</p><p>dos marinheiros se renovava e seus remos fustigavam o mar em uníssono,</p><p>ao ritmo da música. Ou então, nos casos em que uma briga ameaçasse</p><p>surgir, ele tocava de modo tão terno e tranquilizador que até mesmo os</p><p>espíritos mais hostis se acalmavam e esqueciam a raiva. Orfeu também</p><p>salvou os heróis das sereias. Quando eles ouviram, ao longe no mar, um</p><p>canto tão encantadoramente doce que eliminava quaisquer pensamentos</p><p>exceto um anseio desesperado por ouvir mais, e viraram o navio em direção</p><p>à margem na qual as sereias estavam sentadas, Orfeu empunhou sua lira e</p><p>tocou uma melodia tão clara e tão sonora que abafou o canto daquelas vozes</p><p>belas e fatais. O navio retomou seu curso e os ventos o levaram depressa</p><p>para longe daquele lugar perigoso. Se Orfeu não estivesse ali, os argonautas</p><p>também teriam deixado seus ossos na ilha das sereias.</p><p>Ninguém nos conta como ele conheceu nem como conquistou Eurídice,</p><p>a jovem a quem amava, mas �ca claro que nenhuma donzela que ele</p><p>desejasse teria conseguido resistir ao poder de sua canção. Os dois se</p><p>casaram, mas a alegria durou pouco. Imediatamente após as bodas, ao entrar</p><p>num prado acompanhada por suas damas de honra, a noiva foi picada por</p><p>uma víbora e morreu. A dor de Orfeu foi avassaladora. Ele não conseguiu</p><p>suportá-la. Decidiu descer ao mundo dos mortos e tentar trazer Eurídice de</p><p>volta. Disse a si mesmo:</p><p>Com minha canção</p><p>Encantarei a �lha de Deméter,</p><p>Encantarei o senhor dos mortos.</p><p>Com minha melodia comoverei seus corações</p><p>E a levarei embora do Hades.</p><p>Por seu amor, ele ousou mais do que qualquer outro homem jamais</p><p>tinha ousado. Fez a assustadora viagem até o mundo subterrâneo. Lá, tocou</p><p>sua lira e, ao escutá-la, toda aquela multidão se encantou e �cou paralisada.</p><p>O cão Cérbero relaxou sua guarda; a roda de Íxion se imobilizou; Sísifo se</p><p>sentou para descansar sobre sua pedra; Tântalo esqueceu sua sede; pela</p><p>primeira vez, o rosto das temidas deusas Fúrias �cou molhado de lágrimas.</p><p>O senhor do Hades se aproximou com sua rainha para escutar. Orfeu</p><p>cantou:</p><p>Ó deuses que governam o mundo escuro e silencioso,</p><p>A vocês precisam ir todos os nascidos da mulher.</p><p>Todas as coisas belas no �m descem ao seu encontro.</p><p>Vocês são os credores a quem sempre se paga.</p><p>Passamos um tempo curto na Terra,</p><p>Depois somos seus para todo o sempre.</p><p>Mas estou buscando uma que veio ao seu encontro antes da hora.</p><p>O botão foi arrancado antes de a �or desabrochar.</p><p>Tentei suportar minha perda. Não consegui.</p><p>O amor foi um deus demasiado forte. Ó rei, você sabe,</p><p>Se a antiga história contada pelos homens é verdade, como um dia</p><p>As �ores testemunharam o rapto de Proserpina.</p><p>Pois teça novamente para a doce Eurídice</p><p>A trama da vida que do tear foi tirada</p><p>Depressa demais. É uma coisa pequena que peço,</p><p>Apenas que a empreste, não que a dê a mim.</p><p>Ela será sua quando seu ciclo de anos se encerrar.</p><p>Ninguém sob o feitiço da voz de Orfeu podia lhe negar nada. Ele fez</p><p>Lágrimas de ferro escorreram pelas faces de Plutão</p><p>E fez o Inferno conceder o que Amor buscava.</p><p>Foram chamar Eurídice e a entregaram para Orfeu, mas com uma</p><p>condição: que ele não olhasse para trás na direção dela enquanto ela o</p><p>estivesse seguindo no caminho de volta ao mundo superior. Os dois então</p><p>atravessaram os grandes portões do Hades, tomaram o caminho que os faria</p><p>sair da escuridão e foram subindo, subindo. Orfeu sabia que Eurídice devia</p><p>estar logo atrás, mas sentiu uma vontade irresistível de dar apenas uma</p><p>olhada para se certi�car. Eles agora estavam quase chegando e a escuridão já</p><p>tinha se acinzentado; ele já havia saído alegremente para a luz do dia. Então</p><p>se virou para ela. Mas foi cedo demais: ela ainda estava dentro da caverna.</p><p>Ele a viu na penumbra e estendeu a mão para pegá-la, mas no mesmo</p><p>instante ela desapareceu. Tinha escorregado de volta para a escuridão. Tudo</p><p>que ele ouviu foi um débil “Adeus”.</p><p>Desesperado, Orfeu tentou sair correndo e descer atrás dela, mas isso</p><p>não lhe foi permitido. Os deuses não o deixaram entrar no mundo dos</p><p>mortos uma segunda vez enquanto ainda estivesse vivo. Ele foi obrigado a</p><p>voltar para a Terra sozinho e totalmente devastado. Orfeu então desistiu da</p><p>companhia dos homens. Passou a vagar pelas paisagens ermas da Trácia,</p><p>inconsolável exceto por sua lira, tocando, sempre tocando, e seus únicos</p><p>companheiros �cavam felizes em escutá-lo: as pedras, os rios e as árvores.</p><p>Por �m, um grupo de mênades o encontrou. O frenesi delas era comparável</p><p>ao daquelas que haviam causado a morte horrível de Penteu. Elas</p><p>assassinaram o gentil músico, arrancaram-lhe todos os membros e jogaram</p><p>sua cabeça decepada no veloz rio Evros. A cabeça foi levada até a foz do rio e</p><p>de lá até a costa de Lesbos, e não havia sofrido qualquer mudança por causa</p><p>do mar quando as Musas a encontraram e a enterraram no santuário da ilha.</p><p>Os membros de Orfeu foram então recolhidos e sepultados num túmulo ao</p><p>pé do monte Olimpo, onde, até hoje, o canto dos rouxinóis é mais doce do</p><p>que em qualquer outro lugar.</p><p>CÉIX E ALCIONE</p><p>Ovídio é a melhor fonte para esta história. O exagero da tempestade é</p><p>tipicamente romano. A morada de Sono, com seus detalhes encantadores,</p><p>demonstra o poder descritivo de Ovídio. Os nomes dos deuses são,</p><p>naturalmente, latinos.</p><p>Céix, um rei da Tessália, era �lho de Lúcifer, aquele que carrega a luz, a</p><p>estrela que anuncia o novo dia, e trazia no seu semblante todo o alegre</p><p>brilho do pai. Sua esposa, Alcione, também tinha ascendência nobre: era</p><p>�lha de Éolo, o rei dos ventos. Os dois se amavam profundamente e não</p><p>gostavam de �car separados. Mas chegou um momento em que Céix decidiu</p><p>que precisava deixá-la e fazer uma longa viagem por mar. Vários</p><p>acontecimentos o haviam perturbado e ele desejava consultar o oráculo,</p><p>refúgio dos homens em tempos turbulentos. Ao se inteirar dos planos do</p><p>marido, Alcione �cou subjugada por tristeza e terror. Disse-lhe, aos prantos</p><p>e com a voz entrecortada por soluços, que sabia</p><p>como poucos podiam saber</p><p>o poder que os ventos tinham no mar. No palácio do pai tinha observado</p><p>esses ventos desde menina, seus encontros turbulentos, as nuvens negras</p><p>que eles conclamavam e o relâmpago vermelho e incontrolável. “E muitas</p><p>vezes vi darem na praia os destroços dos navios”, disse ela. “Ah, não vá. Mas,</p><p>se eu não puder convencê-lo, pelo menos me leve também. Posso suportar</p><p>qualquer coisa que nos aconteça juntos.”</p><p>Céix �cou muito comovido, pois a amava tanto quanto ela a ele, mas se</p><p>manteve �rme em seu propósito. Sentia que precisava pedir conselho ao</p><p>oráculo e não aceitou que Alcione compartilhasse os perigos da viagem. A</p><p>esposa precisou ceder e deixá-lo partir sozinho. Ao se despedir, ela sentiu no</p><p>coração um peso tão grande que era como se previsse o que iria acontecer.</p><p>Ficou na margem vendo o navio se afastar até desaparecer no mar.</p><p>Nessa mesma noite uma violenta tempestade se abateu sobre o mar. Os</p><p>ventos se juntaram todos num furacão enlouquecido e as ondas �caram do</p><p>tamanho das montanhas. Chovia tão forte que o céu inteiro parecia estar</p><p>despencando no mar e o mar parecia estar saltando até o céu. Os homens a</p><p>bordo do trepidante navio fustigado pelas ondas �caram enlouquecidos de</p><p>pavor, exceto um, que só conseguia pensar em Alcione e se alegrar com o</p><p>fato de ela estar segura. Céix dizia o nome da esposa quando o navio</p><p>afundou e as águas o encobriram.</p><p>Alcione contava os dias. Mantinha-se ocupada tecendo uma túnica para</p><p>quando o marido voltasse e outra para estar bonita no momento em que ele</p><p>a revisse. E rezava muitas vezes por dia para que os deuses o protegessem,</p><p>sobretudo para Juno. A deusa se comoveu com essas preces por um homem</p><p>que já estava morto havia tempo. Chamou sua mensageira Íris e lhe ordenou</p><p>que fosse à casa de Somnus, o deus do sono, pedir-lhe que mandasse um</p><p>sonho a Alcione lhe contando a verdade sobre Céix.</p><p>A morada de Sono �ca próxima ao país negro dos cimérios, num vale</p><p>profundo onde o sol nunca brilha e a penumbra do crepúsculo envolve tudo</p><p>em sombras. Lá nenhum galo canta, nenhum cão de guarda rompe o</p><p>silêncio, nenhum galho farfalha com a brisa, nenhum clamor de línguas</p><p>perturba o silêncio. O único som provém da suave correnteza do Lete, o rio</p><p>do esquecimento, cujas águas murmurantes induzem o sono. Em frente à</p><p>porta �orescem papoulas e outras ervas soníferas. Lá dentro, Sono �ca</p><p>deitado sobre um divã de cor preta, macio como plumas. Íris chegou com</p><p>sua capa multicolorida, esvoaçando pelo céu na curva de um arco-íris, e a</p><p>casa escura se acendeu com o fulgor de suas vestes. Mesmo assim, ela teve</p><p>di�culdade para fazer o deus abrir seus olhos pesados e entender o que</p><p>precisava fazer. Assim que teve certeza de que Sono estava de fato desperto e</p><p>que ela havia cumprido a tarefa, Íris foi embora depressa, com medo de cair</p><p>ela também num sono eterno.</p><p>O velho Sono acordou seu �lho Morfeu, habilidoso em assumir a forma</p><p>de todo e qualquer ser humano, e comunicou-lhe a ordem de Juno. Com</p><p>asas silenciosas, Morfeu atravessou voando a escuridão e foi se postar junto</p><p>à cama de Alcione. Tinha assumido o rosto e a forma de Céix afogado. Nu e</p><p>ensopado, curvou-se por cima da cama dela. “Pobre esposa”, sussurrou,</p><p>“veja, aqui está seu marido. Está me reconhecendo ou meu rosto mudou</p><p>com a morte? Eu morri, Alcione. Dizia seu nome no momento em que as</p><p>águas me engolfaram. Não há mais esperança para mim. Mas me dê suas</p><p>lágrimas. Não me deixe descer para a terra das sombras sem ser pranteado.”</p><p>Enquanto dormia, Alcione gemeu e estendeu os braços para envolvê-lo.</p><p>Gritou “Espere por mim! Vou com você!” e seu grito a despertou. Ela</p><p>acordou convencida de que o marido estava morto e de que o que vira não</p><p>tinha sido um sonho, mas Céix em pessoa. “Eu o vi, ali”, disse a si mesma.</p><p>“Seu aspecto dava pena. Ele morreu, e eu em breve morrerei. Por acaso</p><p>poderia �car aqui enquanto seu corpo querido é jogado pelas ondas para lá</p><p>e para cá? Não vou abandoná-lo, marido meu, não vou tentar viver.”</p><p>Assim que o dia raiou, ela foi até a praia e subiu ao mesmo promontório</p><p>em que �cara vendo o navio de Céix se afastar. Enquanto olhava para o mar,</p><p>viu algo boiando na água bem lá longe. A maré subia e aquilo chegava cada</p><p>vez mais perto, até ela ver o contorno de um corpo. Ficou olhando, com o</p><p>coração cheio de pena e horror, enquanto ele �utuava lentamente até ela. O</p><p>cadáver então chegou perto do promontório e �cou quase ao seu lado. Era</p><p>ele, seu marido Céix. Alcione correu e se jogou no mar aos gritos de</p><p>“Marido, querido!”, e então, ó maravilha, em vez de afundar nas ondas,</p><p>começou a voar por cima delas. Tinha criado asas; seu corpo estava coberto</p><p>de penas. Ela fora transformada em pássaro. Os deuses foram bons: �zeram</p><p>a mesma coisa com Céix. Quando Alcione chegou voando aonde o corpo</p><p>estava, ele tinha sumido e, transformado também em pássaro, juntou-se a</p><p>ela. Mas seu amor continuava o mesmo. Eles são vistos sempre juntos,</p><p>voando ou boiando nas ondas.</p><p>Todos os anos, por sete dias a �o, o mar �ca parado e calmo e nenhum</p><p>sopro de vento vem perturbar as águas. São os dias em que Alcione choca</p><p>seus ovos num ninho a boiar sobre o mar. Depois que as pequenas aves</p><p>nascem, o encanto é rompido, mas a cada inverno sucedem esses dias de paz</p><p>perfeita, e eles são batizados em homenagem a Alcione, sendo mais</p><p>conhecidos em inglês pela expressão halcyon days, “dias perfeitos”.</p><p>Enquanto as aves da calmaria chocam, sentadas nas ondas</p><p>encantadas.</p><p>PIGMALIÃO E GALATEIA</p><p>Esta história é contada por Ovídio e a deusa do amor é, portanto, Vênus.</p><p>Ela constitui um excelente exemplo do modo como Ovídio embeleza um mito</p><p>(em relação a isso, veja o capítulo Introdução à mitologia clássica).</p><p>Um talentoso jovem escultor de Chipre chamado Pigmalião detestava as</p><p>mulheres.</p><p>Por detestar os erros desmedidos dos quais a natureza</p><p>Proveu as mulheres,</p><p>ele decidiu jamais se casar. Sua arte lhe bastava, falou para si mesmo.</p><p>Apesar disso, a estátua que esculpiu e à qual dedicara todo o seu talento era</p><p>a de uma mulher. Ou ele não conseguia banir do pensamento, com a mesma</p><p>facilidade que banira de sua vida, aquilo que tanto reprovava, ou então</p><p>estava decidido a criar a mulher perfeita e a mostrar aos homens as</p><p>de�ciências da espécie que eles precisavam suportar.</p><p>Seja como for, Pigmalião dedicou muito tempo e esforço à estátua e</p><p>produziu uma obra de arte esplêndida. No entanto, por mais bela que fosse a</p><p>estátua, ele não conseguia �car satisfeito. Seguiu trabalhando nela e, sob os</p><p>seus dedos habilidosos, ela �cava cada dia mais linda. Nenhuma mulher</p><p>jamais nascida, nenhuma estátua jamais esculpida podiam a ela se comparar.</p><p>Quando nada mais pôde ser somado à sua perfeição, um estranho destino</p><p>acometeu o artista: ele se apaixonou, profunda e arrebatadoramente, pelo</p><p>objeto da sua criação. É preciso dizer, à guisa de explicação, que a estátua</p><p>não parecia uma estátua; ninguém a teria tomado por mar�m ou pedra, mas</p><p>sim por carne humana quente, imóvel por um instante apenas. Era esse o</p><p>assombroso poder do desdenhoso rapaz. Ele conseguira realizar o feito</p><p>supremo da arte: a arte de ocultar a própria arte.</p><p>Mas, desse momento em diante, o sexo que ele havia desprezado se</p><p>vingou. Nenhum amante não correspondido por uma donzela de carne e</p><p>osso jamais foi tão desesperadamente infeliz quanto Pigmalião. Ele beijava</p><p>aqueles lábios sedutores, mas eles não podiam retribuir seus beijos;</p><p>acariciava aquelas mãos, aquele rosto, mas eles não reagiam; tomava-a nos</p><p>braços, mas ela permanecia fria e passiva. Durante algum tempo ele fez de</p><p>conta, como fazem as crianças com seus brinquedos. Vestia a estátua com</p><p>ricos trajes, experimentando o efeito de sucessivas cores delicadas ou</p><p>cintilantes, e imaginava que aquilo a agradava. Levava-lhe os presentes que</p><p>as donzelas de verdade costumam apreciar: pequenos pássaros e �ores</p><p>coloridas, e as brilhantes lágrimas de âmbar que as irmãs de Faetonte</p><p>choram, e depois sonhava que ela lhe agradecia com carinhoso afeto.</p><p>Punha-a</p><p>na cama à noite e a aconchegava em cobertas macias e quentinhas,</p><p>como as meninas pequenas fazem com suas bonecas. Só que Pigmalião não</p><p>era uma criança; não podia continuar fazendo de conta. Amava uma coisa</p><p>sem vida e era imensamente infeliz.</p><p>Essa paixão singular não permaneceu por muito tempo escondida da</p><p>deusa do amor apaixonado. Vênus se interessou por algo que raramente</p><p>encontrava, um novo tipo de amante, e decidiu ajudar um jovem capaz de</p><p>estar apaixonado e, ao mesmo tempo, ser original.</p><p>Pigmalião e Galateia</p><p>O festival de Vênus, claro, era especialmente comemorado na ilha de</p><p>Chipre, o primeiro lugar a receber a deusa depois que ela nasceu da espuma.</p><p>Novilhas brancas como a neve, com chifres pintados de ouro, lhe eram</p><p>ofertadas aos montes; o perfume celestial do incenso se espalhava pela ilha</p><p>em seus muitos altares; multidões lotavam seus templos; muitos amantes</p><p>infelizes estavam lá com ofertas, rezando para que seu amado se mostrasse</p><p>gentil. E Pigmalião, claro, também foi. Só se atreveu a pedir à deusa para</p><p>encontrar uma moça igual à sua estátua, mas Vênus sabia o que ele</p><p>realmente queria e, num sinal de que via com bons olhos as preces do</p><p>artista, a chama do altar diante do qual ele estava deu três saltos, queimando</p><p>no ar.</p><p>Muito atento a esse bom presságio, Pigmalião voltou para casa e para o</p><p>seu amor, a coisa por ele criada e a quem havia entregado seu coração. Ali</p><p>estava ela sobre o pedestal, fascinante de tão bela. Ele a acariciou e então</p><p>recuou com um sobressalto. Estaria enganando a si mesmo ou a estátua de</p><p>fato parecia quente sob seus dedos? Beijou-lhe os lábios, um beijo longo e</p><p>demorado, e os sentiu amolecerem sob os seus. Tocou-lhe os braços, os</p><p>ombros; a dureza tinha desaparecido. Era como ver a cera derreter sob o sol.</p><p>Segurou-a pelo pulso e sentiu o sangue pulsar. Vênus, pensou ele. Isso é obra</p><p>da deusa. Com uma gratidão e uma alegria indizíveis, Pigmalião envolveu</p><p>sua amada com os braços e a viu sorrir para ele e enrubescer.</p><p>Vênus em pessoa prestigiou com sua presença as bodas do casal. O que</p><p>aconteceu depois disso não sabemos, a não ser que Pigmalião batizou a</p><p>donzela de Galateia e que o �lho que os dois tiveram, Pafos, deu seu nome à</p><p>cidade preferida de Vênus.</p><p>BÁUCIS E FILÊMON</p><p>Ovídio é a única fonte desta história. Ela mostra especialmente bem seu</p><p>amor pelos detalhes e o modo habilidoso com o qual ele os usa para fazer um</p><p>conto de fadas parecer realista. Os nomes latinos dos deuses são usados.</p><p>No país montanhoso da Frígia existiam duas árvores que todos os</p><p>camponeses, pelos quatro cantos, consideravam um grande portento, e não</p><p>era para menos, pois uma era um carvalho e a outra, uma tília, mas</p><p>brotavam de um mesmo tronco. A história de como isso aconteceu é prova</p><p>do poder incomensurável dos deuses e também de como eles recompensam</p><p>quem demonstra humildade e fervor.</p><p>Às vezes, quando Júpiter se cansava de comer ambrosia e beber néctar</p><p>no Olimpo, e até mesmo um pouco de escutar a lira de Apolo e de assistir à</p><p>dança das Graças, ele descia à Terra, disfarçava-se de mortal e saía em busca</p><p>de aventuras. Seu companheiro preferido nesses passeios era Mercúrio, o</p><p>mais divertido de todos os deuses, o mais astuto e engenhoso. Nessa viagem</p><p>em especial, Júpiter tinha decidido descobrir quão hospitaleiro era o povo</p><p>frígio. A hospitalidade era muito importante para ele, claro, já que todos os</p><p>hóspedes, todos aqueles que buscam abrigo numa terra estranha, tinham a</p><p>sua proteção especial.</p><p>Os dois deuses, portanto, adotaram a aparência de viajantes pobres e</p><p>passaram a vagar pela região, indo bater em todos os modestos casebres e</p><p>todas as residências grandiosas que encontravam para pedir comida e um</p><p>lugar para descansar. Nenhum desses lugares os aceitou; todas as vezes eles</p><p>foram dispensados com insolência e as portas foram trancadas para impedir</p><p>sua entrada. Tentaram centenas de casas e em todas foram tratados da</p><p>mesma forma. Por �m chegaram a uma pequena choça do tipo mais</p><p>humilde, mais pobre do que qualquer outra que já tivessem encontrado,</p><p>com o telhado feito apenas de juncos. Ali, porém, quando bateram, a porta</p><p>se abriu de par em par e uma voz alegre mandou que entrassem. Eles</p><p>tiveram que se curvar para passar pela porta baixa, mas uma vez lá dentro se</p><p>viram num cômodo aconchegante e muito limpo onde um velho e uma</p><p>velha de semblantes bondosos os receberam com a maior simpatia possível e</p><p>se apressaram em deixá-los à vontade.</p><p>O velho pôs um banco perto do fogo e lhes disse para ali se esticarem e</p><p>descansarem os membros cansados, e a velha o forrou com uma coberta</p><p>macia. Seu nome era Báucis, disse ela aos desconhecidos, e seu marido se</p><p>chamava Filêmon. Os dois viviam naquele casebre desde que se casaram e</p><p>sempre tinham sido felizes. “Somos gente pobre”, disse ela, “mas a pobreza</p><p>não é tão ruim assim quando a pessoa se dispõe a assumi-la, e um espírito</p><p>bem-disposto também ajuda muito.” Durante todo o tempo em que falava,</p><p>ela não parou de fazer coisas para os visitantes. Abanou os carvões sob as</p><p>cinzas na lareira escura até avivar o fogo. Acima deste, pendurou uma</p><p>pequena panela com água; assim que a água começou a ferver, seu marido</p><p>apareceu com um belo repolho que havia colhido na horta. Pôs o repolho</p><p>dentro da panela junto com um pedaço da carne de porco que pendia das</p><p>vigas. Enquanto a comida cozinhava, Báucis arrumou a mesa com suas</p><p>velhas mãos trêmulas. Um dos pés da mesa era mais curto, mas ela o calçou</p><p>com um pedaço de louça quebrada. Sobre o tampo dispôs azeitonas,</p><p>rabanetes e vários ovos que havia cozinhado nas brasas do fogo. A essa</p><p>altura, o repolho e o toucinho estavam prontos, e o velho aproximou da</p><p>mesa dois divãs mambembes e disse aos convidados que se reclinassem e</p><p>comessem.</p><p>Pouco depois ele lhes trouxe canecas de madeira e uma tigela de</p><p>cerâmica contendo um pouco de vinho muito semelhante a vinagre e</p><p>bastante diluído em água. Filêmon, porém, mostrou-se claramente</p><p>orgulhoso e feliz por poder acrescentar uma alegria daquelas à refeição e</p><p>manteve-se a postos para tornar a encher as canecas assim que elas se</p><p>esvaziavam. O casal de velhos �cou tão satisfeito e animado com o sucesso</p><p>de sua hospitalidade que demorou a reparar numa coisa estranha: a tigela</p><p>continuava cheia. Por mais canecas que fossem servidas, o nível do vinho</p><p>permanecia o mesmo, rente à borda. Ao constatarem esse fato assombroso,</p><p>eles se entreolharam aterrorizados, baixaram os olhos e começaram a rezar</p><p>em silêncio. Então, com a voz e o corpo trêmulos, imploraram aos visitantes</p><p>que perdoassem os comes e bebes modestos que tinham servido. “Temos</p><p>um ganso que deveríamos ter oferecido aos senhores”, disse o velho. “Se</p><p>puderem esperar, no entanto, faremos isso agora mesmo.” Mas capturar o</p><p>ganso se mostrou além da sua capacidade. Os dois tentaram, em vão, até</p><p>�carem exaustos, enquanto Júpiter e Mercúrio os observavam, achando</p><p>aquilo muito divertido.</p><p>Mas quando tanto Filêmon como Báucis foram obrigados a desistir da</p><p>caça, ofegantes e exaustos, os deuses pensaram que havia chegado a hora de</p><p>agir. O casal era de fato muito gentil. “Vocês receberam dois deuses”,</p><p>disseram, “e terão sua recompensa. Este país mau que despreza o pobre</p><p>desconhecido será severamente punido, mas vocês, não.” Eles</p><p>acompanharam o casal até o lado de fora do casebre e lhes disseram para</p><p>olhar em volta. Para assombro de ambos, eles viram apenas água. Toda a</p><p>paisagem tinha desaparecido. Estavam rodeados por um grande lago. Os</p><p>vizinhos não tinham sido bons para o velho casal, mas mesmo assim ambos</p><p>choraram por eles. De repente suas lágrimas foram secadas por um</p><p>assombro espantoso. Diante dos seus olhos, o minúsculo e pobre casebre</p><p>que fora por tanto tempo seu lar se transformou num templo imponente, de</p><p>colunas feitas do mais branco mármore e com um telhado de ouro.</p><p>“Boas pessoas, peçam o que quiserem e seu desejo será atendido”, disse</p><p>Júpiter. Os velhos trocaram um sussurro apressado e Filêmon então falou:</p><p>“Permitam-nos ser seus</p><p>seres míticos. Se essa mistura lhe parece infantil, pense</p><p>em como esse fundo sólido é tranquilizador e sensato em comparação com</p><p>um gênio que surge do nada quando Aladim esfrega a lâmpada e, uma vez</p><p>tendo cumprido sua tarefa, ao nada retorna.</p><p>O irracional aterrorizante não tem lugar na mitologia clássica. A magia,</p><p>tão poderosa nos mundos anterior e posterior à Grécia, é quase inexistente.</p><p>Não há nenhum homem e apenas duas mulheres com poderes terríveis e</p><p>sobrenaturais. Os magos demoníacos e as horrendas bruxas velhas que</p><p>assombravam a Europa, e também a América, até épocas bem recentes, não</p><p>têm qualquer participação nas histórias. Circe e Medeia são as únicas</p><p>bruxas, e ambas são jovens e de beleza ímpar: não são horríveis, mas sim</p><p>formosas. A astrologia, que �oresceu desde a época da antiga Babilônia até</p><p>hoje, está completamente ausente da Grécia clássica. Há muitas histórias</p><p>sobre as estrelas, mas nenhum vestígio da ideia de que elas in�uenciam a</p><p>vida humana. O sentido que a mente grega acabou por dar às estrelas é a</p><p>astronomia. Nenhuma história sequer contém um terrível sacerdote mágico</p><p>a ser temido por conhecer formas de conquistar os deuses ou neutralizar seu</p><p>poder. O sacerdote raramente é visto e nunca é importante. Na Odisseia,</p><p>quando um sacerdote e um poeta caem de joelhos diante de Odisseu e</p><p>imploram que este lhes poupe a vida, o herói mata o sacerdote sem</p><p>pestanejar, mas salva o poeta. Segundo Homero, ele não ousou matar um</p><p>homem cuja arte divina lhe fora ensinada pelos deuses. Quem tinha</p><p>in�uência no céu não era o sacerdote, mas o poeta, e ninguém nunca temeu</p><p>um poeta. Da mesma forma, os fantasmas, que tiveram uma participação</p><p>tão forte e tão assustadora em outros lugares, não aparecem na terra em</p><p>nenhuma história grega. Os gregos não temiam os mortos; “os pobres</p><p>mortos”, é como a Odisseia os chama.</p><p>O mundo da mitologia grega não era um lugar de terrores para o espírito</p><p>humano. É verdade que os deuses eram de uma imprevisibilidade</p><p>desconcertante. Ninguém saberia em que lugar cairia o raio de Zeus. Apesar</p><p>disso, todo o elenco divino, com poucas e, em sua maioria, desimportantes</p><p>exceções, era de uma beleza fascinante, uma beleza humana, e nada</p><p>humanamente belo é de fato aterrorizante. Os primeiros mitologistas gregos</p><p>transformaram um mundo cheio de medo num mundo cheio de beleza.</p><p>Esse quadro solar tem seus pontos de sombra. A mudança foi lenta e</p><p>nunca chegou a se completar. Os deuses tornados humanos foram, durante</p><p>muito tempo, uma leve melhoria de seus adoradores. Eram</p><p>incomparavelmente mais belos e mais poderosos, e eram naturalmente</p><p>imortais, mas, muitas vezes, agiam de um modo que nenhum homem ou</p><p>mulher decente agiria. Na Ilíada, Heitor é muito mais nobre do que</p><p>qualquer um dos seres celestiais e Andrômaca é in�nitamente preferível a</p><p>Palas Atena ou Afrodite. Hera, do início ao �m, é uma deusa com um nível</p><p>muito baixo de humanidade. Quase todas as radiosas divindades eram</p><p>capazes de agir com crueldade e desprezo. No céu de Homero, e durante</p><p>muito tempo depois, prevalecia um conceito muito limitado de certo e</p><p>errado.</p><p>Outros pontos sombrios sobressaem. Há vestígios de um tempo em que</p><p>havia deuses animalescos. Os sátiros são homens-bode e os centauros são</p><p>metade homem, metade cavalo. Hera muitas vezes é chamada de “cara de</p><p>vaca”, como se o adjetivo houvesse, de alguma forma, a acompanhado ao</p><p>longo de todas as suas mudanças, de vaca divina até rainha muito humana</p><p>do céu. Algumas histórias também apontam claramente para um tempo</p><p>anterior em que o sacrifício humano existia. Mas o espantoso não é restarem</p><p>pedacinhos de crenças selvagens aqui e ali, o estranho é serem tão escassos.</p><p>É claro que o monstro mítico está presente sob diversas formas,</p><p>Górgonas e hidras e temíveis quimeras,</p><p>mas eles só estão presentes para proporcionar ao herói sua gloriosa</p><p>recompensa. O que um herói poderia fazer num mundo sem eles? Os</p><p>monstros são sempre vencidos pelo herói. O grande herói da mitologia,</p><p>Hércules, talvez seja uma alegoria da própria Grécia. Ele combateu monstros</p><p>e libertou a terra de seu domínio da mesma forma que a Grécia libertou a</p><p>terra da monstruosa ideia de um humano subjugado por um não humano</p><p>supremo.</p><p>Apesar de ser, em grande parte, feita de histórias sobre deuses e deusas, a</p><p>mitologia da Grécia não deve ser lida como uma espécie de Bíblia grega, um</p><p>relato da religião da Grécia. Segundo a ideia mais moderna, o verdadeiro</p><p>mito nada tem a ver com religião. Ele é uma explicação de algo na natureza;</p><p>o mito explica, por exemplo, como toda e qualquer coisa no Universo veio a</p><p>existir: homens, animais, esta ou aquela árvore ou �or, o Sol, a Lua, as</p><p>estrelas, tempestades, erupções vulcânicas, terremotos, tudo que existe e</p><p>tudo que acontece. O trovão e o relâmpago acontecem quando Zeus desfere</p><p>seu raio. Um vulcão entra em erupção porque uma terrível criatura está</p><p>presa dentro da montanha e, de vez em quando, luta para se libertar. O</p><p>Grande Carro – a constelação também chamada de Ursa Maior – não se põe</p><p>abaixo do horizonte porque uma deusa, um dia, se zangou e decretou que</p><p>ele nunca desapareceria no mar. Os mitos são ciência antiga, resultado das</p><p>primeiras tentativas humanas de explicar o que viam à sua volta. Mas</p><p>existem muitos supostos mitos que não explicam absolutamente nada. Essas</p><p>histórias são puro entretenimento, o tipo de coisa que as pessoas contariam</p><p>umas às outras numa longa noite de inverno. A história de Pigmalião e</p><p>Galateia é um exemplo; ela não tem conexão com nenhum acontecimento</p><p>da natureza. O mesmo vale para a busca do velocino de ouro, para a história</p><p>de Orfeu e Eurídice, e para muitas outras. Esse fato é hoje amplamente</p><p>aceito, e não precisamos tentar encontrar em toda heroína mítica a Lua ou a</p><p>aurora, nem na vida de todo herói um mito do Sol. Além de serem uma</p><p>forma primária de ciência, as histórias são também uma forma primitiva de</p><p>literatura.</p><p>Mas a religião também está presente nelas – ao fundo, com certeza, mas,</p><p>ainda assim, visível. Desde Homero até os autores trágicos, e mesmo depois,</p><p>existe uma consciência cada vez mais profunda do que o ser humano</p><p>necessita e do que precisa encontrar em seus deuses.</p><p>Parece certo que o Zeus do trovão era, antes, um deus da chuva. Ele era</p><p>superior até mesmo ao Sol, porque a pedregosa Grécia precisava mais de</p><p>chuva do que de sol, e o Deus dos deuses seria aquele capaz de proporcionar</p><p>a seus adoradores a preciosa água da vida. Mas o Zeus de Homero não é um</p><p>fato da natureza. Ele é uma pessoa vivendo num mundo que a civilização já</p><p>adentrou, e naturalmente ele tem um padrão para o que é certo e errado.</p><p>Não um padrão muito alto, com certeza, e que parece se aplicar sobretudo</p><p>aos outros, não a ele mesmo, mas Zeus de fato pune os homens que mentem</p><p>e quebram seus juramentos; zanga-se com qualquer agravo aos mortos; e</p><p>�ca com pena e ajuda o velho Príamo quando este procura Aquiles como</p><p>suplicante. Na Odisseia, ele alcançou um nível mais alto. Nela, o guardador</p><p>de porcos diz que os necessitados e forasteiros pertencem a Zeus e que quem</p><p>não os ajudar estará pecando contra o próprio Zeus. Hesíodo, não muito</p><p>depois da Odisseia, se não na mesma época, diz sobre o homem que trata</p><p>mal o vassalo e o forasteiro, ou que engana crianças órfãs: “Com este</p><p>homem, Zeus se zanga.”</p><p>A Justiça então se torna companheira de Zeus. Essa era uma ideia nova.</p><p>Os líderes guerreiros da Ilíada não queriam justiça, queriam poder pegar</p><p>tudo que desejassem por serem fortes e queriam um deus que estivesse do</p><p>lado dos fortes. Mas Hesíodo, um camponês que vivia no mundo de um</p><p>homem pobre, sabia que os pobres precisavam de um deus justo. Ele</p><p>escreveu: “Peixes, bestas e aves do ar devoram uns aos outros. Mas ao</p><p>homem Zeus deu justiça. Junto a Zeus, em seu trono, está sentada a Justiça.”</p><p>Esses trechos mostram que as grandes e amargas necessidades dos</p><p>impotentes estavam chegando ao céu e transformando o deus dos fortes no</p><p>protetor dos fracos.</p><p>Assim, por trás das histórias</p><p>sacerdotes e proteger este seu templo… e, ah, já que</p><p>vivemos tanto tempo juntos, permitam que nenhum de nós jamais precise</p><p>viver sozinho. Permitam que morramos juntos.”</p><p>Os deuses assentiram, satisfeitos com ambos. Durante muito tempo o</p><p>casal serviu naquele edifício grandioso. A história não diz se eles chegaram a</p><p>sentir falta do seu único e aconchegante cômodo com o fogo animado. Um</p><p>dia, postados diante daquela magni�cência feita de mármore e de ouro, eles</p><p>se puseram a falar sobre a vida de antigamente, que tinha sido muito dura e,</p><p>apesar disso, muito feliz. Ambos tinham agora uma idade extremamente</p><p>avançada. De repente, enquanto compartilhavam lembranças, cada um viu</p><p>que do outro brotavam folhas. Então uma casca começou a crescer à sua</p><p>volta. Eles tiveram apenas tempo de exclamar: “Adeus, companheiro</p><p>querido, adeus, companheira querida.” E tão logo essas palavras lhes saíram</p><p>dos lábios eles se transformaram em árvores, mas mesmo assim</p><p>continuaram juntos. A tília e o carvalho brotaram de um mesmo tronco.</p><p>Pessoas vieram dos quatro cantos admirar aquela maravilha e havia</p><p>sempre guirlandas de �ores penduradas nos galhos em homenagem ao �el e</p><p>fervoroso casal.</p><p>ENDÍMION</p><p>Esta história foi tirada do poeta Teócrito, do século III a.C. Ele a conta do</p><p>modo verdadeiramente grego, simples e contido.</p><p>Esse jovem de nome tão famoso tem uma história bem curta. Alguns poetas</p><p>dizem que ele foi um rei, outros, um caçador, mas a maioria diz que ele foi</p><p>um pastor. Todos concordam que foi um rapaz de beleza ímpar e que a isso</p><p>se deveu seu destino singular.</p><p>O pastor Endímion,</p><p>Enquanto pastoreava seu rebanho,</p><p>Foi pela lua, Selene,</p><p>Visto, amado e cortejado.</p><p>Do céu ela desceu</p><p>Até o bosque no Latmos</p><p>E o beijou, e ao seu lado se deitou.</p><p>Abençoado seja o seu destino.</p><p>Para sempre ele dorme,</p><p>Sem se mover nem se virar,</p><p>O pastor Endímion.</p><p>Ele jamais acordou para ver a forma prateada e brilhante curvada junto a</p><p>si. Em todas as histórias a seu respeito, Endímion dorme para sempre,</p><p>imortal, mas nunca consciente. Assombrosamente belo, permanece deitado</p><p>na montanha, imóvel e distante como na morte, mas cálido e vivo, e todas as</p><p>noites a Lua o visita e o cobre de beijos. Dizem que esse sono mágico foi</p><p>obra dela. Ela o fez dormir para poder sempre encontrá-lo e acariciá-lo a</p><p>contento. Mas dizem também que essa paixão lhe causa apenas uma grande</p><p>dor, acompanhada de muitos suspiros.</p><p>DAFNE</p><p>Somente Ovídio conta esta história. Só um romano poderia tê-la escrito.</p><p>Um poeta grego jamais teria pensado num traje e num penteado elegantes</p><p>para a ninfa do bosque.</p><p>Dafne foi mais uma daquelas jovens caçadoras independentes que detestam</p><p>o amor e o casamento e podem ser encontradas com tanta frequência nas</p><p>histórias da mitologia. Diz-se que ela foi o primeiro amor de Apolo. Não é</p><p>estranho que tenha fugido dele. Várias das donzelas amadas pelos deuses</p><p>tinham sido obrigadas a matar em segredo os próprios �lhos ou então a ser</p><p>elas mesmas mortas. O melhor destino que uma donzela assim poderia</p><p>esperar era o exílio, e muitas mulheres consideravam isso pior do que a</p><p>morte. As ninfas do oceano que visitavam Prometeu em seu rochedo no</p><p>Cáucaso faziam apenas uma consideração das mais sensatas quando lhe</p><p>diziam:</p><p>Que você nunca, oh, nunca me veja</p><p>Compartilhando o leito de um deus.</p><p>Que nenhum dos moradores do céu</p><p>Jamais de mim se aproxime.</p><p>O amor que conhecem os maiores deuses,</p><p>De cujos olhos ninguém pode se esconder,</p><p>Que esse amor nunca seja meu.</p><p>Guerrear contra um deus-amante não é guerra,</p><p>É desespero.</p><p>Dafne teria concordado plenamente. Mas ela, na verdade, tampouco</p><p>queria um amante mortal. Seu pai, o deus do rio Peneu, vivia muito</p><p>preocupado ao ver a �lha recusar todos os belos e jovens pretendentes que a</p><p>cortejavam. Ele a repreendia com gentileza e se lamentava: “Será que nunca</p><p>vou ter um neto?” Mas, quando ela o enlaçava e lhe pedia “Pai querido,</p><p>deixe-me ser como Diana”, ele cedia e ela partia rumo às matas profundas,</p><p>felicíssima com a liberdade.</p><p>Mas Apolo por �m a viu e tudo acabou para ela. Dafne estava caçando, o</p><p>vestido na altura dos joelhos, os braços nus, os cabelos despenteados.</p><p>Mesmo assim, sua beleza encantou Apolo. Ele pensou: como ela �caria</p><p>devidamente vestida e com os cabelos arrumados? Essa ideia fez o fogo que</p><p>lhe consumia o coração se avivar ainda mais e ele começou a persegui-la.</p><p>Dafne fugiu, e era uma excelente corredora. Até mesmo Apolo teve</p><p>di�culdade para alcançá-la por alguns instantes; mesmo assim, claro, logo</p><p>conseguiu. Enquanto corria, mandou na frente uma voz para seduzi-la,</p><p>convencê-la, tranquilizá-la. “Não tenha medo”, disse a voz. “Pare e descubra</p><p>quem sou, nenhum rústico grosseiro nem pastor. Eu sou o senhor de Delfos</p><p>e a amo.”</p><p>Mas Dafne continuou a correr, ainda mais assustada do que antes. Se</p><p>Apolo estava de fato em seu encalço, ela estava perdida, mas decidida a lutar</p><p>até o �m. O �m tinha quase chegado: ela sentiu o hálito de Apolo no</p><p>pescoço, mas eis que, na sua frente, as árvores se abriram e ela viu o rio do</p><p>pai. Dafne gritou para Peneu: “Ajude-me! Pai, me ajude!” Ao dizer isso, foi</p><p>tomada por uma pesada dormência e seus pés pareceram criar raízes na</p><p>terra sobre a qual ela corria tão veloz. Uma casca começou a se fechar à sua</p><p>volta, folhas começaram a brotar. Ela fora transformada em árvore, um</p><p>loureiro.</p><p>Apolo observou com desalento e tristeza a transformação. “Ah, mais</p><p>formosa donzela, você está perdida para mim”, lamentou o deus. “Mas, pelo</p><p>menos, vai ser a minha árvore. Com suas folhas, meus vencedores enfeitarão</p><p>a cabeça. Você participará de todos os meus triunfos. Apolo e seus louros</p><p>irão se unir sempre que canções forem cantadas e histórias narradas.”</p><p>A linda árvore de folhas lustrosas pareceu menear a cabeça, que se</p><p>balançava como quem concorda, feliz.</p><p>ALFEU E ARETUSA</p><p>Esta história é contada integralmente apenas por Ovídio. Não há nada</p><p>digno de nota no tratamento que ele lhe dá. Os versos ao �m são do poeta</p><p>alexandrino Mosco.</p><p>Na Ortígia, ilha que formava parte de Siracusa, a maior cidade da Sicília,</p><p>existe uma fonte sagrada chamada Aretusa. Mas Aretusa, antigamente, não</p><p>era nem água nem mesmo uma ninfa aquática, mas sim uma bela e jovem</p><p>caçadora e seguidora de Ártemis. Como sua líder, não queria ter nenhum</p><p>envolvimento com homens; como Ártemis, também amava a caça e a</p><p>liberdade da �oresta.</p><p>Certo dia, cansada e com calor depois de tanto perseguir sua presa,</p><p>Aretusa encontrou um rio cristalino protegido pelas sombras de salgueiros</p><p>cor de prata. Impossível imaginar lugar mais delicioso para se banhar. Ela se</p><p>despiu e entrou na deliciosa água fresca. Passou algum tempo nadando pra</p><p>lá e pra cá, sem rumo, totalmente em paz, até que pareceu sentir algo se</p><p>mexer nas profundezas do rio. Assustada, correu para a margem e, ao fazê-</p><p>lo, escutou uma voz: “Por que a pressa, bela donzela?” Sem olhar para trás,</p><p>ela fugiu do regato para a �oresta e correu com toda a velocidade conferida</p><p>pelo medo. Foi perseguida de perto por alguém mais forte do que ela,</p><p>embora não mais veloz. O desconhecido lhe gritou que parasse. Disse-lhe</p><p>que era o deus do rio, Alfeu, e que só a estava seguindo porque a amava. Mas</p><p>ela não quis nada com ele; só pensava em fugir dali. A corrida foi longa, mas</p><p>o desfecho estava decidido desde o início: ele conseguia continuar correndo</p><p>por mais tempo do que ela. Extenuada en�m, Aretusa pediu ajuda à sua</p><p>deusa e seu apelo não foi em vão. Ártemis a transformou em nascente e</p><p>fendeu a terra para formar sob o mar um túnel ligando a Grécia à Sicília.</p><p>Aretusa mergulhou e foi emergir em Ortígia, onde o lugar em que sua</p><p>nascente brota é um solo sagrado dedicado a Ártemis.</p><p>Mas dizem que nem assim ela se viu livre de Alfeu. Segundo a história, o</p><p>deus, transformando-se novamente em rio, seguiu-a pelo túnel e hoje suas</p><p>águas se misturam às dela na nascente. Dizem que se podem ver com</p><p>frequência �ores gregas subirem do fundo e que, se uma caneca de madeira</p><p>for jogada no Alfeu, na Grécia, vai</p><p>o inigualável elixir. Primeiro atracaram em Lemnos, estranha</p><p>ilha onde só viviam mulheres. Elas tinham se rebelado contra os homens e</p><p>matado todos eles, exceto um, o velho rei. Sua �lha, Hipsípile, uma líder</p><p>entre as mulheres, havia poupado o pai e o lançara ao mar dentro de um baú</p><p>oco, que terminou por levá-lo até um lugar seguro. Essas ferozes criaturas,</p><p>porém, acolheram os argonautas e os ajudaram com a boa dádiva de</p><p>comida, vinho e roupas antes de seguirem viagem.</p><p>Logo depois de saírem de Lemnos, os argonautas perderam Hércules,</p><p>que saiu do grupo. Um jovem chamado Hilas, que carregava a armadura do</p><p>herói e lhe era muito caro, ao mergulhar sua jarra numa nascente foi puxado</p><p>para baixo d’água por uma ninfa aquática que viu o rubor rosado de sua</p><p>beleza e desejou beijá-lo. Ela o enlaçou pelo pescoço e o puxou para o fundo,</p><p>e ele não foi mais visto. Hércules o procurou por toda parte feito um louco,</p><p>gritando seu nome e se embrenhando cada vez mais fundo na �oresta, para</p><p>longe do mar. Tinha esquecido o velocino, o Argo e seus companheiros,</p><p>tinha esquecido tudo exceto Hilas. Hércules não voltou e, por �m, o navio</p><p>teve que zarpar sem ele.</p><p>A aventura seguinte foi com as Harpias, assustadoras criaturas aladas de</p><p>bico recurvo e garras que deixavam por onde passassem um cheiro</p><p>pestilento, insuportável para todas as criaturas vivas. No ponto em que os</p><p>argonautas tinham atracado seu navio para pernoitar vivia um velho e</p><p>desafortunado ermitão a quem Apolo, aquele que diz a verdade, tinha</p><p>concedido o dom da profecia. O velho previa com exatidão o que iria</p><p>acontecer, e isso tinha desagradado a Zeus, que sempre gostava de fazer</p><p>mistério sobre suas futuras ações – o que era muito sensato também, na</p><p>opinião de todos que conheciam Hera. Zeus então submeteu o velho a uma</p><p>punição terrível. Toda vez que ele estava a ponto de almoçar, as Harpias, que</p><p>eram chamadas de “os sabujos de Zeus”, desciam em revoada e defecavam na</p><p>comida, deixando-a tão infecta que ninguém conseguia suportar �car perto,</p><p>quanto mais comer aquilo. Quando os argonautas encontraram o pobre</p><p>velho, que se chamava Fineu, ele parecia um sonho sem vida, que rastejava</p><p>sobre pés ressequidos, tremia de fraqueza; somente a pele do corpo</p><p>mantinha seus ossos juntos. Fineu os recebeu com alívio e implorou por</p><p>ajuda. Sabia, graças ao seu dom da profecia, que só poderia ser defendido</p><p>das Harpias por dois homens, ambos membros da tripulação do Argo: os</p><p>�lhos de Bóreas, o grande Vento Norte. Todos o escutaram, penalizados, e</p><p>os dois não vacilaram e prometeram ajudar.</p><p>Enquanto os outros serviam comida ao velho, os �lhos de Bóreas se</p><p>postaram ao seu lado com as espadas em riste. Fineu mal tinha levado um</p><p>bocado aos lábios quando os odiosos monstros desceram zunindo lá do céu</p><p>e, num instante, devoraram tudo e saíram voando, deixando atrás de si o</p><p>cheiro intolerável. Mas os ligeiros �lhos do Vento Norte foram atrás das</p><p>criaturas, alcançaram-nas e as golpearam com suas espadas. Certamente as</p><p>teriam despedaçado se Íris, mensageira arco-íris dos deuses, não tivesse</p><p>descido do céu para impedi-los. Eles não podiam matar os sabujos de Zeus,</p><p>disse ela, mas jurou pelas águas do Estige, um juramento que ninguém</p><p>podia quebrar, que as Harpias nunca mais perturbariam Fineu. Os dois</p><p>então voltaram satisfeitos e reconfortaram o velho, que, de tão contente,</p><p>passou a noite inteira sentado se banqueteando com os heróis.</p><p>Fineu também lhes deu sábios conselhos relacionados aos perigos que</p><p>tinham pela frente, em especial as Simplégades, duas rochas que se</p><p>chocavam perpetuamente uma contra a outra enquanto o mar fervia à sua</p><p>volta. O jeito de conseguir passar por elas, falou, era primeiro fazer um teste</p><p>com uma pomba. Se ela passasse em segurança, havia chances de eles</p><p>também passarem. Mas, se a pomba fosse esmagada, eles precisariam dar</p><p>meia-volta e abandonar qualquer esperança de encontrar o velocino de</p><p>ouro.</p><p>As Harpias e os argonautas</p><p>Na manhã seguinte os argonautas partiram, levando, é claro, uma</p><p>pomba, e logo avistaram as imensas rochas a rolar. Parecia impossível haver</p><p>um jeito de passar entre elas, mas eles libertaram a pomba e �caram</p><p>observando. A ave passou voando e saiu inteira do outro lado. Só as pontas</p><p>das penas de sua cauda �caram presas entre os rochedos, quando eles</p><p>rolaram outra vez um para junto do outro, e foram arrancadas. Os heróis</p><p>seguiram a pomba o mais depressa que conseguiram. As rochas se abriram,</p><p>os remadores usaram toda a sua força e também conseguiram passar. Mas</p><p>foi por um triz, pois, quando as rochas tornaram a se unir, a pontinha da</p><p>�gura de popa foi arrancada. Por pouco eles escaparam da destruição. Mas,</p><p>desde que por lá passaram, as rochas se agarraram com força uma à outra e</p><p>nunca mais causaram nenhuma tragédia a navegantes.</p><p>Não muito longe de lá �cava o país das mulheres guerreiras, as</p><p>amazonas, estranhamente �lhas da ninfa mais pací�ca que podia existir, a</p><p>doce Harmonia. Mas seu pai era Ares, o terrível deus da guerra, e as</p><p>amazonas tinham puxado a ele, e não à mãe. Os heróis teriam �cado felizes</p><p>em parar ali e travar batalha com elas, e não teria sido uma batalha sem</p><p>derramamento de sangue, pois as amazonas não eram adversárias gentis.</p><p>Mas o vento estava favorável e os argonautas seguiram em frente. Viram de</p><p>relance o Cáucaso, ao passarem depressa, e Prometeu no alto de seu</p><p>rochedo, e ouviram o bater das imensas asas da águia que descia zunindo</p><p>rumo ao seu banquete de sangue. Não pararam para nada e, nesse mesmo</p><p>dia, ao pôr do sol, chegaram à Cólquida, país do velocino de ouro.</p><p>Passaram a noite sem saber o que tinham pela frente e sentindo que não</p><p>havia outra esperança que não seu valor. Lá em cima, no Olimpo, porém,</p><p>uma reunião a respeito deles estava em curso. Hera, preocupada com o</p><p>perigo que corriam, foi pedir ajuda a Afrodite. A deusa do amor se espantou</p><p>com a visita, pois Hera não era sua amiga. Mesmo assim, quando a grande</p><p>rainha do Olimpo implorou seu auxílio, ela �cou assombrada e prometeu</p><p>fazer tudo que pudesse. Juntas, as duas planejaram que Cupido, �lho de</p><p>Afrodite, faria a �lha do rei da Cólquida se apaixonar por Jasão. A donzela,</p><p>que se chamava Medeia, sabia como operar uma magia muito poderosa e</p><p>poderia sem dúvida salvar os argonautas caso aceitasse usar seus</p><p>conhecimentos obscuros a favor deles. Afrodite então foi procurar Cupido e</p><p>disse que lhe daria um lindo brinquedo, uma bola de ouro reluzente e</p><p>esmalte azul-escuro, se �zesse o que ela queria. Cupido adorou a ideia,</p><p>empunhou seu arco e sua aljava e desceu do Olimpo voando depressa pelos</p><p>ares em direção à Cólquida.</p><p>Enquanto isso, os heróis tinham partido em direção à cidade para pedir</p><p>ao rei o velocino de ouro. Foram protegidos de qualquer perigo no caminho,</p><p>pois Hera os envolveu com uma densa névoa de modo a fazê-los chegar ao</p><p>palácio sem serem vistos. A névoa se dissipou quando se aproximaram da</p><p>entrada e os guardas, que não demoraram a notar o grupo de jovens e</p><p>esplêndidos forasteiros, os conduziram para dentro com toda a cortesia e</p><p>mandaram avisar o rei de sua chegada.</p><p>O rei logo veio lhes dar as boas-vindas. Seus criados se apressaram para</p><p>arrumar tudo, acender fogos, aquecer água para os banhos e preparar</p><p>comida. Em meio a essa agitação, a princesa Medeia apareceu de �ninho,</p><p>curiosa para ver os visitantes. Quando ela pousou os olhos em Jasão, Cupido</p><p>rapidamente retesou seu arco e disparou uma �echa bem fundo no coração</p><p>da donzela. A �echa se cravou ali feito uma chama, a alma de Medeia se</p><p>derreteu com uma dor deliciosa e seu rosto empalideceu, depois �cou todo</p><p>vermelho. Assombrada e cheia de vergonha, ela se esgueirou de volta para o</p><p>seu quarto.</p><p>Só depois de os heróis terem se banhado e recuperado as forças com</p><p>carne e bebidas foi que o rei Eetes pôde lhes perguntar quem eram e o que</p><p>tinham ido fazer ali. Era considerada uma grande falta de cortesia fazer</p><p>qualquer pergunta a um convidado antes de suas necessidades terem sido</p><p>atendidas. Jasão respondeu</p><p>que eles eram todos homens da origem mais</p><p>nobre possível, �lhos ou netos de deuses, e que tinham zarpado da Grécia na</p><p>esperança de que o rei lhes desse o velocino de ouro em troca de qualquer</p><p>favor que quisesse lhes pedir. Eles derrotariam para ele seus inimigos ou</p><p>fariam qualquer coisa que ele quisesse.</p><p>Ao escutar isso, uma grande raiva tomou conta do coração do rei Eetes.</p><p>Assim como os gregos, ele não gostava de forasteiros, queria que �cassem</p><p>longe do seu reino, e pensou: Se esses desconhecidos não tivessem comido à</p><p>minha mesa eu os mataria. Ficou cogitando no que deveria fazer e idealizou</p><p>um plano.</p><p>O rei disse a Jasão não ter nada contra homens corajosos e que, se eles</p><p>provassem seu valor, lhes daria o velocino.</p><p>– E a prova da sua coragem – falou – será apenas o que eu próprio já �z.</p><p>A prova seria atrelar dois touros que ele tinha, animais de cascos de</p><p>bronze e hálito de fogo �amejante, e com eles arar um campo. Depois os</p><p>dentes de um dragão deveriam ser lançados nos sulcos, qual sementes de</p><p>trigo, e deles no mesmo instante brotaria uma safra de homens armados.</p><p>Estes deveriam ser abatidos conforme avançassem para o ataque, como</p><p>numa terrível colheita.</p><p>– Eu mesmo já �z isso – disse Eetes – e não darei o velocino a nenhum</p><p>homem menos valente do que eu.</p><p>Jasão passou um tempo sentado sem dizer nada. O desa�o parecia</p><p>impossível, além das forças de qualquer um. Por �m respondeu:</p><p>– Eu aceito a prova, por mais monstruosa que seja, mesmo que meu</p><p>destino seja a morte.</p><p>Dizendo isso, levantou-se e conduziu seus camaradas de volta ao navio</p><p>para pernoitar, mas os pensamentos de Medeia o seguiram. Durante toda a</p><p>longa noite em que �cou ausente do palácio, foi como se ela o estivesse</p><p>vendo, sua beleza e sua graça, e escutando as palavras que ele dizia. O medo</p><p>que sentia por ele lhe atormentava o coração. Ela adivinhou o que o pai</p><p>estava tramando.</p><p>A bordo do navio, os heróis se reuniram e, um de cada vez, pediram a</p><p>Jasão que os deixasse assumir o desa�o, mas em vão: Jasão não cedeu a</p><p>nenhum deles. Enquanto os homens conversavam, um dos netos do rei cuja</p><p>vida Jasão um dia tinha salvado veio ter com eles e lhes contou sobre os</p><p>poderes mágicos de Medeia. Não havia nada que a moça não fosse capaz de</p><p>fazer, disse o rapaz, inclusive deter as estrelas e a Lua. Se ela fosse</p><p>convencida a ajudar, poderia tornar Jasão capaz de vencer os touros e os</p><p>homens dos dentes de dragão. Aquele parecia ser o único plano a oferecer</p><p>alguma esperança e os heróis instaram o príncipe a voltar ao palácio e tentar</p><p>conquistar Medeia, sem saber que o deus do amor já tinha feito isso.</p><p>Sentada sozinha em seu quarto, a jovem chorava e dizia a si mesma que</p><p>eterna era sua vergonha por gostar tanto de um desconhecido a ponto de</p><p>querer ceder a uma louca paixão e contrariar o próprio pai. “Muito melhor</p><p>morrer”, falou. Ela pegou uma caixa contendo ervas mortais, mas, enquanto</p><p>estava ali sentada com a caixa na mão, pensou na vida e nas coisas deliciosas</p><p>que existem no mundo, e o sol lhe pareceu mais doce do que nunca. Medeia</p><p>guardou a caixa e, sem mais hesitar, decidiu usar seu poder em prol do</p><p>homem que amava. Tinha um unguento mágico capaz de garantir, por um</p><p>dia, a segurança de quem o passasse no corpo; nada poderia lhe fazer mal. A</p><p>planta da qual o unguento era feito tinha brotado pela primeira vez quando</p><p>o sangue de Prometeu pingou sobre a terra. Ela o guardou junto ao seio e</p><p>saiu à procura do sobrinho, o príncipe que Jasão tinha ajudado. Encontrou-o</p><p>enquanto ele a procurava para lhe implorar que �zesse exatamente aquilo</p><p>que ela já tinha decidido fazer. Medeia concordou na hora com tudo que ele</p><p>falou e o despachou até o navio para dizer a Jasão que fosse encontrá-la sem</p><p>demora num determinado lugar. Assim que ouviu o recado, Jasão partiu ao</p><p>seu encontro e no caminho Hera o cobriu com uma graça radiante, fazendo</p><p>todos que o vissem se maravilharem com ele. Quando ele encontrou</p><p>Medeia, ela teve a impressão de sentir o coração sair do peito e ir até ele;</p><p>uma bruma escura lhe encobriu os olhos e ela não teve forças para se mover.</p><p>Os dois �caram parados um na frente do outro sem dizer nada, como dois</p><p>altos pinheiros quando o vento não sopra, e então, quando o vento se ergue,</p><p>eles murmuram. Assim também aqueles dois, movidos pela brisa do amor,</p><p>estavam fadados a contar um ao outro toda a sua história.</p><p>Jasão foi o primeiro a falar e implorou a Medeia que ela o tratasse bem.</p><p>Não podia evitar ter esperanças, falou, pois sua beleza certamente devia</p><p>signi�car que ela se destacava em bondade e cortesia. Medeia não soube</p><p>como falar com ele; seu desejo era despejar de uma vez só tudo que sentia.</p><p>Em silêncio, ela tirou de junto ao peito a caixinha de unguento e lhe</p><p>entregou. Teria lhe dado sua alma se ele tivesse pedido. E agora ambos</p><p>estavam com os olhos pregados no chão, envergonhados, e mais uma vez</p><p>lançando olhares um para o outro e sorrindo com desejo amoroso.</p><p>Por �m, Medeia falou e lhe disse como usar o unguento mágico, e que,</p><p>quando este fosse passado nas armas, elas se tornariam, assim como ele</p><p>próprio, invencíveis por um dia. Se um número excessivo de homens</p><p>nascidos dos dentes de dragão corresse para atacá-lo, ele deveria jogar uma</p><p>pedra no meio deles e isso os faria se virar uns contra os outros e lutar até</p><p>todos morrerem. “Preciso voltar para o palácio agora”, disse Medeia. “Mas</p><p>quando estiver em casa, novamente em segurança, lembre-se de Medeia,</p><p>como eu me lembrarei para sempre de você.” Jasão respondeu em tom</p><p>arrebatado: “Jamais a esquecerei, nem à noite nem de dia. Se você for à</p><p>Grécia, será venerada pelo que fez por nós e nada senão a morte irá nos</p><p>separar.”</p><p>Os dois se despediram; ela foi para o palácio chorar por ter traído o pai,</p><p>e ele ao navio, para mandar dois de seus companheiros buscarem os dentes</p><p>de dragão. Enquanto isso, testou o unguento e, ao tocá-lo, foi tomado por</p><p>um poder terrível, irresistível, e todos os heróis exultaram. Mesmo assim,</p><p>quando chegaram ao campo em que o rei e os cidadãos da Cólquida estavam</p><p>esperando, e os touros saíram correndo de sua toca cuspindo pela boca</p><p>labaredas de fogo, eles foram tomados de terror. Jasão, porém, resistiu às</p><p>temíveis criaturas como um rochedo no mar resiste às ondas. Forçou</p><p>primeiro um, depois outro a se ajoelharem e neles pôs a cangalha enquanto</p><p>todos se assombravam com aquela enorme proeza. Ele guiou os touros pelo</p><p>campo, pressionando o arado com �rmeza e lançando nos sulcos os dentes</p><p>de dragão. Quando acabou de semear, a plantação já estava brotando e</p><p>homens fortemente armados correram para atacá-lo. Jasão recordou as</p><p>palavras de Medeia e atirou uma grande pedra no meio deles. Diante disso,</p><p>os guerreiros se voltaram uns contra os outros e caíram abatidos pelas</p><p>próprias lanças, e os sulcos se encheram de sangue. E assim o desa�o de</p><p>Jasão terminou em vitória, uma vitória amarga para o rei Eetes.</p><p>O rei voltou para o palácio planejando trair os heróis e jurando que eles</p><p>jamais levariam o velocino de ouro. Mas Hera estava trabalhando a favor</p><p>dos argonautas. Ela fez Medeia, atarantada de amor e de tristeza, decidir ir</p><p>embora com Jasão. Naquela noite, a jovem fugiu de casa e saiu correndo</p><p>pelo caminho escuro até o navio, onde os marinheiros comemoravam sua</p><p>sorte sem pensar em mal algum. Diante deles ela se ajoelhou e implorou que</p><p>a levassem consigo. Eles precisavam pegar o velocino sem demora, falou, e</p><p>em seguida partir o mais depressa possível, do contrário seriam mortos.</p><p>Uma terrível serpente protegia o velocino, mas ela a faria dormir para que</p><p>não lhes �zesse mal algum. Disse isso angustiada, mas Jasão se alegrou, a fez</p><p>se levantar com toda a delicadeza, abraçou-a e lhe prometeu que ela seria</p><p>sua legítima esposa quando voltassem para a Grécia. Então, fazendo-a subir</p><p>a bordo, eles seguiram as orientações de Medeia e chegaram ao bosque</p><p>sagrado em que estava pendurado o velocino. A serpente guardiã era muito</p><p>assustadora, mas Medeia se aproximou dela sem medo e, cantando uma</p><p>suave canção mágica, a fez adormecer. Jasão rapidamente pegou a maravilha</p><p>dourada da árvore da qual ela pendia, voltaram depressa e chegaram ao</p><p>navio ao raiar do dia. Os mais fortes foram postos nos remos e remaram</p><p>com toda sua força pelo rio até o mar.</p><p>Já ciente do acontecido, o rei mandou atrás deles o �lho Apsirto, irmão</p><p>de Medeia. Ele vinha à frente de um exército tão grande que parecia</p><p>impossível para o pequeno grupo de heróis vencê-lo ou escapar, mas Medeia</p><p>os salvou de novo, dessa vez cometendo um ato horrível. Ela matou o</p><p>próprio irmão. Alguns dizem que mandou avisá-lo de que desejava voltar</p><p>para casa e que lhe entregaria o velocino se ele a encontrasse naquela noite</p><p>num determinado lugar. Sem descon�ar de nada, Apsirto foi e Jasão o</p><p>abateu, e seu sangue escuro manchou a roupa prateada da irmã enquanto ela</p><p>se encolhia. Com seu líder morto, o exército debandou em desordem e o</p><p>caminho até o mar �cou livre para os heróis.</p><p>Outros dizem que Apsirto zarpou a bordo do Argo com Medeia, embora</p><p>não �que explicado por que motivo o fez, e que foi o rei quem os perseguiu.</p><p>Quando o navio do rei os estava alcançando, a própria Medeia abateu o</p><p>irmão, esquartejou-o e lançou seus pedaços ao mar. O rei parou para</p><p>recolhê-los e o Argo se salvou.</p><p>As aventuras dos argonautas estavam agora quase no �m. Eles tiveram</p><p>uma provação terrível ao passarem entre o perigoso rochedo de Cila e o</p><p>redemoinho de Caríbdis, onde o mar nunca cessava de jorrar e de rugir, e as</p><p>ondas furiosas, ao subirem, alcançavam o próprio céu. Mas Hera</p><p>providenciara para que as ninfas do mar estivessem por perto para guiá-los</p><p>e conduzir o navio até um lugar seguro.</p><p>Eles então chegaram a Creta, onde teriam atracado não fosse por</p><p>Medeia. Ela lhes disse que ali vivia Talos, o último remanescente da antiga</p><p>raça de bronze, criatura feita inteiramente desse material exceto num dos</p><p>tornozelos, único ponto em que era vulnerável. Bem na hora em que disse</p><p>isso, o gigante apareceu, uma visão terrível, e ameaçou esmagar o navio com</p><p>pedras caso se aproximassem. Os marinheiros pararam de remar e Medeia,</p><p>de joelhos, rogou aos cães de Hades que viessem destruir Talos. Os temíveis</p><p>poderes do mal a escutaram. Quando o homem de bronze ergueu uma</p><p>rocha pontiaguda para atirá-la no Argo, a rocha atingiu de raspão seu</p><p>tornozelo e o sangue jorrou até ele cair morto. Os heróis então puderam</p><p>atracar e se revigorar para a viagem que ainda tinham pela frente.</p><p>Ao chegarem à Grécia, eles se separaram, cada herói indo para sua casa,</p><p>e Jasão levou com Medeia o velocino de ouro para Pélias. Mas eles</p><p>descobriram que atos terríveis tinham sido cometidos ali. Pélias havia</p><p>forçado o pai de Jasão a se matar e sua mãe morrera de desgosto. Decidido a</p><p>punir essa maldade, Jasão recorreu a Medeia para obter a ajuda que ela</p><p>nunca lhe tinha negado. Ela causou a morte de Pélias por meio de um</p><p>truque astuto. Disse às �lhas dele que conhecia um segredo: como tornar os</p><p>velhos novamente jovens; para provar o que dizia, esquartejou à sua frente</p><p>um carneiro muito velho e cansado e pôs os pedaços dentro de uma panela</p><p>de água fervente. Então recitou um encantamento e, num instante, da água</p><p>saltou um cordeiro que saiu em disparada. As jovens se convenceram.</p><p>Medeia fez Pélias beber uma potente poção sonífera e disse às �lhas dele</p><p>para o esquartejarem. Apesar de todo o desejo de fazer o pai �car jovem</p><p>outra vez, elas quase não conseguiram se forçar a cometer o ato, mas, por</p><p>�m, a tarefa horrorosa foi cumprida, os pedaços postos na panela, e elas</p><p>olharam para Medeia à espera das palavras mágicas que trariam o pai de</p><p>volta para elas e para a juventude. Mas Medeia tinha sumido, sumido do</p><p>palácio e da cidade, e com horror as �lhas perceberam que foram as</p><p>assassinas do pai. Jasão de fato conseguiu sua vingança.</p><p>Há também uma história segundo a qual Medeia fez o pai de Jasão voltar</p><p>à vida e o tornou jovem outra vez, e deu a Jasão o segredo da juventude</p><p>eterna. Tudo que ela fez de mau ou de bom foi somente por ele e, no �m, a</p><p>única recompensa que recebeu foi a sua traição.</p><p>Após a morte de Pélias, Jasão e Medeia foram para Corinto. Lá tiveram</p><p>dois �lhos e tudo parecia estar bem, mesmo com Medeia exilada, na solidão</p><p>que todo exílio deve ter. Mas seu grande amor por Jasão fazia a perda de sua</p><p>família e de seu país lhe parecer uma coisa pequena. E Jasão então revelou a</p><p>crueldade que havia nele, embora tivesse parecido ser um grande herói:</p><p>comprometeu-se a desposar a �lha do rei de Corinto. Foi um casamento</p><p>esplendoroso e seu único motivo foi a ambição, não amor nem gratidão. No</p><p>choque inicial causado por aquela traição e no arrebatamento da sua</p><p>angústia, Medeia deixou escapar palavras que levaram o rei de Corinto a</p><p>temer que ela fosse tentar fazer mal à sua �lha – ele devia ser um homem de</p><p>temperamento particularmente crédulo para não ter pensado nisso antes. O</p><p>rei mandou avisar que Medeia e os �lhos precisavam sair de Corinto sem</p><p>demora. Foi um destino quase tão ruim quanto a morte. Uma mulher</p><p>exilada, com �lhos pequenos e indefesos, não tinha proteção alguma nem</p><p>para si nem para as crianças.</p><p>Medeia tentava decidir o que fazer e pensava nos seus erros e na sua</p><p>maldade. Desejava que a morte viesse pôr �m a sua vida, pois ela não mais a</p><p>suportava; por vezes, recordava chorosa o pai e a terra natal; outras vezes,</p><p>estremecia com a mancha indelével do sangue do próprio irmão e também</p><p>de Pélias; e, acima de tudo, estava consciente da devoção arrebatada e sem</p><p>limites que a levara a causar todo aquele mal e toda aquela infelicidade.</p><p>Enquanto estava assim sentada, Jasão apareceu na sua frente. Medeia o</p><p>encarou sem dizer nada. Ele estava ali ao seu lado, mas ela estava muito</p><p>distante, sozinha com seu amor ultrajado e sua vida em ruínas. Jasão nada</p><p>sentia que o �zesse �car calado. Ele disse a Medeia com frieza que sempre</p><p>soubera que o espírito dela era descontrolado. Não fossem suas palavras</p><p>tolas e maldosas sobre sua noiva, ela poderia ter continuado em Corinto</p><p>com todo o conforto. Apesar disso, ele tinha feito o melhor que podia por</p><p>ela. Era inteiramente graças ao seu esforço que ela fora apenas exilada, e não</p><p>morta. Ele de fato tivera extrema di�culdade para convencer o rei, mas não</p><p>poupara esforços. Fora falar com ela naquele momento porque não era um</p><p>homem que deixava amigos na mão e iria se certi�car de que ela tivesse ouro</p><p>em abundância e todo o necessário para sua viagem.</p><p>Aquilo foi demais. A mágoa represada de Medeia estourou. “Você vem</p><p>até mim?”, indagou ela,</p><p>A mim, de toda a raça humana?</p><p>Mas foi bom ter vindo,</p><p>Pois irei aliviar o fardo do meu coração</p><p>Se conseguir deixar clara a sua vileza.</p><p>Fui eu quem o salvou. Todos os homens da Grécia sabem disso.</p><p>Os touros, os homens-dragão, a serpente guardiã do velocino,</p><p>Fui eu quem os derrotou. Eu o tornei vencedor.</p><p>Fui eu quem segurou a luz que o salvou.</p><p>Pai e casa – eu os deixei</p><p>Em troca de um país estrangeiro.</p><p>Derrubei seus inimigos,</p><p>Planejei para Pélias a pior das mortes.</p><p>E agora você me abandona.</p><p>Para onde irei? De volta para a casa de meu pai?</p><p>Para as �lhas de Pélias? Eu me tornei por você</p><p>Inimiga de todos eles.</p><p>Eu mesma não tinha nada contra eles.</p><p>Ah, eu tive em você</p><p>Um marido leal, a ser admirado pelos homens.</p><p>E agora sou uma exilada, ó Deus, ó Deus,</p><p>Sem ninguém para me ajudar. Estou sozinha.</p><p>A resposta de Jasão foi que ele tinha sido salvo não por ela, mas sim por</p><p>Afrodite, que a �zera se apaixonar por ele, e que ela muito lhe devia por tê-la</p><p>levado para a Grécia, um país civilizado. Disse também que a tratou muito</p><p>bem ao fazer saber como ela havia ajudado os argonautas, para que as</p><p>pessoas a elogiassem. Se ela houvesse tido um pouco de bom senso, teria</p><p>�cado contente com o seu casamento, já que esse vínculo teria sido</p><p>vantajoso para ela e para seus �lhos também. O exílio era culpa</p><p>exclusivamente sua.</p><p>Fossem quais fossem suas outras de�ciências, Medeia era muito</p><p>inteligente. Ela não disse mais nada a Jasão, a não ser que recusava</p><p>seu ouro.</p><p>Não iria aceitar nada, nenhuma ajuda sua. Jasão foi embora muito zangado.</p><p>“Seu orgulho e sua teimosia”, disse ele,</p><p>Afastam todos que poderiam ser gentis.</p><p>Mas você há de se lamentar mais ainda por isso.</p><p>Desse momento em diante, Medeia decidiu se vingar da melhor forma</p><p>que conseguisse.</p><p>Pela morte, oh, pela morte será decidido o con�ito da vida</p><p>E se encerrará seu pequeno dia.</p><p>Ela decidiu matar a noiva de Jasão e depois… depois o quê? Mas não</p><p>quis pensar no que mais tinha pela frente. “Primeiro a morte dela”, falou.</p><p>Pegou dentro de uma arca uma túnica belíssima. Besuntou-a com drogas</p><p>mortais, pôs a roupa dentro de uma caixa e mandou os �lhos irem entregá-</p><p>la à noiva de Jasão. Disse-lhes que pedissem a ela para mostrar que aceitava</p><p>o presente vestindo-o no ato. A princesa os recebeu graciosamente e aceitou.</p><p>Assim que vestiu a túnica, porém, foi devorada por um fogo abrasador. E</p><p>caiu morta, com a pele toda derretida.</p><p>Ao saber que estava feito, Medeia começou a pensar em algo ainda mais</p><p>terrível. Não havia proteção para seus �lhos, ninguém poderia ajudá-los.</p><p>Eles teriam uma vida de escravos, nada mais. Não vou deixar que vivam para</p><p>serem maltratados por desconhecidos, pensou ela,</p><p>Ou morrer por outras mãos mais implacáveis do que as minhas.</p><p>Não: eu que lhes dei a vida lhes darei também a morte.</p><p>Oh, sem covardia agora, sem lembrar de quão jovens são,</p><p>De quão amados são, de como eram ao nascer.</p><p>Isso não: esquecerei que são meus �lhos</p><p>Por um instante, um curto instante… então para sempre a tristeza.</p><p>Quando Jasão chegou, furioso por causa do que Medeia tinha feito com</p><p>sua noiva e decidido a matá-la, os dois meninos estavam mortos e Medeia,</p><p>no telhado da casa, subia numa carruagem puxada por dragões. Eles a</p><p>levaram pelos ares para longe de Jasão enquanto ele a amaldiçoava, mas</p><p>nunca a si mesmo, pelo que tinha acontecido.</p><p>CAPÍTULO IV</p><p>Quatro grandes aventuras</p><p>FAETONTE</p><p>Esta é uma das melhores histórias de Ovídio, vividamente contada, com</p><p>detalhes adicionados não como simples decoração, mas para intensi�car o</p><p>efeito.</p><p>O palácio do Sol era um lugar radioso. Repleto de ouro, mar�m e pedras</p><p>preciosas, cintilava e resplandecia. Tudo dentro e fora dele brilhava com</p><p>fulgor. Lá era sempre meio-dia. As sombras do crepúsculo nunca diminuíam</p><p>a claridade. A escuridão e a noite eram desconhecidas. Poucos mortais</p><p>poderiam ter suportado essa intensidade constante de luz, mas poucos</p><p>jamais tinham encontrado o caminho até lá.</p><p>Certo dia, entretanto, um jovem �lho de uma mortal atreveu-se a chegar</p><p>perto do palácio. Muitas vezes precisou parar para recobrar a visão, que</p><p>estava ofuscada, mas a tarefa que o tinha levado até ali era tão urgente que</p><p>seu propósito não fraquejou e ele seguiu em frente, em direção ao palácio,</p><p>através das portas rutilantes até a sala do trono, onde o deus-sol estava</p><p>sentado, cercado por um esplendor cuja claridade chegava a cegar. Ali o</p><p>jovem foi obrigado a parar. Não pôde mais suportar.</p><p>Nada escapa aos olhos do Sol. Ele viu o rapaz na hora e o encarou com</p><p>um ar muito bondoso.</p><p>– O que o trouxe até aqui? – perguntou.</p><p>– Vim descobrir se você é meu pai ou não – respondeu o jovem</p><p>corajosamente. – Minha mãe disse que era, mas os meninos da escola riem</p><p>quando digo que sou seu �lho. Eles não acreditam em mim. Eu disse isso à</p><p>minha mãe e ela falou que era melhor eu vir lhe perguntar.</p><p>Sorrindo, o Sol tirou sua coroa de luz de modo que o rapaz pudesse �tá-</p><p>lo sem incômodo.</p><p>– Venha cá, Faetonte – disse ele. – Você é meu �lho. Clímene lhe disse a</p><p>verdade. Imagino que não vá duvidar também da minha palavra. Mas eu</p><p>vou lhe dar uma prova. Peça-me o que quiser e terá. Vou chamar o Estige, o</p><p>rio do juramento dos deuses, para ser testemunha da minha promessa.</p><p>Faetonte sem dúvida tinha visto muitas vezes o Sol subir pelo céu, e dizia</p><p>a si mesmo com uma sensação que era metade assombro, metade animação:</p><p>“Aquele lá em cima é meu pai.” Ele então se perguntou como seria estar</p><p>naquela carruagem, guiando os corcéis naquele trajeto estonteante,</p><p>iluminando o mundo inteiro. Com as palavras que seu pai lhe dissera, esse</p><p>sonho impossível agora podia se realizar. Na mesma hora ele exclamou:</p><p>– Eu quero assumir seu lugar, pai! É a única coisa que quero. Só por um</p><p>dia, um único dia, deixe-me conduzir sua carruagem.</p><p>O Sol se deu conta da loucura que cometera. Por que tinha feito aquele</p><p>juramento fatal e se comprometido a ceder diante de qualquer desejo que</p><p>por acaso surgisse na cabeça impetuosa de um menino?</p><p>– Caro rapaz – falou –, essa é a única coisa que eu lhe teria recusado. Sei</p><p>que não posso fazer isso. Eu jurei pelo Estige. Devo ceder se você insistir.</p><p>Mas não acho que você vá fazer isso. Escute enquanto lhe digo o que é isso</p><p>que você quer. Você é �lho de Clímene além de meu. É mortal, e mortal</p><p>algum poderia conduzir minha carruagem. Na verdade, nenhum deus</p><p>exceto eu pode fazê-lo. Nem mesmo o líder dos deuses. Veja a estrada. Ela</p><p>sobe do mar num aclive tão acentuado que os cavalos mal conseguem subir,</p><p>mesmo estando descansados de manhã cedinho. O meio do céu é tão alto</p><p>que nem mesmo eu gosto de olhar para baixo. O pior de tudo é a descida,</p><p>tão íngreme que os deuses do mar, à espera para me receber, se perguntam</p><p>como consigo não mergulhar de cabeça. Guiar os cavalos também é uma</p><p>luta eterna. Seu temperamento indócil vai �cando mais impetuoso à medida</p><p>que sobem e mal aceitam meus comandos. O que fariam com você?</p><p>“Por acaso você imagina que exista lá em cima todo tipo de maravilha,</p><p>cidades divinas cheias de coisas belas? Nada disso. Terá que passar por</p><p>animais, caçadores ferozes, e eles são tudo que irá ver. O Touro, o Leão, o</p><p>Escorpião, o grande Caranguejo, todos eles tentarão lhe fazer mal.</p><p>Convença-se. Olhe em volta. Veja todos as coisas boas que o rico mundo</p><p>contém. Escolha entre elas aquela que seu coração deseja e sua ela será. Se o</p><p>que você quiser é a prova de que é meu �lho, meus temores por você são</p><p>prova su�ciente de que sou seu pai.”</p><p>Mas nada nesse discurso sensato signi�cou qualquer coisa para o rapaz.</p><p>Uma perspectiva gloriosa se descortinava à sua frente. Ele se viu</p><p>orgulhosamente em pé naquele carro esplêndido, com as mãos a guiar em</p><p>triunfo os corcéis que nem o próprio Júpiter era capaz de domar. Não</p><p>pensou sequer por um instante nos perigos descritos por seu pai. Não sentiu</p><p>um único arrepio de medo nem qualquer dúvida em relação aos próprios</p><p>poderes. Por �m, o Sol desistiu de tentar dissuadi-lo. Viu que era inútil.</p><p>Além do mais, não havia tempo. A hora de partir estava chegando. Os</p><p>portões do leste já reluziam arroxeados e a Aurora tinha aberto seus salões</p><p>repletos de luz rosada. As estrelas iam abandonando o céu; até mesmo a</p><p>resistente estrela matutina estava fraca.</p><p>Era preciso se apressar, mas tudo estava ponto. As Estações, guardiãs dos</p><p>portões do Olimpo, mantinham-se a postos para escancarar as portas. Os</p><p>cavalos tinham sido arreados e atrelados à carruagem. Orgulhoso e feliz,</p><p>Faetonte subiu a bordo e eles partiram. O rapaz tinha feito a sua escolha.</p><p>Acontecesse o que fosse, não poderia mudar de ideia agora. Não que</p><p>quisesse fazer isso naquele primeiro ímpeto emocionante em que cruzou os</p><p>ares tão depressa que o Vento Leste foi ultrapassado e deixado bem para</p><p>trás. Os velozes cascos dos cavalos atravessaram as nuvens baixas junto ao</p><p>oceano como se estivessem varando uma �na névoa marinha e então</p><p>começaram a subir pelo ar limpo, escalando a altura do céu. Durante alguns</p><p>instantes de êxtase, Faetonte se sentiu o próprio senhor do céu. Mas, de</p><p>repente, algo mudou. A carruagem começou a balançar descontrolada de</p><p>um lado para outro; o ritmo se acelerou; ele havia perdido o controle. Não</p><p>era ele quem estava guiando, mas sim os cavalos. Aquele peso leve a bordo</p><p>do carro, aquelas mãos fracas segurando as rédeas os tinham feito saber que</p><p>seu condutor não estava presente. Nesse caso, os mestres eram eles.</p><p>Ninguém mais os podia comandar. Eles saíram da estrada e seguiram</p><p>correndo para</p><p>onde quiseram, para cima, para baixo, para a direita e para a</p><p>esquerda. Quase destruíram a carruagem numa batida com o Escorpião;</p><p>pararam bem na hora e quase atropelaram o Caranguejo. A essa altura, o</p><p>pobre condutor estava quase desmaiando de pavor e largou as rédeas.</p><p>Foi o sinal para uma correria ainda mais enlouquecida e temerária. Os</p><p>cavalos subiram até o ponto mais alto do céu e então, mergulhando de</p><p>cabeça, incendiaram o mundo inteiro. As montanhas mais altas foram as</p><p>primeiras a queimar: os montes Ida e Hélicon, onde viviam as Musas, o</p><p>Parnaso e o elevado Olimpo. De suas encostas as chamas desceram para os</p><p>vales mais abaixo e para as terras escuras das �orestas, até tudo estar em</p><p>chamas. As nascentes se transformaram em vapor; os rios encolheram.</p><p>Dizem que foi nessa hora que o Nilo fugiu e escondeu a cabeça, que até hoje</p><p>continua escondida.</p><p>No carro, Faetonte, que mal conseguia se segurar no lugar, estava envolto</p><p>numa grossa fumaça e num calor semelhante ao de uma abrasadora</p><p>fornalha. Ele só queria uma coisa: que aquele tormento e aquele terror</p><p>cessassem. Teria �cado feliz em morrer. A Mãe Terra também não conseguia</p><p>mais suportar. Ela deu um enorme grito que chegou até os deuses. Ao</p><p>olharem do Olimpo para baixo, eles viram que precisavam agir depressa se</p><p>quisessem salvar o mundo. Júpiter empunhou seu raio e o disparou na</p><p>direção do condutor estouvado e arrependido. O raio matou Faetonte,</p><p>despedaçou a carruagem e fez os cavalos enlouquecidos descerem correndo</p><p>e entrarem no mar.</p><p>Faetonte, em chamas, caiu do carro e despencou pelos ares até a Terra. O</p><p>misterioso Erídano, rio que nenhum olho mortal jamais vira, recebeu-o,</p><p>apagou as chamas e esfriou seu corpo. As náiades, com pena do rapaz tão</p><p>atrevido e tão jovem para morrer, enterraram-no e gravaram no túmulo:</p><p>Aqui jaz Faetonte, que conduziu o carro do deus-sol.</p><p>Seu fracasso foi grande, mas sua ousadia também.</p><p>Suas irmãs, as helíades, �lhas de Hélios, o Sol, foram prantear sua morte</p><p>junto ao túmulo. Lá foram transformadas em choupos, às margens do rio</p><p>Erídano,</p><p>Onde por tristeza choram eternamente dentro da correnteza</p><p>E cada lágrima, ao cair, brilha na água</p><p>Uma gota de âmbar cintilante.</p><p>PÉGASO E BELEROFONTE</p><p>Dois episódios desta história vêm dos poetas mais antigos. Hesíodo, no</p><p>século VIII ou IX a.C., conta sobre a Quimera; e o amor de Anteia e o triste</p><p>�m de Belerofonte estão na Ilíada. O restante da história é contado pela</p><p>primeira vez e de maneira melhor por Píndaro na primeira metade do</p><p>século V a.C.</p><p>Em É�ro, que posteriormente seria chamada Corinto, reinava Glauco. Ele</p><p>era �lho de Sísifo, que, no Hades, deve eternamente tentar rolar uma pedra</p><p>montanha acima por ter um dia traído um segredo de Zeus. Glauco também</p><p>acabou provocando o desagrado do céu. Excelente cavaleiro, ele alimentava</p><p>seus cavalos com carne humana de modo a torná-los mais ferozes em</p><p>combate. Esses atos monstruosos sempre enfureciam os deuses e eles agiram</p><p>com ele como ele agira com os outros. Glauco foi derrubado de sua</p><p>carruagem e seus cavalos o estraçalharam e o devoraram.</p><p>Na cidade, um corajoso e belo rapaz chamado Belerofonte era</p><p>considerado por todos �lho do rei. Segundo os boatos, porém, Belerofonte</p><p>tinha um pai mais poderoso, o próprio Poseidon, senhor dos mares, e os</p><p>dons excepcionais do jovem, tanto espirituais como físicos, faziam parecer</p><p>provável essa conjectura sobre sua origem. Além disso, sua mãe, Eurínome,</p><p>embora mortal, fora ensinada por Palas Atena até se equiparar aos deuses</p><p>em matéria de espirituosidade e bom senso. Sob todos os aspectos, era de</p><p>esperar que Belerofonte parecesse menos mortal do que divino. Grandes</p><p>aventuras estariam reservadas para alguém assim e perigo nenhum jamais o</p><p>poderia conter. Mesmo assim, o feito pelo qual ele é mais famoso não</p><p>necessitou coragem alguma nem sequer qualquer tipo de esforço. Na</p><p>verdade, ele provou que</p><p>Aquilo que o homem jura não poder ser feito –</p><p>Não deve ser esperado –, o grande Poder superior</p><p>Pode lhe entregar, em fácil sujeição.</p><p>Mais do que tudo no mundo, Belerofonte queria Pégaso, um cavalo</p><p>maravilhoso nascido do sangue da górgona Medusa quando Perseu a matou.</p><p>[2] Ele era</p><p>Um corcel alado, de voo incansável,</p><p>Que varava os ares com a rapidez de uma ventania.</p><p>Coisas assombrosas aconteciam por onde Pégaso passava. A fonte</p><p>Hipocrene, amada pelos poetas e situada no monte Hélicon, a montanha das</p><p>Musas, tinha surgido no ponto em que seu casco havia batido na terra.</p><p>Quem poderia capturar e domar tal criatura? Belerofonte acalentava um</p><p>anseio impossível.</p><p>O sábio vidente de É�ro (Corinto), Pólido, a quem ele contou esse</p><p>desesperado desejo, aconselhou-o a ir ao templo de Palas Atena e lá</p><p>pernoitar. Os deuses geralmente falavam com os homens enquanto estes</p><p>sonhavam. Assim, Belerofonte foi até o lugar sagrado e, quando estava</p><p>deitado e profundamente adormecido junto ao altar, teve a impressão de ver</p><p>a deusa na sua frente com algum objeto dourado na mão. Ela lhe disse: “Está</p><p>dormindo? Não, acorde. Eis aqui o que vai encantar o corcel que você</p><p>cobiça.” Belerofonte se levantou de um pulo. Não havia deusa alguma ali,</p><p>mas na sua frente repousava um objeto maravilhoso: um arreio feito</p><p>inteiramente de ouro como ele nunca tinha visto igual. En�m esperançoso,</p><p>com aquilo nas mãos, ele foi depressa até os campos encontrar Pégaso.</p><p>Avistou o corcel bebendo água na célebre fonte de Corinto chamada Pirene e</p><p>se aproximou devagar. O cavalo o �tou tranquilo, nem arisco nem com</p><p>medo, e se deixou arrear sem a menor di�culdade. O feitiço de Palas Atena</p><p>tinha dado certo. Belerofonte era agora o senhor daquela gloriosa criatura.</p><p>Inteiramente vestido com sua armadura de bronze, ele pulou no lombo</p><p>de Pégaso e começou a conduzi-lo, e o cavalo pareceu se agradar daquilo</p><p>tanto quanto seu cavaleiro. Belerofonte agora era o senhor dos ares, podia</p><p>voar para onde quisesse, era invejado por todos. Na verdade, Pégaso iria se</p><p>revelar não só uma alegria, mas também uma ajuda em momentos de</p><p>necessidade, pois Belerofonte tinha pela frente desa�os difíceis.</p><p>De alguma forma, não nos é dito como, exceto que foi por puro acidente,</p><p>Belerofonte matou o próprio irmão; então foi até Argos, onde o rei Proteu o</p><p>puri�cou. Lá começaram suas di�culdades, assim como seus grandes feitos.</p><p>A esposa de Proteu, Anteia, apaixonou-se por ele e, quando ele lhe deu as</p><p>costas e não quis nada com ela, sua raiva foi tão grande que ela disse ao</p><p>marido que seu hóspede a ofendera e precisava morrer. Por mais irado que</p><p>estivesse, Proteu não quis matar Belerofonte. Ele havia comido à sua mesa e</p><p>o rei não conseguia se forçar a usar violência contra um hóspede. No</p><p>entanto, bolou um plano que parecia garantir o mesmo resultado. Pediu ao</p><p>jovem que levasse uma carta para o rei da Lícia, na Ásia, e Belerofonte</p><p>concordou na mesma hora. Montado em Pégaso, longas viagens nada</p><p>signi�cavam para ele. O rei da Lícia o recebeu com uma hospitalidade à</p><p>moda antiga e o hospedou divinamente por nove dias antes de pedir para</p><p>ver a carta. Então leu que Proteu desejava que o rapaz fosse morto.</p><p>O rei da Lícia não quis fazê-lo pela mesma razão de Proteu: a hostilidade</p><p>conhecida de Zeus com aqueles que rompem o vínculo entre an�trião e</p><p>hóspede. No entanto, não podia haver objeção alguma contra despachar o</p><p>forasteiro e seu cavalo alado numa aventura. De modo que o rei lhe pediu</p><p>que fosse matar a Quimera e teve bastante certeza de que Belerofonte jamais</p><p>voltaria. A Quimera era tida como invencível. Era uma criatura muito</p><p>singular: de frente, um leão, por trás, uma serpente, e no meio, um bode –</p><p>Criatura temível, imensa, veloz e forte,</p><p>Cujo hálito era uma chama impossível de apagar.</p><p>Porém, como Belerofonte estava montado em Pégaso, não havia</p><p>necessidade alguma de chegar nem perto do monstro �amejante. Ele voou</p><p>acima da Quimera e a acertou com suas �echas, sem correr risco algum.</p><p>Quando voltou para junto de Proteu, este precisou pensar em outras</p><p>formas de se livrar dele. Convenceu-o a partir</p><p>numa expedição contra os</p><p>poderosos guerreiros chamados sólimos e, quando Belerofonte conseguiu</p><p>derrotá-los, convenceu-o a enfrentar as amazonas, confronto do qual o</p><p>rapaz saiu igualmente vitorioso. Por �m, Proteu foi vencido pela coragem de</p><p>Belerofonte e também por sua sorte; os dois se tornaram amigos e Proteu lhe</p><p>deu a mão de sua �lha em casamento.</p><p>Belerofonte viveu feliz por muito tempo, até provocar a ira dos deuses.</p><p>Sua grande ambição aliada a seu enorme sucesso �zeram-no pensar</p><p>“pensamentos grandiosos demais para um homem”, coisa que desagradava</p><p>aos deuses mais do que qualquer outra. Ele tentou ir até o Olimpo montado</p><p>em Pégaso. Achou que lá pudesse ocupar um lugar entre os imortais. O</p><p>cavalo foi mais sensato. Recusou-se a tentar ir até lá e derrubou seu cavaleiro</p><p>no chão. Daí em diante, Belerofonte, odiado pelos deuses, passou a vagar</p><p>sozinho, atormentado e evitando cruzar o caminho dos homens até morrer.</p><p>Belerofonte, montado em Pégaso, mata a Quimera.</p><p>Pégaso encontrou abrigo nas estrebarias celestes do Olimpo, onde</p><p>�cavam abrigados os cavalos de Zeus. De todos, ele era o principal,</p><p>conforme demonstrado pelo fato extraordinário, relatado pelos poetas, de</p><p>que, quando Zeus queria usar seu raio, era Pégaso que lhe trazia o</p><p>relâmpago e o trovão.</p><p>OTO E EFIALTES</p><p>Existem alusões a esta história na Odisseia e na Eneida, mas somente</p><p>Apolodoro a conta de forma completa. Ele provavelmente escreveu no século</p><p>I ou II d.C. Um escritor insípido, mas menos insípido do que de costume</p><p>neste relato.</p><p>Esses irmãos gêmeos eram gigantes, mas não se pareciam com os monstros</p><p>de antigamente. Tinham a forma ereta e o rosto nobre. Homero diz que</p><p>eram</p><p>Mais altos do que qualquer outro que a terra com seu pão já</p><p>houvesse alimentado,</p><p>Mais belos também, perdendo apenas para o incomparável Órion.</p><p>Virgílio fala principalmente sobre a sua louca ambição. Diz que eram</p><p>Gêmeos, de corpo imenso, que lutaram com as mãos para destruir os</p><p>altos céus</p><p>E destronar Júpiter de seu reino celestial.</p><p>Alguns dizem que eram �lhos de I�média; outros, de Cânace. De</p><p>qualquer forma, fosse sua mãe quem fosse, seu pai certamente era Poseidon,</p><p>embora eles, em geral, fossem chamados de aloídas, �lhos de Aloeu, o</p><p>marido de sua mãe.</p><p>Os dois ainda eram muito jovens quando decidiram provar serem</p><p>superiores aos deuses. Capturaram Ares, prenderam-no com correntes de</p><p>bronze e o encarceraram. Os deuses do Olimpo relutaram em tentar libertá-</p><p>lo pela força. Despacharam o astuto Hermes para ajudá-lo e ele à noite</p><p>conseguiu, sem se fazer notar, tirar Ares da prisão. Então os dois jovens</p><p>arrogantes cometeram uma ousadia ainda maior. Ameaçaram empilhar o</p><p>monte Plion sobre o Ossa e escalar o céu, da mesma forma que os gigantes</p><p>de outrora tinham colocado o Ossa sobre o Pélion. Isso foi demais para os</p><p>imortais e Zeus preparou seu raio para fulminar os irmãos. Antes que o</p><p>disparasse, porém, Poseidon lhe implorou que os poupasse e prometeu</p><p>controlá-los. Zeus aceitou e Poseidon cumpriu sua palavra. Os gêmeos</p><p>pararam de atacar o céu e Poseidon �cou satisfeito consigo mesmo, mas o</p><p>fato era que os dois irmãos tinham desviado a atenção para outros planos</p><p>que lhes interessavam mais.</p><p>Oto pensou que seria uma excelente aventura raptar Hera e E�altes</p><p>estava, ou pensava estar, apaixonado por Ártemis. Na verdade, os dois</p><p>irmãos só se importavam um com o outro. Sua devoção mútua era imensa.</p><p>Eles tiraram na sorte para decidir quem iria agarrar primeiro sua dama e a</p><p>sorte favoreceu E�altes. Eles procuraram Ártemis por toda parte, nas colinas</p><p>e nas matas, mas, quando en�m a avistaram, ela estava à beira do mar,</p><p>andando para dentro das águas. Sabia que os irmãos estavam mal-</p><p>intencionados e sabia também como iria puni-los. Eles partiram no seu</p><p>encalço, mas ela continuou seguindo em frente por sobre o mar. Como</p><p>todos os �lhos de Poseidon tinham o mesmo poder e eram capazes de correr</p><p>sobre o mar como se estivessem em terra, os dois a seguiram sem qualquer</p><p>problema. Ela os levou até a ilha de Naxos, coberta de �orestas, e lá, quando</p><p>eles a tinham quase alcançado, desapareceu. Eles viram no seu lugar uma</p><p>linda corça, branca como leite, correndo para dentro da mata. Ao vê-la,</p><p>esqueceram a deusa e puseram-se a perseguir a linda criatura. Acabaram por</p><p>perdê-la dentro da mata densa e se separaram para dobrar as chances de</p><p>encontrá-la. De repente, no mesmo instante, os dois a viram com as orelhas</p><p>em pé numa clareira aberta, mas nenhum deles viu que, no meio das</p><p>árvores, logo atrás dela, estava o irmão. Ambos lançaram seus dardos e a</p><p>corça sumiu. As setas zuniram pela clareira vazia até a mata e acertaram seus</p><p>alvos. As formas altas dos jovens caçadores desabaram no chão, cada qual</p><p>ferido pela lança do outro, cada qual matando e sendo morto pela única</p><p>criatura que amava.</p><p>Foi essa a vingança de Ártemis.</p><p>DÉDALO</p><p>Tanto Ovídio quanto Apolodoro contam esta história. Apolodoro</p><p>provavelmente viveu mais de cem anos depois de Ovídio. Ele é um escritor</p><p>muito rasteiro e Ovídio está longe de sê-lo. Mas, neste caso, decidi seguir</p><p>Apolodoro. Os relatos de Ovídio mostram o autor na sua pior versão,</p><p>exagerando no sentimentalismo e nas exclamações.</p><p>Dédalo foi o arquiteto que projetou o labirinto para o Minotauro em Creta e</p><p>que mostrou a Ariadne como Teseu podia escapar dali.[3] Quando o rei</p><p>Minos soube que os atenienses tinham conseguido sair, �cou convencido de</p><p>que só teriam conseguido fazer isso se Dédalo os tivesse ajudado. Assim</p><p>sendo, prendeu Dédalo e seu �lho Ícaro no labirinto, certamente uma prova</p><p>de seu excelente projeto, uma vez que nem o próprio criador conseguiria</p><p>encontrar a saída sem uma pista. Mas o grande inventor não se deixou</p><p>abater. Ele disse ao �lho:</p><p>A fuga pode ser impossível por água e por terra, mas o ar e o céu</p><p>estão livres,</p><p>e fabricou um par de asas para cada um. Eles as puseram e, pouco antes</p><p>de levantarem voo, Dédalo alertou Ícaro para manter uma altura mediana</p><p>acima do mar. Se voasse alto demais, o sol poderia derreter a cera e as asas</p><p>se desfariam. No entanto, como demonstram com tanta frequência as</p><p>histórias, os jovens ignoram o que os mais velhos dizem. Enquanto os dois</p><p>se afastavam de Creta num voo leve e sem di�culdade, a animação com</p><p>aquele novo e maravilhoso poder subiu à cabeça do rapaz. Exultante, ele</p><p>começou a voar cada vez mais alto, sem dar ouvidos às ordens a�itas do pai.</p><p>Então caiu. As asas tinham se desfeito. Ícaro caiu no mar e as águas se</p><p>fecharam à sua volta. Dédalo, angustiado, voou com segurança até a Sicília,</p><p>onde foi bem recebido pelo rei.</p><p>Enfurecido com a fuga, Minos decidiu encontrar Dédalo. Bolou um</p><p>plano astuto. Mandou proclamar por toda parte que uma grande</p><p>recompensa seria dada a quem conseguisse passar um �o por dentro de uma</p><p>concha intricadamente espiralada. Dédalo disse ao rei da Sicília que</p><p>conseguiria. Fez um pequeno furo na extremidade fechada da concha,</p><p>prendeu o �o numa formiga, pôs a formiga dentro do buraco e o fechou.</p><p>Quando a formiga �nalmente saiu pelo outro lado, o �o, claro, havia</p><p>passado sem problemas por todas as espirais e curvas. “Só Dédalo</p><p>conseguiria pensar nisso”, disse Minos, e foi até a Sicília capturá-lo. Mas o rei</p><p>se recusou a entregá-lo e, na disputa, Minos acabou morto.</p><p>PARTE TRÊS</p><p>Os grandes heróis</p><p>anteriores à guerra</p><p>de Troia</p><p>O</p><p>CAPÍTULO I</p><p>Perseu</p><p>Esta é uma história que parece um conto de fadas. Hermes e Palas Atena</p><p>agem como a fada-madrinha em Cinderela. A bolsa e o capacete mágicos</p><p>têm as mesmas propriedades das quais os contos de fadas de todas as partes</p><p>estão repletos. É o único mito no qual a magia tem papel decisivo e parece</p><p>ter sido particularmente apreciado na Grécia. Muitos poetas aludem a ele.</p><p>A descrição de Dânae dentro da arca de madeira era o trecho mais famoso</p><p>de um famoso poema de Simônides de Ceos, um grande poeta lírico que</p><p>viveu no século VI a.C. A história inteira é contada tanto por Ovídio</p><p>quanto por Apolodoro. O segundo, que escreveu provavelmente cem anos</p><p>depois de Ovídio, é neste caso o melhor dos dois. Seu relato é simples e</p><p>direto; o de Ovídio é extremamente verborrágico: por exemplo, ele leva cem</p><p>linhas para matar a serpente marinha. Preferi seguir Apolodoro, mas</p><p>acrescentei o fragmento de Simônides e citações curtas de outros poetas, em</p><p>especial Hesíodo e Píndaro.</p><p>rei Acrísio, de Argos, tinha apenas uma �lha, Dânae. Ela era mais</p><p>linda do que todas as outras mulheres de lá, mas isso pouco servia de</p><p>consolo ao rei por não ter tido um �lho homem. Acrísio foi a Delfos</p><p>perguntar ao deus se havia alguma esperança de um dia gerar um menino. A</p><p>pitonisa lhe respondeu que não e ainda acrescentou algo bem pior: sua �lha</p><p>teria um �lho que viria a matá-lo.</p><p>A única forma segura de o rei escapar desse destino era matar Dânae</p><p>sem demora, para não correr nenhum risco, e fazer isso com as próprias</p><p>mãos. Mas isso Acrísio se recusou a fazer. Seu afeto paterno não era forte,</p><p>conforme os acontecimentos iriam provar, mas seu medo dos deuses sim.</p><p>Eles puniam de modo terrível quem derramasse o sangue de parentes.</p><p>Acrísio não se atreveu a matar a �lha. O que fez foi mandar construir uma</p><p>casa toda feita de bronze e enterrá-la no chão, mas com parte do telhado</p><p>aberta para o céu, de modo a deixar entrar luz e ar. Nessa casa trancou a</p><p>�lha e mandou que a vigiassem.</p><p>Dânae, a bela, foi então condenada</p><p>A trocar a luz radiante do dia por paredes fechadas de bronze,</p><p>E nessa câmara secreta como um túmulo</p><p>Viveu prisioneira. No entanto, Zeus</p><p>Foi visitá-la na chuva dourada.</p><p>Enquanto ela estava sentada lá dentro durante os longos dias e as longas</p><p>horas, sem nada para fazer, sem nada para ver exceto as nuvens se moverem</p><p>no alto, uma coisa misteriosa aconteceu: uma chuva de ouro caiu do céu e</p><p>preencheu sua câmara. Não nos é dito como lhe foi revelado que era Zeus</p><p>quem a visitava nessa forma, mas ela soube que o �lho que deu à luz era</p><p>�lho do deus.</p><p>Durante algum tempo Dânae guardou segredo sobre o nascimento e</p><p>nada disse ao pai, mas isso foi �cando cada vez mais difícil dentro dos</p><p>limites daquela casa de bronze e um dia, por �m, o menino – que se</p><p>chamava Perseu – foi descoberto pelo avô. “Seu �lho!”, exclamou Acrísio,</p><p>muito zangado. “Quem é o pai?” Quando Dânae respondeu, orgulhosa,</p><p>“Zeus”, Acrísio não acreditou. De uma coisa apenas teve certeza: que a vida</p><p>do menino representava um perigo terrível para a dele. Teve medo de matá-</p><p>lo pelo mesmo motivo que o impedira de matar a �lha: o temor de que Zeus</p><p>e as Fúrias punissem esses assassinatos. Mas, se não podia matá-los</p><p>diretamente, podia encaminhá-los para uma morte razoavelmente certa.</p><p>Mandou fazer uma grande arca e pôs a �lha e o neto lá dentro. A arca então</p><p>foi levada para o mar e atirada na água.</p><p>Nessa estranha embarcação, Dânae �cou sentada junto com o �lho</p><p>pequeno. A luz do dia foi caindo e ela se viu sozinha no mar.</p><p>Quando dentro da arca entalhada os ventos e ondas</p><p>Lhe encheram de medo o coração, ela,</p><p>Não sem lágrimas, enlaçou Perseu com ternura</p><p>E disse: “Ah, �lho, que tristeza a minha.</p><p>Mas durma bem você, pequenino,</p><p>Um descanso profundo neste lar sem alegria,</p><p>Apenas uma caixa cingida de bronze. A noite, esta escuridão visível,</p><p>As ondas a bater tão perto dos seus cachos macios,</p><p>A voz estridente do vento, não lhes dê atenção,</p><p>Aninhado em sua capa vermelha, pequeno e belo rosto.”</p><p>Durante toda a noite, na arca sacudida pelas ondas, Dânae �cou</p><p>escutando as águas que sempre pareciam a ponto de submergi-los. O dia</p><p>raiou, mas sem lhe trazer reconforto algum, uma vez que ela não podia vê-</p><p>lo. Tampouco pôde ver que à sua volta numerosas ilhas se erguiam bem alto</p><p>acima do mar. Tudo que soube foi que, naquele momento, uma onda parecia</p><p>erguê-los e carregá-los depressa, e então, ao recuar, deixou-os sobre algo</p><p>sólido e imóvel. Eles estavam em terra �rme; estavam ao abrigo do mar, mas</p><p>continuavam dentro da arca, sem ter como sair.</p><p>Quis o destino – ou talvez Zeus, que até agora pouco tinha feito para</p><p>ajudar sua amada e seu �lho – que os dois fossem descobertos por um</p><p>homem bondoso, um pescador chamado Díctis. Ele encontrou a grande</p><p>arca, quebrou-a e levou os desafortunados tripulantes para sua casa, até sua</p><p>esposa, que era tão bondosa quanto ele. O casal não tinha �lhos e cuidou de</p><p>Dânae e Perseu como se os dois fossem sua família. Mãe e �lho lá viveram</p><p>por muitos anos, Dânae feliz em deixar o �lho seguir o humilde ofício do</p><p>pescador, sem correr perigo. Mas, por �m, o perigo acabou aparecendo.</p><p>Polidectes, que governava a pequena ilha, era irmão de Díctis, mas era um</p><p>homem cruel e sem escrúpulos. Por muito tempo não pareceu reparar na</p><p>mãe e no �lho, mas, por �m, Dânae lhe chamou a atenção. Embora Perseu</p><p>agora já fosse um homem feito, ela ainda era dona de uma beleza radiosa e</p><p>Polidectes se apaixonou. Desejou Dânae, mas não seu �lho, e começou a</p><p>pensar num jeito de se livrar dele.</p><p>Existiam monstros terríveis chamados górgonas que viviam numa ilha e</p><p>eram conhecidos por toda parte devido a seu poder mortal. Polidectes</p><p>obviamente falou deles com Perseu; talvez tenha dito ao jovem não haver</p><p>nada que desejasse mais no mundo do que a cabeça de um deles. Isso parece</p><p>quase certo a julgar pelo plano que ele bolou para matar Perseu. Polidectes</p><p>anunciou que estava prestes a se casar e reuniu seus amigos para uma</p><p>comemoração à qual Perseu também foi convidado. Como era de costume,</p><p>cada convidado levou um presente para a futura noiva, exceto um: Perseu.</p><p>Ele não tinha nada para dar. Era jovem, orgulhoso e �cou profundamente</p><p>consternado. Levantou-se diante de todos e fez exatamente o que o rei</p><p>esperava que �zesse: declarou que iria lhe dar um presente melhor do que</p><p>qualquer outro ali. Iria matar a Medusa e trazer de presente a sua cabeça.</p><p>Nada poderia ter deixado o rei mais satisfeito. Ninguém em plena posse de</p><p>suas faculdades mentais teria feito uma proposta como aquela. A Medusa</p><p>era uma das górgonas.</p><p>E elas são três, as górgonas, todas aladas</p><p>E com cabelos de cobras, horrendas para os mortais,</p><p>Que nenhum homem pode ver e tornar a respirar</p><p>O ar da vida,</p><p>pois quem as olhasse de frente era na mesma hora transformado em</p><p>pedra. Pelo visto, Perseu fora levado por sua raiva e seu orgulho a fazer uma</p><p>bravata vazia. Nenhum homem conseguiria matar a Medusa sem auxílio.</p><p>Mas Perseu foi salvo da própria temeridade. Dois grandes deuses o</p><p>estavam protegendo. Assim que saiu do salão do rei, sem se atrever a</p><p>primeiro ir falar com a mãe e lhe dizer o que pretendia, ele zarpou até a</p><p>Grécia para descobrir onde estavam os três monstros. Foi a Delfos, mas tudo</p><p>que as pitonisas lhe disseram foi que saísse em busca das terras onde os</p><p>homens não comem o grão dourado de Deméter, mas apenas nozes de</p><p>carvalhos. Ele foi até Dodona, na terra dos carvalhos, onde estavam as</p><p>árvores falantes que informavam a vontade de Zeus e viviam os seles, que</p><p>fabricavam seu pão com nozes de carvalho. Mas não puderam lhe dizer</p><p>nada além disso: que Perseu estava sob a proteção dos deuses. Não sabiam</p><p>onde viviam as górgonas.</p><p>Quando e como Hermes e Palas Atena ajudaram Perseu não é contado</p><p>em nenhuma história, mas ele deve ter conhecido o desespero antes de isso</p><p>acontecer. Por �m, enquanto seguia vagando, encontrou uma bela e estranha</p><p>pessoa. Vários poemas nos permitem saber qual era o aspecto dela: um</p><p>rapaz com o rosto coberto pela primeira penugem de quando a juventude é</p><p>mais bela, carregando na mão, como nenhum outro rapaz jamais carregou,</p><p>uma varinha de ouro com asas numa das pontas e usando também um</p><p>chapéu alado e sandálias igualmente aladas. Ao vê-lo, o coração de Perseu</p><p>deve ter se enchido de esperança, pois ele devia saber que aquele não podia</p><p>ser ninguém menos do que Hermes, o guia e executor do bem.</p><p>O radiante personagem lhe disse que, antes de atacar a Medusa, ele</p><p>primeiro precisava estar devidamente equipado e que aquilo de que</p><p>precisava estava com as ninfas do norte. Para encontrar o lugar onde viviam</p><p>as ninfas, era preciso procurar as Greias, as únicas capazes</p><p>de ensinar o</p><p>caminho. Essas mulheres viviam numa terra onde reinava a penumbra e o</p><p>lusco-fusco. Nenhum raio de sol jamais brilhava ali, tampouco o luar à noite.</p><p>Nesse lugar cinza viviam as três mulheres, elas próprias cinzentas e</p><p>encarquilhadas, como se fossem extremamente idosas. Eram criaturas de</p><p>fato estranhas, principalmente por só terem um único olho para as três, o</p><p>qual costumavam revezar, cada qual removendo-o da testa após ter usado</p><p>por um tempo e entregando para outra.</p><p>Tudo isso Hermes disse a Perseu e então lhe expôs seu plano. Ele próprio</p><p>guiaria Perseu até elas. Uma vez lá, Perseu teria que permanecer escondido</p><p>até ver uma delas tirar o olho da testa para entregá-lo a outra. Nesse</p><p>instante, quando nenhuma das três estivesse conseguindo ver, ele deveria</p><p>correr, agarrar o olho e se recusar a devolvê-lo até elas lhe dizerem como</p><p>encontrar as ninfas do norte.</p><p>Ele próprio, a�rmou Hermes, lhe daria uma espada com a qual atacar a</p><p>Medusa, espada essa que não poderia ser dobrada nem quebrada pelas</p><p>escamas da górgona, por mais duras que fossem. Era um presente</p><p>maravilhoso, sem dúvida, mas de que adiantava uma espada quando a</p><p>criatura a ser golpeada com ela era capaz de transformar seu adversário em</p><p>pedra antes que ele chegasse perto o su�ciente para atacar? Mas outra</p><p>grande divindade estava a postos para ajudar. Palas Atena surgiu ao lado de</p><p>Perseu. Tirou o escudo de bronze polido que lhe cobria o peito e lhe</p><p>estendeu. “Olhe nisto aqui quando atacar a górgona”, disse ela. “Vai poder</p><p>vê-la re�etida como num espelho e assim evitar seu poder mortal.”</p><p>Agora Perseu tinha, de fato, um bom motivo para ter esperança. A</p><p>viagem até a terra do lusco-fusco foi longa, por sobre o leito do Oceano e até</p><p>os con�ns do país negro em que vivem os cimérios, mas Hermes lhe serviu</p><p>de guia e ele não se perdeu. Encontraram, en�m, as Greias, que, à luz</p><p>tremeluzente, pareciam pássaros cinza, pois tinham o formato de cisnes.</p><p>Suas cabeças, porém, eram humanas, e por baixo das asas tinham braços e</p><p>mãos. Perseu fez exatamente como Hermes tinha dito: �cou esperando até</p><p>ver uma delas tirar o olho da testa. Então, antes que ela pudesse passá-lo</p><p>para a irmã, ele o arrancou da sua mão. As três demoraram um ou dois</p><p>segundos para perceber que o haviam perdido. Cada uma pensou que</p><p>estivesse com outra. Mas Perseu falou, lhes disse que tinha pegado o olho e</p><p>só o devolveria quando elas lhe mostrassem como encontrar as ninfas do</p><p>norte. Na mesma hora elas lhe deram todas as instruções necessárias; teriam</p><p>feito qualquer coisa para pegar o olho de volta. Ele o devolveu e partiu na</p><p>direção que elas lhe haviam indicado. Seu destino, embora ele não soubesse,</p><p>era o país sagrado dos hiperbóreos, situado depois do Vento Norte, sobre o</p><p>qual se diz: “Nem por navio nem por terra se poderá encontrar a</p><p>maravilhosa estrada que conduz ao lugar em que se reúnem os hiperbóreos.”</p><p>Contudo, como Perseu estava acompanhado por Hermes, a estrada se abriu</p><p>à sua frente e ele chegou àquele povo feliz que está sempre se banqueteando</p><p>e festejando com alegria. Eles o trataram com grande gentileza: acolheram-</p><p>no em seu banquete e as jovens que dançavam ao som da �auta e da lira</p><p>pararam para pegar os presentes que ele buscava. Eram três: sandálias</p><p>aladas, uma bolsa mágica que teria sempre o tamanho exato do que se</p><p>precisasse carregar nela e o mais importante de tudo: um capacete que</p><p>tornava invisível quem o usasse. Com esses presentes, o escudo de Palas</p><p>Atena e a espada de Hermes, Perseu estava pronto para as górgonas. Hermes</p><p>sabia onde elas moravam e, deixando o país feliz dos hiperbóreos, os dois</p><p>voltaram a sobrevoar o Oceano e a cruzar os mares até chegarem à ilha das</p><p>terríveis irmãs.</p><p>Por uma grande sorte, elas estavam todas dormindo quando Perseu as</p><p>encontrou. No espelho do escudo brilhante ele as pôde ver claramente:</p><p>criaturas com asas imensas, os corpos cobertos por escamas douradas e uma</p><p>profusão de cobras ondulantes no lugar dos cabelos. Além de Hermes, Palas</p><p>Atena agora também o acompanhava. Os deuses lhe disseram qual das</p><p>górgonas era a Medusa, e isso era importante, pois das três somente ela</p><p>podia ser morta; as outras duas eram imortais. Com suas sandálias aladas,</p><p>Perseu pairou acima delas, olhando apenas para o escudo. Então mirou um</p><p>golpe na garganta da Medusa e Palas Atena guiou sua mão. Com um único</p><p>movimento da espada, ele lhe cortou o pescoço e, com os olhos ainda</p><p>cravados no escudo, sem olhar para ela uma vez sequer, abaixou-se o</p><p>su�ciente para recolher a cabeça do chão. Guardou-a dentro da bolsa, que se</p><p>fechou em volta dela. Já não tinha mais nada a temer. No entanto, as duas</p><p>outras górgonas haviam acordado e, horrorizadas ao ver sua irmã abatida,</p><p>tentaram perseguir aquele que a matara. Mas Perseu estava seguro: tinha</p><p>vestido o capacete da invisibilidade e elas não conseguiram encontrá-lo.</p><p>Então, por sobre os mares, o �lho de Dânae com seus fartos cabelos</p><p>Correu, Perseu das sandálias aladas,</p><p>Voando depressa como o pensamento.</p><p>Numa bolsa prateada,</p><p>Maravilhosa de se ver,</p><p>Levava a cabeça do monstro,</p><p>Enquanto Hermes, �lho de Maia,</p><p>O mensageiro de Zeus,</p><p>Não saía do seu lado.</p><p>No caminho de volta, Perseu chegou à Etiópia e ali parou. Hermes já</p><p>tinha ido embora. Perseu descobriu, como Hércules mais tarde viria a</p><p>descobrir, que uma linda donzela fora oferecida para ser devorada por uma</p><p>terrível serpente marinha. Seu nome era Andrômeda e ela era �lha de uma</p><p>mulher tola e vaidosa,</p><p>A vaidosa rainha da Etiópia, que tentou</p><p>Fazer sua beleza ser mais elogiada do que</p><p>A das ninfas do mar e ofendeu seu poder.</p><p>Essa mulher havia a�rmado ser mais linda do que as �lhas de Nereu,</p><p>deus do mar. Naquele tempo, uma forma absolutamente certeira de atrair</p><p>um destino cruel era alegar ser superior a alguma divindade em qualquer</p><p>quesito; porém mesmo assim as pessoas viviam fazendo isso. Nesse caso,</p><p>quem teve que suportar a punição pela arrogância que os deuses detestavam</p><p>não foi a rainha Cassiopeia, mãe de Andrômeda, mas sua �lha. Os etíopes</p><p>estavam sendo devorados em grande número pela serpente e, ao saber pelo</p><p>oráculo que só seriam libertados desse �agelo se Andrômeda fosse oferecida</p><p>em sacrifício, obrigaram Cefeu, pai da jovem, a consentir. Quando Perseu</p><p>chegou, Andrômeda estava na saliência de um rochedo junto ao mar,</p><p>acorrentada, esperando a chegada do monstro. Perseu a viu e no mesmo</p><p>instante a amou. Ficou esperando com ela até a serpente vir buscar sua</p><p>presa, então cortou a cabeça desta como tinha feito com a górgona. O corpo</p><p>decapitado caiu de volta no mar. Perseu levou Andrômeda de volta para os</p><p>pais e pediu sua mão em casamento, o que o casal teve satisfação em</p><p>conceder.</p><p>Com Andrômeda, ele navegou de volta para a ilha e para sua mãe, mas</p><p>na casa em que havia morado por tanto tempo não encontrou ninguém. A</p><p>esposa do pescador Díctis já tinha morrido tempos antes e os dois outros</p><p>moradores, Dânae e o homem que fora como um pai para Perseu, tinham</p><p>sido obrigados a fugir e se esconder de Polidectes, enfurecido por Dânae ter</p><p>se recusado a desposá-lo. Perseu �cou sabendo que os dois tinham buscado</p><p>refúgio num templo. Soube também que o rei estava dando um banquete no</p><p>palácio e todos os homens que lhe eram �éis estavam lá reunidos. Na mesma</p><p>hora Perseu viu sua oportunidade. Foi direto para o palácio e adentrou o</p><p>salão. Ali, parado no vão da porta, com o reluzente escudo de Palas Atena</p><p>no peito e a bolsa prateada junto ao �anco, atraiu os olhares de todos os</p><p>presentes. Então, antes de qualquer um conseguir desviar os olhos, ele</p><p>suspendeu a cabeça da górgona e, ao olhar para ela, todos ali, o rei cruel e</p><p>seus cortesãos servis, foram transformados em pedra. Ficaram ali sentados,</p><p>como uma �leira de estátuas, petri�cados na mesma posição em que</p><p>estavam ao verem Perseu.</p><p>Quando os habitantes da ilha se encontraram livres do tirano, foi fácil</p><p>para Perseu encontrar Dânae e Díctis. Ele tornou Díctis o rei da ilha, mas ele</p><p>e a mãe decidiram voltar para a Grécia</p><p>de Zeus amoroso, de Zeus covarde e de</p><p>Zeus ridículo, é possível vislumbrar outro Zeus em formação, à medida que</p><p>os homens vão �cando cada vez mais conscientes do que a vida lhes exige e</p><p>daquilo de que os seres humanos precisam nos deuses que adoram. Esse</p><p>Zeus foi gradualmente substituindo os outros até passar a ocupar toda a</p><p>cena. Por �m, segundo as palavras de Dion Crisóstomo, que escreveu no</p><p>século II d.C., ele se tornou “Nosso Zeus, aquele que concede todas as boas</p><p>dádivas, pai, salvador e guardião de toda a humanidade”.</p><p>A Odisseia fala sobre “o divino pelo qual todos os homens anseiam” e,</p><p>séculos depois, Aristóteles escreveu: “A excelência, pela qual a raça dos</p><p>mortais tanto se esforça.” Desde os primeiros mitologistas, os gregos tinham</p><p>uma percepção do divino e do excelente. Seu anseio por essas coisas era</p><p>grande o su�ciente para levá-los a jamais desistir de se esforçar para vê-las</p><p>com clareza até, por �m, o trovão e o relâmpago se transformarem no Pai</p><p>Universal.</p><p>OS AUTORES DE MITOLOGIA GREGOS E ROMANOS</p><p>A maioria dos livros sobre as histórias da mitologia clássica se apoia</p><p>principalmente no poeta latino Ovídio, que escreveu durante o reinado de</p><p>Augusto. Ovídio é um compêndio de mitologia. Nenhum escritor antigo</p><p>pode se comparar a ele nesse quesito. Ele contou quase todas as histórias, e</p><p>contou-as à exaustão. Vez por outra, histórias que conhecemos por meio da</p><p>literatura e da arte só chegaram até nós pelas suas páginas. Evitei ao máximo</p><p>usá-lo neste livro. Sem dúvida ele foi um bom poeta, um bom contador de</p><p>histórias, capaz de apreciar su�cientemente os mitos para compreender o</p><p>excelente material que lhe ofereciam, mas, na realidade, estava mais distante</p><p>deles, em seu ponto de vista, do que nós hoje. Para Ovídio, os mitos eram</p><p>pura bobagem. Ele escreveu:</p><p>Falo das mentiras monstruosas dos poetas antigos,</p><p>Nunca vistas por olhos humanos de hoje ou de então.</p><p>Ele, na verdade, está dizendo ao leitor: “Não se importe com quão bobos</p><p>são. Vou vesti-los com tanta beleza que você vai gostar deles.” E ele de fato o</p><p>faz, frequentemente com grande beleza, mas, nas suas mãos, as histórias que</p><p>eram verdades factuais e solenes para os antigos poetas gregos Hesíodo e</p><p>Píndaro e veículos de grande verdade religiosa para os trágicos gregos</p><p>tornavam-se contos fúteis, às vezes espirituosos e divertidos, muitas vezes</p><p>sentimentais e perturbadoramente retóricos. Os mitologistas gregos não são</p><p>retóricos e estão particularmente livres de sentimentalismo.</p><p>A lista de autores importantes por meio dos quais os mitos chegaram até</p><p>nós não é longa. No topo, claro, está Homero. A Ilíada e a Odisseia são, ou</p><p>melhor, contêm os mais antigos escritos gregos de que dispomos. Não há</p><p>como datar com precisão qualquer parte dessas obras. Existe grande</p><p>discórdia entre os estudiosos, e ela, sem dúvida, continuará existindo. Uma</p><p>data tão inquestionável quanto qualquer outra é 1000 a.C., pelo menos para</p><p>a Ilíada, o mais antigo dos dois poemas.</p><p>O segundo autor da lista, Hesíodo, às vezes é situado no século IX a.C.,</p><p>outras, no VIII a.C. Ele foi um agricultor pobre que teve uma vida difícil e</p><p>amarga. Não poderia haver contraste maior entre seu poema Os trabalhos e</p><p>os dias, que tenta mostrar aos homens como ter uma vida boa num mundo</p><p>árduo, e o esplendor cortês da Ilíada e da Odisseia. Mas Hesíodo tem muito</p><p>a dizer sobre os deuses, e um segundo poema, a Teogonia, habitualmente</p><p>atribuído a ele, é inteiramente dedicado à mitologia. Caso ele o tenha de fato</p><p>escrito, então aquele humilde camponês que vivia numa remota propriedade</p><p>rural foi o primeiro homem na Grécia a se perguntar como tudo tinha vindo</p><p>a ser – o mundo, o céu, os deuses e a humanidade – e a pensar numa</p><p>explicação. Homero nunca se perguntou nada. A Teogonia é um relato sobre</p><p>a criação do Universo e das gerações dos deuses e é muito importante para a</p><p>mitologia.</p><p>Em seguida, na ordem, vêm os hinos homéricos, poemas escritos em</p><p>homenagem a deuses diversos. Não há como lhes atribuir uma data</p><p>de�nitiva, mas os mais antigos são considerados, pela maioria dos</p><p>estudiosos, pertencentes ao �nal do século VIII a.C. ou início do VII a.C. O</p><p>último importante – são 33 ao todo – pertence à Atenas do século V a.C. ou</p><p>possivelmente IV a.C.</p><p>Píndaro, o maior poeta lírico da Grécia, começou a escrever por volta do</p><p>�nal do século VI a.C. Escreveu odes em homenagem aos vencedores dos</p><p>jogos nos grandes festivais nacionais da Grécia e, em cada um de seus</p><p>poemas, mitos são contados ou mencionados. Píndaro tem praticamente a</p><p>mesma importância para a mitologia que Hesíodo.</p><p>Ésquilo, o mais antigo dos três poetas trágicos, foi contemporâneo de</p><p>Píndaro. Os outros dois, Sófocles e Eurípides, eram um pouco mais jovens.</p><p>Eurípides, o mais novo, morreu no �m do século V a.C. Com exceção de Os</p><p>persas, de Ésquilo, escrito para comemorar a vitória dos gregos sobre os</p><p>persas em Salamina, todas as peças têm temas mitológicos. Junto com</p><p>Homero, eles são a fonte mais importante de nosso conhecimento dos mitos.</p><p>O grande dramaturgo cômico Aristófanes, que viveu na última parte do</p><p>século V e no início do IV, faz referências constantes aos mitos, bem como</p><p>dois grandes autores de prosa: Heródoto, o primeiro historiador da Europa,</p><p>contemporâneo de Eurípides; e o �lósofo Platão, que viveu menos de uma</p><p>geração mais tarde.</p><p>Os poetas alexandrinos viveram por volta de 250 a.C. Eram assim</p><p>chamados porque, quando escreveram, o centro da literatura grega havia se</p><p>deslocado da Grécia para Alexandria, no Egito. Apolônio de Rodes fez um</p><p>longo relato sobre a busca do velocino de ouro e contou também diversos</p><p>outros mitos relacionados a essa história. Ele e três outros alexandrinos que</p><p>também escreveram sobre mitologia – os poetas pastorais Teócrito, Bíon e</p><p>Mosco – perderam a simplicidade de Hesíodo e a crença que Píndaro tinha</p><p>nos deuses, e estão bem distantes da profundidade e gravidade da visão</p><p>religiosa dos poetas trágicos, mas não são frívolos como Ovídio.</p><p>Dois escritores tardios, o latino Apuleio e o grego Luciano, ambos do</p><p>século II d.C., dão uma contribuição importante. A célebre história de</p><p>Cupido e Psiquê é contada somente por Apuleio, que escreve de forma bem</p><p>parecida com Ovídio. Luciano escreve como ninguém exceto ele próprio. Ele</p><p>satirizou os deuses. Na sua época, os deuses já tinham virado motivo de</p><p>piada. Ainda assim, ao fazê-lo, ele fornece uma boa quantidade de</p><p>informações a respeito deles.</p><p>O também grego Apolodoro é, junto com Ovídio, o mais prolí�co</p><p>escritor antigo sobre mitologia, mas se diferencia dele por ser muito prático</p><p>e muito maçante. Quanto ao período em que viveu, as hipóteses variam</p><p>desde o século I a.C. até o século IX d.C. O estudioso inglês sir J. G. Frazer</p><p>acredita que ele tenha escrito no primeiro ou segundo século de nossa era.</p><p>O grego Pausânias, ardoroso viajante e autor do primeiro guia de viagem</p><p>já escrito, tem bastante a dizer sobre os acontecimentos mitológicos</p><p>supostamente ocorridos nos lugares que visitou. Ele viveu no século II d.C.,</p><p>mas não questiona nenhuma das histórias e escreve sobre elas com total</p><p>seriedade.</p><p>Dos escritores romanos, Virgílio está bem adiante dos outros. Acreditava</p><p>tão pouco nos mitos quanto Ovídio, de quem foi contemporâneo, mas</p><p>encontrava neles a natureza humana e deu vida aos personagens mitológicos</p><p>de um modo que ninguém tinha feito desde os trágicos gregos.</p><p>Outros poetas romanos escreveram sobre os mitos. Catulo conta várias</p><p>das histórias e Horácio faz frequentes alusões a elas, mas nenhum dos dois é</p><p>importante para a mitologia. Para todos os romanos, as histórias eram</p><p>extremamente distantes, meras sombras. Os melhores guias para conhecer a</p><p>mitologia grega são os autores gregos, que acreditavam no que escreviam.</p><p>PARTE UM</p><p>Os deuses,</p><p>a criação e os</p><p>primeiros heróis</p><p>O</p><p>CAPÍTULO I</p><p>Os deuses</p><p>Estranhos e nebulosos fragmentos de antiga glória,</p><p>Remanescentes tardios da divina companhia,</p><p>Eles remetem ao mundo distante de onde vêm,</p><p>Salões</p><p>com Andrômeda e tentar se</p><p>reconciliar com Acrísio, para ver se os muitos anos transcorridos desde que</p><p>ele os havia posto na arca o haviam abrandado a ponto de ele �car feliz em</p><p>receber a �lha e o neto. Ao chegarem a Argos, porém, descobriram que</p><p>Acrísio fora expulso da cidade e ninguém sabia onde ele estava. Pouco</p><p>depois de chegar, Perseu ouviu dizer que o rei de Larissa, ao norte, estava</p><p>organizando uma grande competição de atletismo e foi para lá participar.</p><p>No lançamento do disco, quando chegou sua vez, ele lançou o pesado míssil,</p><p>que se desviou e caiu no meio dos espectadores. Acrísio nessa ocasião estava</p><p>visitando o rei e o disco o atingiu. O golpe foi fatal e ele morreu na hora.</p><p>Perseu segurando a cabeça da Medusa</p><p>Assim, a previsão do oráculo de Apolo mais uma vez se realizou. Se</p><p>Perseu sentiu alguma tristeza, pelo menos sabia que o avô tinha feito todo o</p><p>possível para matar a ele e sua mãe. Com a morte de Acrísio, os problemas</p><p>de Perseu chegaram ao �m. Ele e Andrômeda viveram felizes para sempre.</p><p>Eléctrion, seu �lho, viria a ser avô de Hércules.</p><p>A cabeça da Medusa foi entregue a Palas Atena, que a levava consigo</p><p>sempre em cima da Égide, o escudo de Zeus, o qual carregava para o pai.</p><p>O</p><p>CAPÍTULO II</p><p>Teseu</p><p>Esse herói particularmente querido pelos atenienses atraiu a atenção de</p><p>muitos autores. Ovídio, que viveu na época de Augusto, narra sua vida em</p><p>detalhes e o mesmo faz Apolodoro no século I ou II d.C., bem como Plutarco,</p><p>mais para o �nal do século I d.C. Teseu é um personagem importante em</p><p>três peças de Eurípides e em uma de Sófocles. As alusões a ele são muitas,</p><p>tanto nos autores de prosa como nos de poesia. De modo geral, segui</p><p>Apolodoro, mas acrescentei, tiradas de Eurípides, as histórias sobre o</p><p>pedido de Adrasto, a loucura de Hércules e o destino de Hipólito; de</p><p>Sófocles, sua gentileza com Édipo; e de Plutarco, a história da sua morte,</p><p>sobre a qual Apolodoro se limita a uma frase.</p><p>grande herói ateniense foi Teseu. Ele viveu tantas aventuras e</p><p>participou de tantas empreitadas grandiosas que, em Atenas, surgiu</p><p>um ditado: “Nada sem Teseu.”</p><p>Embora fosse �lho do rei ateniense Egeu, Teseu passou a juventude na</p><p>terra da mãe, uma cidade no sul da Grécia. Egeu voltou para Atenas antes de</p><p>o �lho nascer, mas primeiro guardou num buraco uma espada e um par de</p><p>sandálias e os cobriu com uma grande pedra. Fez isso com o conhecimento</p><p>da esposa e lhe disse que se o bebê fosse menino, quando �casse forte o</p><p>bastante para retirar a pedra e pegar as coisas guardadas embaixo, ela</p><p>poderia mandá-lo para Atenas e ele o reconheceria como �lho. A criança</p><p>nasceu menino e se tornou muito mais forte do que os outros, de modo que,</p><p>quando a mãe �nalmente o levou até a pedra, ele a ergueu sem qualquer</p><p>di�culdade. Ela lhe disse então que havia chegado a hora de procurar o pai e</p><p>um navio foi posto à sua disposição pelo avô. Teseu, porém, recusou-se a</p><p>viajar por mar, porque a viagem era segura e fácil. Sua ideia era se tornar um</p><p>grande herói o mais depressa possível, e a segurança e a facilidade</p><p>certamente não eram o caminho para isso. Hércules, [4] o mais magní�co de</p><p>todos os heróis da Grécia, não lhe saía da cabeça, nem a determinação de a</p><p>ele se igualar em magni�cência. Isso era muito natural, uma vez que os dois</p><p>eram primos.</p><p>Sendo assim, Teseu recusou obstinadamente o navio que a mãe e o avô</p><p>insistiram que ele usasse, disse-lhes que navegar nele seria fugir do perigo de</p><p>modo desprezível e partiu a pé rumo a Atenas. Por causa dos malfeitores que</p><p>havia na estrada, a viagem foi longa e repleta de perigos. Teseu, porém,</p><p>matou todos eles; não deixou nenhum vivo para atormentar os futuros</p><p>viajantes. Seu conceito de justiça era simples, porém e�caz: o mal que</p><p>alguém tinha feito a outros, Teseu fazia com ele. Círon, por exemplo, que</p><p>mandava seus prisioneiros se ajoelharem para lavar seus pés e depois os</p><p>chutava para dentro do mar, Teseu atirou num precipício. Sínis, que matava</p><p>as pessoas amarrando-as a dois pinheiros curvados até o chão que depois</p><p>soltava, morreu ele próprio dessa forma. Procusto foi posto sobre a cama de</p><p>ferro com a qual torturava suas vítimas, amarrando-as ali para depois ajustá-</p><p>las ao tamanho da cama, esticando as que eram demasiado curtas e</p><p>cortando o pedaço necessário das demasiado compridas. A história não diz</p><p>qual dos dois métodos foi usado por Teseu, mas não havia grande diferença</p><p>entre ambos e, de uma forma ou de outra, a carreira de Procusto acabou.</p><p>Pode-se imaginar como se espalharam pela Grécia as loas ao rapaz que</p><p>tinha livrado o país daquelas pragas aos viajantes. Quando chegou a Atenas,</p><p>Teseu já era um herói reconhecido e foi convidado a um banquete pelo rei,</p><p>naturalmente alheio ao fato de que o rapaz era seu �lho. Na verdade, o rei,</p><p>com medo da grande popularidade do jovem, pensou que ele quisesse</p><p>conquistar o povo para se tornar rei e convidou-o com a intenção de</p><p>envenená-lo. O plano não foi seu, mas sim de Medeia, a heroína da busca do</p><p>velocino de ouro, que graças à sua feitiçaria conhecia a identidade de Teseu.</p><p>Ela havia se refugiado em Atenas após deixar Corinto em sua carruagem</p><p>alada e passara a ter grande in�uência sobre Egeu, situação que não queria</p><p>ver perturbada pelo surgimento de um �lho. Quando ela lhe estendeu o</p><p>cálice envenenado, porém, Teseu, que desejava se revelar imediatamente ao</p><p>pai, sacou sua espada. O rei na mesma hora a reconheceu e derrubou o</p><p>cálice no chão. Medeia fugiu, como sempre fazia, e conseguiu chegar em</p><p>segurança à Ásia.</p><p>Egeu então proclamou pelo país inteiro que Teseu era seu �lho e</p><p>herdeiro. O novo herdeiro logo teve uma oportunidade para conquistar o</p><p>apreço dos atenienses.</p><p>Anos antes de sua chegada, um terrível infortúnio havia se abatido sobre</p><p>a cidade. Minos, o poderoso rei de Creta, tinha perdido seu único �lho,</p><p>Androgeu, quando o rapaz visitava o rei de Atenas. O rei Egeu havia feito o</p><p>que nenhum an�trião deveria fazer: mandara seu hóspede partir numa</p><p>expedição cheia de perigos para matar um monstruoso touro. Mas fora o</p><p>touro que matara o rapaz. Minos invadiu a Grécia, tomou Atenas e declarou</p><p>que iria arrasar a cidade a não ser que, de nove em nove anos, seu povo lhe</p><p>�zesse uma oferenda de sete moças e sete rapazes. Um destino terrível</p><p>aguardava essas jovens criaturas. Quando chegavam a Creta, elas eram</p><p>entregues ao Minotauro para serem devoradas.</p><p>O Minotauro era um monstro parte touro, parte homem, �lho da esposa</p><p>de Minos, Pasífae, com um touro de beleza esplendorosa. Poseidon tinha</p><p>dado o touro de presente a Minos para que o rei lhe oferecesse o animal em</p><p>sacrifício, mas Minos não conseguiu matá-lo e �cou com ele. Para puni-lo,</p><p>Poseidon fez Pasífae se apaixonar perdidamente pelo touro.</p><p>Quando o Minotauro nasceu, Minos não o matou. Fez o grande</p><p>arquiteto e inventor Dédalo construir para ele um lugar de onde fosse</p><p>impossível escapar. Dédalo construiu o labirinto, famoso no mundo inteiro.</p><p>Quem lá entrasse �caria eternamente percorrendo seus meandros sem</p><p>nunca encontrar a saída. Para lá eram levados os jovens atenienses</p><p>oferecidos em sacrifício ao Minotauro. Não havia como escapar. Fosse qual</p><p>fosse a direção na qual corressem, poderiam estar correndo direto para o</p><p>monstro; se �cassem parados, ele poderia surgir a qualquer momento. Era</p><p>esse o destino que aguardava catorze rapazes e moças poucos dias depois de</p><p>Teseu chegar a Atenas. Estava na época do sacrifício.</p><p>Teseu na mesma hora se ofereceu para ser uma das vítimas. Todos o</p><p>amaram por sua bondade e o admiraram por sua nobreza, mas não faziam a</p><p>menor ideia de que ele pretendesse matar o Minotauro. Ele, no entanto,</p><p>contou tudo ao pai e prometeu que, se tivesse sucesso, mandaria trocar a</p><p>vela negra, sempre içada no navio responsável por transportar aquele infeliz</p><p>carregamento, por uma vela branca, para Egeu saber antes de a embarcação</p><p>atracar que seu �lho estava seguro.</p><p>Quando as jovens vítimas chegaram a Creta, foram obrigadas a des�lar</p><p>diante dos moradores da cidade no caminho</p><p>até o labirinto. Ariadne, �lha</p><p>de Minos, era uma das espectadoras e apaixonou-se por Teseu à primeira</p><p>vista quando o viu marchar na sua frente. Mandou chamar Dédalo e lhe</p><p>disse que ele precisava mostrar a ela um jeito de escapar do labirinto; então</p><p>mandou chamar Teseu e disse que o ajudaria a fugir se ele prometesse levá-</p><p>la consigo de volta para Atenas e com ela se casar. Como se pode imaginar, o</p><p>rapaz não criou di�culdade em relação a isso e Ariadne lhe passou a pista</p><p>que recebera de Dédalo: um novelo de �o, cuja ponta ele deveria amarrar do</p><p>lado de dentro da porta e ir desenrolando conforme avançasse. Teseu assim</p><p>fez e, certo de que poderia encontrar o caminho de volta quando quisesse,</p><p>entrou corajosamente no labirinto à procura do Minotauro. Encontrou-o</p><p>dormindo e o atacou, imprensando-o no chão, e com os próprios punhos</p><p>espancou o monstro até a morte, pois não dispunha de nenhuma outra</p><p>arma.</p><p>Como um carvalho que tomba na encosta da montanha</p><p>Esmagando tudo que estiver pela frente,</p><p>Assim fez Teseu. Espremeu para fora a vida,</p><p>A vida selvagem do bruto, e este agora jaz morto.</p><p>Somente a cabeça balança devagar, mas os chifres já de nada servem.</p><p>Quando Teseu se levantou ao �nal desse embate colossal, o novelo de �o</p><p>estava onde ele o deixara cair. Com o novelo nas mãos, o caminho de saída</p><p>estava aberto. Os outros o seguiram e, levando Ariadne consigo, eles</p><p>voltaram depressa para o navio e ganharam o mar em direção a Atenas.</p><p>No caminho, pararam na ilha de Naxos, e o que aconteceu a seguir foi</p><p>objeto de diferentes relatos. Uma das histórias diz que Teseu abandonou</p><p>Ariadne. Ela estava dormindo e ele foi embora sem ela, mas Dioniso a</p><p>encontrou e reconfortou. A outra história favorece muito mais Teseu.</p><p>Ariadne �cou extremamente enjoada no mar e ele a deixou em terra �rme</p><p>para se recuperar enquanto voltava ao navio para fazer alguns reparos</p><p>necessários. Um vento forte o empurrou mar adentro e o manteve lá por</p><p>muito tempo. Ao voltar, ele descobriu que Ariadne tinha morrido e �cou</p><p>muito entristecido.</p><p>Ambas as histórias concordam em dizer que, ao se aproximar de Atenas,</p><p>Teseu esqueceu-se de içar a vela branca. A alegria com o sucesso da viagem</p><p>ou a tristeza por causa de Ariadne podem ter espantado qualquer outro</p><p>pensamento da sua cabeça. O rei Egeu, seu pai, viu a vela negra. Estava na</p><p>Acrópole, onde havia muitos dias forçava a vista para olhar o mar. Para ele,</p><p>aquele era o sinal da morte do �lho, e ele se atirou de um penhasco rochoso</p><p>no mar e morreu. O mar no qual caiu foi dali em diante chamado para</p><p>sempre de Egeu.</p><p>Assim, Teseu se tornou rei de Atenas, um rei sensato e altruísta.</p><p>Declarou ao povo não desejar governá-lo: queria um governo do povo, no</p><p>qual todos pudessem ser iguais. Renunciou ao seu poder real e organizou</p><p>um conselho, mandando construir uma sala na qual os cidadãos pudessem</p><p>se reunir e votar. O único cargo que guardou para si foi o de comandante em</p><p>chefe. Assim Atenas se tornou a mais feliz e próspera de todas as cidades da</p><p>Terra, o único e verdadeiro lar da liberdade, o único lugar do mundo em que</p><p>o povo governava a si mesmo. Foi por esse motivo que, na grande guerra dos</p><p>Sete contra Tebas,[5] quando os tebanos vitoriosos se recusaram a enterrar os</p><p>inimigos mortos, os vencedores pediram ajuda a Teseu e Atenas, por</p><p>acreditarem que homens livres governados por um líder como aquele jamais</p><p>tolerariam ver mortos impotentes tratados com injustiça. Seu apelo não foi</p><p>em vão. Teseu liderou seu exército contra Tebas, venceu e forçou a cidade a</p><p>permitir que os mortos fossem sepultados. Ao sair vitorioso, contudo, não</p><p>puniu os tebanos por seu mau comportamento. Mostrou-se, isso sim, um</p><p>guerreiro perfeito. Não permitiu que seu exército entrasse na cidade para</p><p>saqueá-la. Não fora até lá para maltratar Tebas, mas para enterrar os mortos</p><p>de Argos e, cumprido esse dever, conduziu seus soldados de volta a Atenas.</p><p>Teseu demonstra as mesmas qualidades em muitas outras histórias.</p><p>Recebeu o idoso Édipo, que todos haviam rechaçado. Estava ao seu lado</p><p>quando ele morreu, dando-lhe apoio e conforto. Protegeu suas duas �lhas</p><p>indefesas e mandou-as para casa em segurança após a morte do pai. Quando</p><p>Hércules[6] matou a esposa e os �lhos num acesso de loucura e depois, ao</p><p>recuperar a razão, decidiu se matar, Teseu foi o único a defendê-lo. Todos os</p><p>outros amigos de Hércules o abandonaram, temendo ser contaminados pela</p><p>presença de alguém que cometera ato tão terrível. Teseu lhe deu a mão,</p><p>in�ou sua coragem, disse-lhe que morrer seria o ato de um covarde e o levou</p><p>para Atenas.</p><p>O Minotauro no labirinto</p><p>Entretanto, nem todas as preocupações de Estado, nem todos os atos de</p><p>coragem e aventura para defender os fracos e injustiçados puderam conter o</p><p>amor de Teseu pelo perigo. Ele foi ao país das guerreiras amazonas –</p><p>segundo alguns, com Hércules; segundo outros, sozinho – e raptou uma</p><p>delas, cujo nome às vezes se diz ser Antíope, outras vezes, Hipólita. É certo</p><p>que o �lho que ela deu a Teseu se chamava Hipólito e é certo também que,</p><p>depois de ele nascer, as amazonas foram resgatar sua mãe e invadiram a</p><p>Ática, região que circunda Atenas, chegando a entrar na cidade. Acabaram</p><p>derrotadas e nenhum outro inimigo pisou na Ática enquanto Teseu viveu.</p><p>Mas ele teve muitas outras aventuras. Foi um dos que embarcaram no</p><p>Argo em busca do velocino de ouro. Participou da grande caçada calidônia,</p><p>quando o rei de Cálidon convidou os mais nobres homens da Grécia para</p><p>ajudá-lo a matar o terrível javali que estava devastando seu país. Durante a</p><p>caçada, Teseu salvou a vida de seu estouvado amigo Pirítoo, como de fato fez</p><p>diversas vezes. Pirítoo era tão aventureiro quanto Teseu, mas não tinha nem</p><p>de longe o mesmo sucesso, de modo que vivia em apuros. Teseu era muito</p><p>dedicado ao amigo e sempre o ajudava. A amizade entre os dois nasceu após</p><p>um ato particularmente temerário de Pirítoo. Ocorreu-lhe veri�car</p><p>pessoalmente se Teseu era um herói tão grande quanto diziam e então foi à</p><p>Ática e roubou algumas das suas reses. Quando soube que Teseu estava em</p><p>seu encalço, em vez de fugir correndo, ele se virou e o enfrentou,</p><p>naturalmente com a intenção de decidir ali mesmo quem era o melhor. No</p><p>entanto, quando os dois se enfrentaram, Pirítoo, impulsivo como sempre, de</p><p>repente esqueceu tudo, tamanha sua admiração por Teseu. Estendeu-lhe a</p><p>mão e exclamou: “Vou me submeter a qualquer penalidade que você me</p><p>impuser. Seja você o juiz.” Teseu, encantado com esse ato de generosidade,</p><p>respondeu: “Tudo que quero é que você seja meu amigo e companheiro de</p><p>armas.” E os dois prestaram um juramento solene de amizade.</p><p>No casamento de Pirítoo, que era rei dos lápitas, Teseu foi, é claro, um</p><p>dos convidados e mostrou-se extremamente útil nas bodas. Esse banquete</p><p>de casamento talvez tenha sido o evento mais desafortunado que jamais</p><p>ocorreu. Os centauros, criaturas com corpo de cavalo e peito e rosto de</p><p>homem, eram parentes da noiva e compareceram ao casamento. Eles se</p><p>embriagaram e tentaram raptar as mulheres. Teseu saiu em defesa da noiva e</p><p>abateu o centauro que tentava levá-la embora. Seguiu-se uma terrível</p><p>batalha, mas os lápitas venceram e acabaram expulsando de seu país a raça</p><p>inteira dos centauros, e Teseu os ajudou até o �m.</p><p>Na última aventura dos dois, porém, Teseu não conseguiu salvar o</p><p>amigo. De modo bem típico, depois que a noiva do desastroso banquete de</p><p>casamento morreu, Pirítoo decidiu que tentaria obter como segunda esposa</p><p>a dama mais bem protegida de todo o Universo: ninguém menos do que a</p><p>própria Perséfone. Teseu, claro, aceitou ajudá-lo, mas, decerto estimulado</p><p>pela ideia dessa empreitada imensamente arriscada, declarou que primeiro</p><p>raptaria Helena, a futura heroína de Troia,[7] uma criança ainda, e que,</p><p>quando ela crescesse, a desposaria. Embora menos arriscado do que o rapto</p><p>de Perséfone, isso era perigoso o bastante para satisfazer o mais ambicioso</p><p>dos homens. Helena tinha por irmãos Castor e Pólux, páreo duro para</p><p>qualquer herói mortal.</p><p>Teseu conseguiu raptar a menina, não �camos</p><p>sabendo exatamente como, mas os dois irmãos marcharam contra a cidade</p><p>para a qual ela fora levada e a pegaram de volta. Para sorte de Teseu, não o</p><p>encontraram lá. Ele já estava a caminho do mundo inferior com Pirítoo.</p><p>Os detalhes de sua viagem e sua chegada no Hades não são conhecidos,</p><p>exceto pelo fato de o senhor do Hades estar ciente da sua intenção e ter se</p><p>divertido frustrando-a de um modo inovador. Não matou os dois amigos,</p><p>claro, uma vez que eles já estavam no reino dos mortos, mas os convidou,</p><p>num gesto de amizade, a se sentarem diante dele. Teseu e Pirítoo se</p><p>acomodaram no assento que o deus lhes indicou e ali �caram. Não</p><p>conseguiram mais se levantar. Era a chamada Cadeira do Esquecimento.</p><p>Quem nela se sentasse esquecia tudo; sua mente se esvaziava e mover-se era</p><p>impossível. Ali Pirítoo segue sentado eternamente, mas Teseu foi libertado</p><p>pelo primo. Quando Hércules desceu ao mundo inferior, tirou Teseu da</p><p>cadeira e o levou de volta à Terra. Tentou fazer o mesmo com Pirítoo, mas</p><p>não conseguiu. O rei dos mortos sabia que fora ele quem planejara o rapto</p><p>de Perséfone e o reteve com �rmeza.</p><p>Em seus últimos anos de vida, Teseu desposou a irmã de Ariadne, Fedra,</p><p>causando assim terríveis infortúnios para ela, para si e para o �lho Hipólito</p><p>que a amazona tinha lhe dado. Mandou Hipólito para longe ainda menino,</p><p>para ser criado na cidade sulista onde ele próprio passara a juventude. O</p><p>menino virou um homem esplêndido, um grande atleta e caçador que</p><p>desprezava quem levava uma vida de ócio e de luxo, e mais ainda quem era</p><p>fraco e tolo o bastante para se apaixonar. Zombava de Afrodite e venerava</p><p>apenas Ártemis, a casta e bela caçadora. As coisas estavam nesse pé quando</p><p>Teseu chegou a sua antiga cidade levando consigo Fedra. Um forte afeto</p><p>nasceu na hora entre pai e �lho. Eles apreciaram intensamente a companhia</p><p>um do outro. Em Fedra, por sua vez, seu enteado Hipólito sequer reparou;</p><p>ele nunca reparava em mulheres. Mas no caso dela foi bem diferente. Fedra</p><p>se apaixonou perdidamente por Hipólito, um amor louco e infeliz que a</p><p>enchia de vergonha, mas que ela era totalmente incapaz de negar. Por trás</p><p>dessa situação lamentável e perigosa estava Afrodite. A deusa �cara com</p><p>raiva de Hipólito e decidira puni-lo som severidade.</p><p>Em sua a�ição, Fedra, desesperada, sem ver saída em lugar algum,</p><p>decidiu morrer sem revelar a ninguém por quê. Teseu na ocasião estava</p><p>longe de casa, mas a velha ama de Fedra, completamente dedicada à patroa e</p><p>sem conseguir ver nada de mau no que quer que Fedra desejasse, descobriu</p><p>tudo: a paixão secreta da jovem, seu desespero e sua decisão de se matar.</p><p>Com apenas uma ideia na cabeça – salvar a patroa –, a ama foi direto a</p><p>Hipólito.</p><p>– Ela está morrendo de amor por você – disse a velha. – Dê-lhe a vida.</p><p>Dê-lhe amor em troca de amor.</p><p>Hipólito se afastou da velha ama com repulsa. O amor de qualquer</p><p>mulher teria lhe causado aversão, mas aquele amor cheio de culpa lhe</p><p>causou náusea e horror. Ele saiu correndo para o pátio enquanto a ama o</p><p>seguia e implorava. Fedra estava sentada lá fora, mas Hipólito nem sequer a</p><p>viu. Virou-se indignado para a velha mulher.</p><p>– Sua desgraçada, querendo me fazer trair meu pai – disse ele. – Sinto-</p><p>me sujo pelo simples fato de ouvir essas palavras. Ah, mulheres, mulheres</p><p>vis… todas elas. Nunca mais pisarei nesta casa, exceto quando meu pai</p><p>estiver presente.</p><p>Ele se afastou e a ama se virou e encarou Fedra. A jovem tinha se</p><p>levantado e seu rosto exibia uma expressão que deixou a velha assustada.</p><p>– Ainda vou ajudá-la – gaguejou a ama.</p><p>– Cale-se – retrucou Fedra. – Eu mesma vou resolver meus problemas. –</p><p>E, dizendo isso, ela entrou em casa. A ama, tremendo, esgueirou-se atrás</p><p>dela.</p><p>Minutos depois, ouviram-se as vozes dos homens saudando o retorno do</p><p>dono da casa e Teseu adentrou o pátio. Lá foi recebido por mulheres em</p><p>prantos. Elas lhe disseram que Fedra estava morta. Ela havia se matado.</p><p>Tinham acabado de encontrá-la morta, mas na sua mão havia uma carta</p><p>para o marido.</p><p>– Minha querida, minha preferida – falou Teseu. – Seus últimos desejos</p><p>estão escritos aqui? Este é o seu selo… você, que nunca mais vai sorrir para</p><p>mim.</p><p>Ele abriu a carta, leu, tornou a ler. Então se virou para os criados que</p><p>lotavam o pátio.</p><p>– Esta carta grita bem alto – disse. – As palavras falam… elas têm língua.</p><p>Saibam vocês todos que meu �lho tocou com violência minha esposa. Ó</p><p>deus Poseidon, ouça-me amaldiçoá-lo e cumprir minha maldição.</p><p>O silêncio que se seguiu foi rompido apenas por passos céleres. Hipólito</p><p>entrou.</p><p>– O que houve? – perguntou. – Como ela morreu? Conte-me você</p><p>mesmo, pai. Não esconda de mim sua tristeza.</p><p>– Deveria haver uma régua da verdade com a qual medir o afeto – disse</p><p>Teseu. – Alguma forma de saber quem merece con�ança e quem não. Vocês</p><p>que aqui estão, vejam meu �lho, que a mão daquela que morreu provou ser</p><p>vil. Ele a tratou com violência. Sua carta supera qualquer palavra que ele</p><p>possa dizer. Vá. Você está exilado desta terra. Vá agora mesmo para sua</p><p>ruína.</p><p>– Pai – respondeu Hipólito –, eu não sou hábil com as palavras e não há</p><p>qualquer testemunha da minha inocência. A única que havia está morta.</p><p>Tudo que posso fazer é jurar por Zeus lá em cima que jamais toquei sua</p><p>esposa, nunca desejei tocá-la, nunca sequer pensei nela. Que eu morra em</p><p>desgraça se for culpado.</p><p>– Com sua morte ela prova estar dizendo a verdade – falou Teseu. – Vá!</p><p>Está expulso destas terras.</p><p>Hipólito se foi, mas não para o exílio; a morte também estava bem</p><p>próxima, à sua espera. Quando ele estava se afastando da casa que</p><p>abandonava para sempre pelo caminho do mar, a maldição de seu pai se</p><p>cumpriu. Um monstro surgiu das águas e seus cavalos, aterrorizados e sem</p><p>obedecer nem mesmo ao seu �rme comando, desembestaram. A carruagem</p><p>foi destruída e Hipólito, mortalmente ferido.</p><p>Teseu não foi poupado. Ártemis lhe apareceu e lhe contou a verdade.</p><p>Não vim lhe trazer ajuda, apenas dor,</p><p>E lhe mostrar que seu �lho era honrado.</p><p>A culpada foi sua esposa, louca de amor por ele,</p><p>Que, mesmo assim, resistiu à paixão e morreu.</p><p>Mas o que ela escreveu era mentira.</p><p>Enquanto Teseu escutava, chocado com aquela sequência terrível de</p><p>acontecimentos, Hipólito foi trazido ainda vivo.</p><p>– Eu era inocente – arquejou. – Ártemis, é você? Minha deusa, seu</p><p>caçador está morrendo.</p><p>– E nenhum outro pode tomar seu lugar, meu mais querido entre os</p><p>homens – disse-lhe a deusa.</p><p>Hipólito desviou os olhos do brilho de Ártemis para o consternado</p><p>Teseu.</p><p>– Pai, pai querido – falou –, não foi culpa sua.</p><p>– Se ao menos eu pudesse morrer no seu lugar! – exclamou Teseu.</p><p>A voz calma e melodiosa de Ártemis interrompeu esse diálogo a�ito:</p><p>– Tome seu �lho nos braços, Teseu. Não foi você quem o matou. Foi</p><p>Afrodite. Saiba que ele jamais será esquecido. Os homens se lembrarão dele</p><p>nas canções e nas histórias.</p><p>Ártemis desapareceu, mas Hipólito também partiu. Ele já tinha ido pela</p><p>estrada que conduz ao reino da morte.</p><p>Teseu também morreu em desgraça. Ele estava na corte de um amigo, o</p><p>rei Licomedes, onde, alguns anos depois, Aquiles se esconderia disfarçado</p><p>de donzela. Alguns dizem que Teseu foi lá por ter sido banido de Atenas. De</p><p>toda forma, o rei, seu amigo e an�trião, o matou, sem que nos seja contado</p><p>por quê.</p><p>Ainda que os atenienses tenham banido Teseu, pouco tempo depois da</p><p>sua morte passaram a honrá-lo como a nenhum outro mortal. Construíram</p><p>para ele uma imensa tumba e decretaram que esta seria um eterno santuário</p><p>para os escravos e para todas as pessoas pobres e indefesas, em homenagem</p><p>a um homem que tinha passado a vida inteira defendendo os desvalidos.</p><p>CAPÍTULO III</p><p>Hércules</p><p>Ovídio fornece um relato da vida de Hércules, mas muito breve, bem</p><p>diferente do seu habitual método extremamente detalhado. Ele não se</p><p>interessa muito por feitos heroicos, prefere as histórias tristes. À primeira</p><p>vista, parece estranho não abordar o fato de Hércules ter matado a esposa e</p><p>os �lhos, mas</p><p>essa história já tinha sido contada por um mestre, Eurípides,</p><p>poeta do século V a.C., e a reticência de Ovídio decerto se deveu à sua</p><p>inteligência. Ele tem muito pouco a dizer em relação a qualquer um dos</p><p>mitos sobre os quais escrevem os autores gregos de tragédias. Também deixa</p><p>praticamente de lado uma das mais famosas histórias relacionadas a</p><p>Hércules: como o herói livrou Alceste da morte, tema de outra peça de</p><p>Eurípides. Sófocles, contemporâneo de Eurípides, descreve a morte do</p><p>herói. Sua aventura com as cobras quando bebê é contada por Píndaro no</p><p>século V a.C. e por Teócrito no século III a.C. Para meu relato, usei as</p><p>histórias fornecidas pelos dois poetas trágicos e por Teócrito, mais do que</p><p>por Píndaro, um dos poetas mais difíceis de traduzir ou mesmo</p><p>parafrasear. Para o restante, segui Apolodoro, prosista do século I ou II</p><p>d.C. e único autor, com exceção de Ovídio, a narrar integralmente a vida</p><p>de Hércules. Preferi o tratamento dele ao de Ovídio porque, neste caso</p><p>apenas, ele é mais detalhado.</p><p>O</p><p>maior herói da Grécia foi Hércules. Em relação ao grande herói de Atenas,</p><p>Teseu, ele foi um personagem de outra dimensão. Era aquele que toda</p><p>a Grécia, com exceção de Atenas, mais admirava. Os atenienses eram</p><p>diferentes dos outros gregos e, portanto, seu herói era outro. Teseu era</p><p>naturalmente dotado de uma coragem sem igual, assim como todos os</p><p>heróis, mas, ao contrário dos outros, sua compaixão era comparável à sua</p><p>coragem e ele era um homem dotado de grande intelecto além da imensa</p><p>força física. Era natural que os atenienses tivessem um herói assim, porque</p><p>eles valorizavam o pensamento e as ideias mais do que em qualquer outra</p><p>parte do país. Teseu personi�cava seu ideal. Hércules, porém, personi�cava</p><p>aquilo que o restante da Grécia mais valorizava. Suas qualidades eram</p><p>aquelas que os gregos em geral honravam e admiravam. Com exceção da</p><p>coragem resoluta, essas qualidades não eram as mesmas que distinguiam</p><p>Teseu.</p><p>Hércules era o homem mais forte do mundo e tinha a autocon�ança</p><p>suprema conferida pela força física magistral. Considerava-se um igual dos</p><p>deuses e tinha motivos para tal. Os deuses precisaram da sua ajuda para</p><p>vencer os gigantes. Na vitória �nal dos deuses do Olimpo contra os violentos</p><p>�lhos da Terra, as �echas de Hércules desempenharam um papel</p><p>importante. Ele levava isso em conta na forma de tratar os deuses. Certa vez,</p><p>quando a pitonisa de Delfos não respondeu a uma pergunta sua, ele</p><p>empunhou o tripé no qual ela estava sentada e disse que o levaria embora e</p><p>criaria o próprio oráculo. Apolo não tolerou isso, claro, mas Hércules se</p><p>mostrou inteiramente disposto a brigar com ele e Zeus precisou intervir. A</p><p>rixa, porém, foi facilmente resolvida. Hércules se mostrou bastante afável.</p><p>Não queria brigar com Apolo, queria apenas uma resposta do seu oráculo.</p><p>Se Apolo a desse, a questão estava resolvida. Apolo, por sua vez, diante dessa</p><p>pessoa decidida, sentiu admiração pela ousadia de Hércules e fez sua</p><p>pitonisa dar a resposta.</p><p>Durante toda a vida Hércules teve total con�ança de que jamais poderia</p><p>ser derrotado, fosse quem fosse o seu adversário, e os fatos con�rmam isso.</p><p>Sempre que ele enfrentava alguém, o desfecho já estava certo de antemão.</p><p>Ele só poderia ser sobrepujado por uma força sobrenatural. Hera usou a sua</p><p>contra ele, com efeitos terríveis, e no �m ele foi morto por magia, mas nada</p><p>que vivesse nos ares, nos mares ou na terra jamais o derrotou.</p><p>A inteligência não tinha uma participação importante em nada que</p><p>Hércules �zesse e muitas vezes ela se mostrava particularmente ausente.</p><p>Certa vez, quando estava com calor, ele apontou uma �echa para o sol e</p><p>ameaçou atirar. Em outra ocasião, quando a embarcação a bordo da qual</p><p>estava foi sacudida pelas ondas, disse às águas que iria puni-las caso não se</p><p>acalmassem. O intelecto não era o seu forte. As emoções, sim. Elas</p><p>despertavam depressa e tinham tendência a fugir ao controle, como quando</p><p>ele desertou o Argo e esqueceu totalmente os companheiros e a busca do</p><p>velocino de ouro, tamanha sua tristeza por ter perdido seu jovem escudeiro</p><p>Hilas. Essa capacidade de sentimento profundo num homem de força</p><p>descomunal era estranhamente comovente, mas também causava imensos</p><p>danos. Hércules era acometido por surtos repentinos de raiva furiosa,</p><p>sempre fatais para as vítimas muitas vezes inocentes. Quando a raiva passava</p><p>e ele voltava a si, demonstrava um arrependimento totalmente desarmante e</p><p>concordava humildemente com qualquer punição proposta. Sem o seu</p><p>consentimento, não poderia ter sido punido por ninguém, mas, apesar disso,</p><p>ninguém jamais suportou tantas punições quanto ele. Hércules passou boa</p><p>parte da vida expiando algum ato infeliz e nunca se rebelou nem mesmo</p><p>contra as demandas quase impossíveis que lhe foram feitas. Às vezes chegava</p><p>a punir a si mesmo quando os outros estavam inclinados a desculpá-lo.</p><p>Teria sido absurdo pôr Hércules no comando de um reino como</p><p>aconteceu com Teseu; ele já tinha trabalho su�ciente governando a si</p><p>mesmo. Jamais teria conseguido pensar em uma ideia nova ou excelente</p><p>como se considerava que o herói ateniense havia feito. Seu pensamento se</p><p>limitava a procurar um jeito de matar algum monstro que estivesse</p><p>ameaçando matá-lo. Mesmo assim, ele tinha uma grandeza genuína. Não</p><p>por possuir uma coragem extrema baseada numa força descomunal, algo</p><p>apenas lógico, mas porque, na sua tristeza por ter errado e na sua disposição</p><p>para fazer qualquer coisa para expiar esses erros, ele demonstrava grandeza</p><p>de alma. Se tivesse também alguma grandeza mental, ou pelo menos o</p><p>su�ciente para conduzi-lo pelos caminhos da razão, ele teria sido o herói</p><p>perfeito.</p><p>Hércules nasceu em Tebas e durante muito tempo foi considerado �lho</p><p>de An�trião, um renomado general. Nesses primeiros anos foi chamado de</p><p>Alcides, ou descendente de Alceu, que era o pai de An�trião. Mas na</p><p>realidade Hércules era �lho de Zeus, o qual, enquanto o general esteve</p><p>lutando longe de casa, visitou Alcmena, esposa de An�trião, na forma de seu</p><p>marido. Alcmena teve dois �lhos: Hércules com Zeus e Í�cles com An�trião.</p><p>A diferença na ascendência dos meninos podia ser vista claramente em</p><p>como cada um agiu diante de um grande perigo com que ambos se</p><p>depararam antes de completarem 1 ano. Hera, como sempre, �cou</p><p>enfurecida de ciúme e decidiu matar Hércules.</p><p>Certa noite, Alcmena deu banho nos dois meninos, deu-lhes leite para</p><p>beber e os deitou no berço, acariciando-os e dizendo: “Durmam, meus</p><p>pequeninos, almas da minha alma. Que seja feliz seu sono e feliz seu</p><p>despertar.” Ela balançou o berço e, em poucos instantes, os dois bebês</p><p>pegaram no sono. No meio da noite, porém, quando tudo na casa era</p><p>silêncio, duas grandes serpentes rastejaram para dentro do quarto das</p><p>crianças. Havia uma luz no quarto e, quando as duas serpentes armaram o</p><p>bote acima do berço, com a cabeça balançando e a língua a tremular, os</p><p>meninos acordaram. Í�cles gritou e tentou sair do berço, mas Hércules</p><p>sentou-se e agarrou pelo pescoço as mortais criaturas. Elas se contorceram,</p><p>se reviraram e se enroscaram em volta do seu corpo, mas ele as segurou com</p><p>�rmeza. A mãe ouviu os gritos de Í�cles, chamou o marido e correu até o</p><p>quarto dos �lhos. E lá estava Hércules, sentado e rindo, segurando os corpos</p><p>�ácidos, um em cada mão. Contente, entregou as cobras para An�trião.</p><p>Estavam mortas. Todos então souberam que o menino estava fadado a</p><p>realizar grandes feitos. Tirésias, o profeta cego de Tebas, disse a Alcmena:</p><p>“Juro que muitas mulheres da Grécia, ao cardarem a lã no �m do dia,</p><p>louvarão esse seu �lho e você, que o deu à luz. Ele será o herói de toda a</p><p>humanidade.”</p><p>Muito cuidado se tomou com a educação do menino, mas lhe ensinar o</p><p>que ele não queria aprender era uma empreitada de risco. Hércules não</p><p>parece ter apreciado música, parte importante da formação de um menino</p><p>grego, ou então seu professor de música lhe desagradou. Ele �cou com raiva</p><p>dele e partiu-lhe a cabeça com sua cítara. Foi a primeira vez</p><p>que desferiu um</p><p>golpe fatal sem intenção. Não queria matar o pobre músico, apenas brandiu</p><p>o instrumento num impulso momentâneo, sem raciocinar e sem ter plena</p><p>noção da própria força. Arrependeu-se muito, mas isso não o impediu de</p><p>agir da mesma forma várias outras vezes. Pelas outras matérias que lhe</p><p>foram ensinadas – esgrima, luta livre e condução de carruagens – ele se</p><p>interessou mais e todos os seus professores nessas matérias sobreviveram.</p><p>Ao completar 18 anos, Hércules já era adulto e matou sozinho um imenso</p><p>leão que vivia nas �orestas de Citerão, o leão téspio. Daí em diante passou a</p><p>usar a pele do leão como capa, com a cabeça a formar uma espécie de capuz</p><p>acima da sua.</p><p>Seu feito seguinte foi combater e derrotar os minianos, que vinham</p><p>cobrando tributos excessivos dos tebanos. Os cidadãos, agradecidos, deram-</p><p>lhe em recompensa a mão da princesa Megara. Embora Hércules fosse</p><p>dedicado à esposa e aos �lhos que teve com ela, seu casamento lhe trouxe a</p><p>maior infelicidade de toda a sua vida, bem como provações e perigos que</p><p>ninguém jamais enfrentara nem viria a enfrentar. Depois de Megara lhe dar</p><p>três �lhos homens, Hércules enlouqueceu. Quem o fez perder a razão foi</p><p>Hera, que nunca esquecia uma ofensa. O herói matou os �lhos e matou</p><p>Megara também quando ela tentou proteger o mais novo. Então recuperou a</p><p>razão. Viu-se sozinho em seu salão ensanguentado, ladeado pelos corpos</p><p>dos �lhos e da mulher. Não fazia ideia do que acontecera, de como eles</p><p>tinham morrido. Parecia-lhe que poucos segundos antes estavam todos</p><p>conversando. Enquanto ele se detinha ali, sem entender nada, as pessoas</p><p>apavoradas que o observavam de longe viram que o acesso de loucura tinha</p><p>passado e An�trião se atreveu a abordá-lo. Não houve como esconder a</p><p>verdade de Hércules. Ele precisava saber como aquele horror tinha</p><p>acontecido e An�trião lhe contou. O herói o escutou e então disse:</p><p>– E eu mesmo sou o assassino daqueles que me são mais caros.</p><p>– Sim – respondeu An�trião, trêmulo. – Mas você estava fora de si.</p><p>Hércules não deu atenção à desculpa que a frase sugeria.</p><p>– Devo então poupar minha própria vida? – indagou. – Vou vingar essas</p><p>mortes com a minha.</p><p>Mas antes que ele saísse correndo e se matasse, no exato instante em que</p><p>iria fazê-lo, sua intenção desesperada se modi�cou e sua vida foi salva. Esse</p><p>milagre, pois era disso que se tratava, de afastar Hércules do descontrole e de</p><p>um ato violento e fazê-lo ter uma atitude sóbria e racional de aceitação</p><p>pesarosa não foi obra de um deus que tenha descido do céu. Foi um milagre</p><p>causado pela amizade humana. Seu amigo Teseu se postou diante dele e</p><p>estendeu as mãos para segurar as suas, todas sujas de sangue. Assim,</p><p>segundo o conceito habitual dos gregos, ele próprio �caria maculado e teria</p><p>uma participação na culpa de Hércules.</p><p>– Não recue – disse Teseu ao amigo. – Não me impeça de compartilhar</p><p>tudo com você. O mal que com você compartilho para mim não é um mal. E</p><p>ouça-me. Os homens de alma elevada conseguem suportar os golpes dos</p><p>céus sem se retrair.</p><p>– Você sabe o que eu �z? – perguntou Hércules.</p><p>– Sei – respondeu Teseu. – Sua tristeza não tem tamanho.</p><p>– Então vou morrer – disse Hércules.</p><p>– Herói nenhum pronunciou essas palavras – falou Teseu.</p><p>– O que posso fazer senão morrer? – lamentou-se Hércules. – Viver? Um</p><p>homem marcado, sobre quem todos dirão: “Vejam. Ali está aquele que</p><p>matou a esposa e os �lhos!” Meus carcereiros estarão por toda parte, os</p><p>escorpiões a�ados da língua!</p><p>– Mesmo assim, aguente e seja forte – respondeu Teseu. – Você irá</p><p>comigo para Atenas, morar na minha casa e compartilhar tudo comigo. E</p><p>dará a mim e à cidade uma grande retribuição: a glória de tê-lo ajudado.</p><p>Seguiu-se um longo silêncio. Por �m, Hércules falou, com palavras</p><p>lentas e pesadas:</p><p>– Que assim seja. Serei forte e esperarei pela morte.</p><p>Os dois foram para Atenas, mas Hércules não passou muito tempo lá.</p><p>Teseu, o pensador, rejeitou a ideia de que um homem pudesse ser culpado</p><p>de assassinato quando não sabia o que estava fazendo e de que quem</p><p>ajudasse um homem assim fosse considerado maculado. Os atenienses</p><p>concordaram e acolheram o pobre herói. O próprio Hércules, no entanto,</p><p>era incapaz de compreender esses conceitos. Não conseguia re�etir a</p><p>respeito, mas apenas sentir. Tinha matado a própria família. Portanto, estava</p><p>maculado e maculava outros. Ele merecia que todos lhe dessem as costas</p><p>com repulsa. Em Delfos, onde foi consultar o oráculo, a pitonisa teve</p><p>exatamente a mesma opinião. Ele precisava ser puri�cado, falou, e somente</p><p>uma terrível penitência poderia fazer isso. Disse-lhe que fosse procurar seu</p><p>primo Euristeu, rei de Micenas (ou de Tirinto, em algumas histórias), e</p><p>obedecer ao que quer que este lhe ordenasse. Hércules foi sem hesitar,</p><p>disposto a fazer qualquer coisa que o tornasse limpo outra vez. O resto da</p><p>história deixa claro que a pitonisa conhecia o caráter de Euristeu e sabia que</p><p>ele sem sombra de dúvida expiaria a culpa de Hércules.</p><p>Euristeu não era nem de longe estúpido, pois tinha uma mente muito</p><p>engenhosa, e quando o homem mais forte do mundo o procurou, disposto a</p><p>ser seu escravo, pensou em uma série de penitências que, do ponto de vista</p><p>da di�culdade e do perigo, não tinham como ser melhores. É preciso dizer,</p><p>contudo, que ele foi auxiliado e incentivado por Hera. Até o �m da vida de</p><p>Hércules, a deusa nunca o perdoou por ser �lho de Zeus. As tarefas que</p><p>Euristeu mandou Hércules cumprir são conhecidas como “os trabalhos de</p><p>Hércules”. Eram doze no total, todos praticamente impossíveis.</p><p>O primeiro era matar o leão de Nemeia, animal que nenhuma arma era</p><p>capaz de ferir. Hércules contornou essa di�culdade esganando-o. Então</p><p>suspendeu nas costas a imensa carcaça e a levou para Micenas. Depois disso,</p><p>Euristeu, que era um homem cauteloso, não o deixou mais entrar na cidade.</p><p>Continuou a lhe dar ordens de longe.</p><p>O segundo trabalho era ir a Lerna matar uma criatura de nove cabeças</p><p>chamada hidra, que vivia num pântano. A tarefa era extremamente difícil de</p><p>cumprir porque uma das cabeças era imortal e as outras quase isso, pois,</p><p>quando Hércules decepava uma delas, duas brotavam no lugar. Mas ele foi</p><p>ajudado pelo sobrinho Iolau, que lhe trouxe um tição incandescente com o</p><p>qual Hércules cauterizava o pescoço da hidra conforme ia cortando as</p><p>cabeças, de modo a impedi-las de rebrotar. Uma vez cortadas, ele deu cabo</p><p>da que era imortal enterrando-a debaixo de uma enorme pedra.</p><p>O terceiro trabalho foi trazer viva uma corça de chifres de ouro, sagrada</p><p>para Ártemis, que vivia nas �orestas da Cerineia. Teria sido fácil matá-la,</p><p>mas capturá-la viva era diferente e Hércules passou um ano caçando-a antes</p><p>de ter sucesso.</p><p>O quarto trabalho foi capturar um imenso javali cuja toca �cava no</p><p>monte Erimanto. Hércules perseguiu o animal de um lado para outro até</p><p>deixá-lo exausto, em seguida o encurralou na neve alta e o capturou.</p><p>O quinto trabalho foi limpar os estábulos de Augias num único dia.</p><p>Augias tinha milhares de cabeças de gado e seus estábulos não eram limpos</p><p>havia muitos anos. Hércules desviou o curso de dois rios e os fez correr</p><p>pelos estábulos numa grande enchente que lavou bem depressa toda a</p><p>sujeira.</p><p>O sexto trabalho foi espantar as aves do lago Estínfalo, uma praga para o</p><p>povo que lá vivia devido ao seu número espantoso. O herói teve a ajuda de</p><p>Palas Atena para espantar as aves de seus abrigos e, quando elas levantaram</p><p>voo, ele as alvejou com �echas.</p><p>O sétimo trabalho foi ir a Creta buscar o lindo touro selvagem que</p><p>Poseidon tinha dado de presente para Minos. Hércules o subjugou, o fez</p><p>embarcar num navio e o levou para Euristeu.</p><p>O oitavo trabalho foi capturar as éguas devoradoras de homens do rei</p><p>Diomedes da Trácia. Hércules primeiro matou Diomedes, então espantou as</p><p>éguas sem encontrar oposição.</p><p>O nono trabalho foi buscar o cinto de Hipólita, rainha das amazonas.</p><p>Quando Hércules chegou, ela o recebeu bem e disse que lhe daria o cinto,</p><p>mas Hera causou problemas. Fez as amazonas</p><p>pensarem que Hércules iria</p><p>raptar sua rainha e elas atacaram o navio do herói. Sem pensar em como</p><p>Hipólita tinha se mostrado amistosa, sem pensar em nada, Hércules a matou</p><p>na hora, partindo do princípio de que era ela a responsável pelo ataque.</p><p>Conseguiu se desvencilhar das outras e foi embora com o cinto.</p><p>O décimo trabalho foi trazer os bois do gigante Gerião, monstro de três</p><p>cabeças que vivia em Erítia, uma ilha no oeste. No caminho até lá, Hércules</p><p>chegou às terras situadas nos con�ns do Mediterrâneo e, como monumento</p><p>à sua jornada, ergueu dois grandes rochedos, chamados pilares de Hércules</p><p>(hoje Gibraltar e Ceuta). Então pegou os bois e os levou consigo para</p><p>Micenas.</p><p>O décimo primeiro trabalho foi o mais difícil até então. Consistia em</p><p>buscar os pomos de ouro das Hespérides e Hércules não sabia onde</p><p>encontrá-los. Como o pai das Hespérides era Atlas, aquele que sustentava</p><p>nos ombros o �rmamento, Hércules foi procurá-lo e lhe pediu para pegar os</p><p>pomos. Ofereceu-se para segurar o fardo do céu durante a ausência de Atlas.</p><p>Ao ver uma chance de se livrar daquela penosa tarefa, Atlas aceitou na</p><p>mesma hora. Voltou com os pomos, mas não os entregou a Hércules. Disse</p><p>ao herói que ele podia continuar segurando o céu, pois ele próprio levaria os</p><p>pomos para Euristeu. Nessa ocasião, Hércules não teve ao que recorrer</p><p>exceto a própria inteligência; toda a sua força estava sendo usada para</p><p>sustentar aquele peso descomunal. Se acabou tendo sucesso, foi mais devido</p><p>à estupidez de Atlas do que à própria esperteza. Ele concordou com o plano</p><p>de Atlas, mas lhe pediu que segurasse o céu de novo só por um instante,</p><p>para poder colocar sobre os ombros uma almofada para diminuir a pressão.</p><p>Atlas assim o fez e Hércules pegou os pomos e foi embora.</p><p>O décimo segundo trabalho foi o pior de todos. Hércules teve que ir até</p><p>o mundo inferior, e foi nessa ocasião que libertou Teseu da Cadeira do</p><p>Esquecimento. Sua tarefa era trazer do Hades Cérbero, o cão de três cabeças.</p><p>Plutão lhe deu permissão para fazer isso, contanto que ele não usasse armas</p><p>para subjugar o monstro. Poderia usar somente as mãos. Memo assim, o</p><p>herói conseguiu obrigar a terrível criatura a lhe obedecer. Ele ergueu</p><p>Cérbero e o carregou por todo o caminho até a Terra e à cidade de Micenas.</p><p>Euristeu, muito sensato, não quis �car com o cão e fez Hércules levá-lo de</p><p>volta. Esse foi seu último trabalho.</p><p>Uma vez concluídos os trabalhos e expiada a culpa pela morte da esposa</p><p>e dos �lhos, seria de pensar que Hércules teria garantido paz e tranquilidade</p><p>para o resto da vida. Mas não. Ele nunca teve paz. Um feito quase tão difícil</p><p>quanto a maioria de seus trabalhos foi a derrota de Anteu, um gigante e</p><p>exímio lutador que obrigava os forasteiros a enfrentá-lo sob uma condição:</p><p>se vencesse, ele os mataria. Estava construindo o telhado de um templo com</p><p>os crânios de suas vítimas. Enquanto tocasse a terra, Anteu era invencível.</p><p>Quando derrubado, o contato com o chão o fazia se levantar com a energia</p><p>renovada. Hércules o suspendeu e, segurando-o no ar, estrangulou-o.</p><p>Hércules carregando Cérbero</p><p>Contam-se inúmeras histórias sobre suas aventuras. Ele combateu o</p><p>deus-rio Aqueloo, pois Aqueloo estava apaixonado pela jovem que Hércules</p><p>agora queria desposar. Como todo mundo àquela altura, Aqueloo não tinha</p><p>a menor vontade de enfrentar Hércules e com ele tentou argumentar. Mas</p><p>com Hércules a argumentação nunca funcionava; só fazia deixá-lo ainda</p><p>mais furioso. Ele disse: “Minha mão é melhor que a minha língua. Deixe-me</p><p>vencer lutando e você pode vencer falando.” Aqueloo assumiu a forma de</p><p>um touro e o atacou com ferocidade, mas Hércules estava acostumado a</p><p>subjugar touros: venceu aquele e quebrou um de seus chifres. O objeto da</p><p>disputa, uma jovem princesa chamada Dejanira, tornou-se sua esposa.</p><p>Hércules viajou para muitos lugares e realizou muitos outros feitos</p><p>grandiosos. Em Troia, resgatou uma donzela na mesma situação de</p><p>Andrômeda, que esperava junto ao mar para ser devorada por um monstro</p><p>marinho incapaz de se saciar de qualquer outra forma. Ela era �lha do rei</p><p>Laomedonte, que havia deixado de pagar a Apolo e Poseidon o que lhes era</p><p>devido depois de ambos, mediante uma ordem de Zeus, terem construído as</p><p>muralhas de Troia para o rei. Apolo então lhe mandou uma praga, e</p><p>Poseidon, a serpente do mar. Hércules aceitou resgatar a moça se o seu pai</p><p>lhe desse em troca os cavalos com que Zeus presenteara seu avô.</p><p>Laomedonte prometeu, mas, depois de Hércules matar o monstro, recusou-</p><p>se a pagar. Hércules tomou a cidade, matou o rei e deu a donzela ao amigo</p><p>Télamon de Salamina, que o havia ajudado.</p><p>Quando estava indo procurar Atlas para lhe pedir o favor dos pomos de</p><p>ouro, Hércules passou pelo Cáucaso, onde libertou Prometeu e matou a</p><p>águia que lhe devorava as entranhas.</p><p>Além desses feitos de glória, houve outros não tão gloriosos assim. Com</p><p>um movimento descuidado do braço, ele matou um rapaz que derramava</p><p>água em suas mãos antes de um banquete. Foi um acidente e o pai do jovem</p><p>o perdoou, mas Hércules não conseguiu perdoar a si mesmo e se exilou por</p><p>algum tempo. Muito pior foi ter matado de propósito um bom amigo para</p><p>vingar um insulto proferido pelo pai do jovem, o rei Eurito. Por esse ato</p><p>reles Zeus o puniu pessoalmente e mandou-o para a Lídia como escravo da</p><p>rainha Ônfale, segundo alguns por um ano, segundo outros por três. A</p><p>rainha se divertiu com ele, fazendo-o às vezes se vestir de mulher e realizar</p><p>trabalhos femininos, como tecer ou �ar. Hércules se submeteu com</p><p>paciência, como sempre, mas sentiu-se degradado por essa servidão e, sem</p><p>motivo algum, pôs a culpa em Eurito e jurou puni-lo de modo exemplar</p><p>quando fosse libertado.</p><p>Todas as histórias contadas a seu respeito são características, mas a que</p><p>fornece o retrato mais claro dele é o relato de uma visita que fez quando ia</p><p>buscar as éguas de Diomedes, devoradoras de carne humana, um de seus</p><p>doze trabalhos. A casa na qual Hércules tinha planejado pernoitar, a de seu</p><p>amigo Admeto, um rei na Tessália, estava em luto profundo quando lá</p><p>chegou, embora ele não o soubesse. Admeto acabara de perder a esposa de</p><p>um modo muito estranho.</p><p>A causa da morte da esposa remontava ao passado, à época em que</p><p>Apolo, com raiva de Zeus por ter matado seu �lho Esculápio, matou os</p><p>ciclopes, operários de Zeus. Ele foi punido, sendo forçado a virar escravo na</p><p>Terra durante um ano, e Admeto foi o senhor que ele ou Zeus havia</p><p>escolhido. Durante esse ano de servidão, Apolo travou amizade com os</p><p>moradores da casa, especialmente com o dono e sua esposa, Alceste.</p><p>Quando teve uma oportunidade de mostrar como era forte a sua amizade,</p><p>aproveitou. Ficou sabendo que as três Moiras já tinham �ado todo o �o da</p><p>vida de Admeto e estavam prestes a cortá-lo. Conseguiu delas uma trégua.</p><p>Se alguém morresse no lugar de Admeto, ele poderia viver. Levou essa</p><p>notícia para Admeto, que na mesma hora pôs-se a tentar encontrar um</p><p>substituto. Primeiro abordou, muito con�ante, o próprio pai e a própria</p><p>mãe. Ambos eram velhos e muito dedicados ao �lho. Com certeza um ou</p><p>outro aceitaria assumir seu lugar no mundo dos mortos. Mas, para seu</p><p>espanto, constatou que não. Os pais lhe disseram: “A luz diurna do deus é</p><p>bela até para os velhos. Não lhe pedimos que morra por nós. E nós não</p><p>morreremos por você.” E não se deixaram demover em nada pelo desprezo</p><p>enraivecido de Admeto: “Vocês, paralisados às portas da morte, mas mesmo</p><p>assim com medo de morrer!”</p><p>Mas Admeto não desistiu. Foi procurar os amigos e pediu a cada um</p><p>deles para morrer e deixá-lo viver. Obviamente considerava a própria vida</p><p>tão valiosa que alguém com certeza iria salvá-la, ainda que mediante o</p><p>sacrifício supremo. Mas tudo que encontrou foram recusas. Por �m,</p><p>desesperado, voltou para casa e lá encontrou um substituto. Sua esposa</p><p>Alceste se ofereceu para morrer no seu lugar. Ninguém que tenha lido até</p><p>aqui precisará que lhe contem que Admeto aceitou a oferta. Ficou com</p><p>muita pena dela e mais ainda de si mesmo,</p><p>por ter que perder tão boa</p><p>esposa, e chorou ao seu lado enquanto ela morria. Depois que Alceste</p><p>morreu, foi subjugado pela tristeza e decretou que ela teria o mais</p><p>esplêndido dos funerais.</p><p>Foi então que Hércules chegou, para descansar e se divertir sob o teto de</p><p>um amigo no caminho rumo ao norte, ao encontro de Diomedes. O modo</p><p>como Admeto o tratou mostra com mais clareza do que qualquer outra</p><p>história da qual dispomos como eram altos os padrões de hospitalidade e</p><p>quanto se esperava de um an�trião em relação a um hóspede.</p><p>Assim que soube da chegada de Hércules, Admeto foi ao seu encontro</p><p>sem dar qualquer mostra de que estava de luto, com exceção da roupa.</p><p>Comportou-se como alguém feliz por receber um amigo. Quando Hércules</p><p>perguntou quem tinha morrido, ele respondeu baixinho que uma mulher da</p><p>sua casa seria enterrada nesse dia, mas que não era sua parente. Hércules na</p><p>mesma hora declarou que não iria incomodá-lo com sua presença num</p><p>momento desses, mas Admeto se recusou terminantemente a deixá-lo ir</p><p>para outro lugar. “Não o deixarei dormir debaixo do teto de outro”, disse ele.</p><p>Aos criados ordenou que seu convidado deveria ser levado para um cômodo</p><p>distante, onde não pudesse escutar os sons do luto, e que lá iria comer e</p><p>dormir. Ninguém deveria lhe contar o que havia acontecido.</p><p>Hércules comeu sozinho, mas entendeu que, por uma questão formal,</p><p>Admeto precisaria comparecer ao funeral, e isso não o impediu de se</p><p>divertir. Os criados que tinham �cado em casa para cuidar dele estavam</p><p>ocupados em satisfazer seu enorme apetite e, ainda mais, em repor o vinho</p><p>de sua jarra. Hércules �cou muito feliz, muito embriagado e muito ruidoso.</p><p>Pôs-se a rugir canções a plenos pulmões, algumas delas altamente</p><p>questionáveis, e a se comportar de modo francamente indecente na ocasião</p><p>de um funeral. Quando os criados deixaram aparente sua reprovação, ele</p><p>lhes gritou para não serem tão solenes. Por acaso não poderiam lhe sorrir de</p><p>vez em quando como bons homens? Suas expressões soturnas estavam lhe</p><p>tirando o apetite.</p><p>– Venham beber comigo! – gritou. – Bebam muito!</p><p>Um deles respondeu timidamente que aquele não era o momento para</p><p>risos e bebedeira.</p><p>– Por que não? – trovejou Hércules. – Porque uma desconhecida</p><p>morreu?</p><p>– Desconhecida… – gaguejou o criado.</p><p>– Bem, foi o que me disse Admeto – respondeu Hércules, zangado. –</p><p>Espero que não me diga que ele mentiu para mim.</p><p>– Ah, não – retrucou o criado. – É que… ele é por demais hospitaleiro.</p><p>Mas, por favor, aceite um pouco mais de vinho. Nosso problema é apenas</p><p>nosso.</p><p>O criado se virou para encher seu cálice, mas Hércules lhe segurou o</p><p>braço, e ninguém nunca ignorava esse gesto.</p><p>– Tem algo estranho acontecendo aqui – disse ele ao homem</p><p>amedrontado. – O que é?</p><p>– Pode ver por si mesmo que estamos de luto – respondeu o outro.</p><p>– Mas por quê, homem, por quê? – exclamou Hércules. – Meu an�trião</p><p>me fez de bobo? Quem morreu?</p><p>– Alceste – sussurrou o criado. – Nossa rainha.</p><p>Fez-se um longo silêncio. Hércules então jogou o cálice no chão.</p><p>– Eu deveria ter percebido – falou. – Percebi que ele havia chorado. Seus</p><p>olhos estavam vermelhos. Mas ele jurou que era uma desconhecida. Mandou</p><p>que eu entrasse. Ah, bom amigo e bom an�trião. E eu… eu me embriaguei,</p><p>me diverti nesta casa enlutada. Ah, ele deveria ter me contado.</p><p>E Hércules então fez como sempre fazia: culpou a si mesmo. Tinha sido</p><p>um tolo, um tolo embriagado, quando o homem de quem gostava estava</p><p>esmagado pela tristeza. Como sempre também, ele logo começou a pensar</p><p>num jeito de expiar sua culpa. O que poderia fazer para se redimir? Não</p><p>havia nada que pudesse fazer. Disso tinha absoluta certeza, mas o que</p><p>poderia ajudar seu amigo? Então algo lhe ocorreu. “Mas claro”, falou para si</p><p>mesmo. “É essa a solução. Preciso trazer Alceste de volta dos mortos. Claro.</p><p>Nada poderia estar mais claro. Vou encontrar aquele velho sujeito, Tânatos,</p><p>a morte. Ele deve estar junto ao túmulo dela, e com ele lutarei. Esmagarei</p><p>seu corpo entre meus braços até ele entregá-la a mim. Se ele não estiver</p><p>junto ao túmulo, descerei até o Hades à sua procura. Ah, vou retribuir</p><p>fazendo um bem ao meu amigo que foi tão bom comigo.” E se retirou, muito</p><p>satisfeito consigo mesmo e saboreando a perspectiva do que prometia ser</p><p>uma excelente luta.</p><p>Quando Admeto voltou para sua casa vazia e desolada, Hércules estava</p><p>lá para recebê-lo e ao seu lado estava uma mulher.</p><p>– Olhe para ela, Admeto – disse o herói. – Ela se parece com alguém que</p><p>você conhece?</p><p>E quando Admeto exclamou:</p><p>– Um fantasma! Será um truque? Alguma zombaria dos deuses?</p><p>Hércules respondeu:</p><p>– É sua esposa. Eu lutei com Tânatos por ela e o obriguei a devolvê-la.</p><p>Nenhuma outra história sobre Hércules mostra tão claramente seu</p><p>caráter como os gregos o viam: sua ingenuidade e sua estupidez atabalhoada;</p><p>sua incapacidade de não se embriagar por completo numa casa em que</p><p>alguém acabara de morrer; sua penitência rápida e seu desejo de se redimir</p><p>a qualquer custo; sua total con�ança de que nem mesmo a morte era páreo</p><p>para ele. Esse é o retrato de Hércules. Com certeza teria sido ainda mais</p><p>preciso se o tivesse mostrado num acesso de raiva matando um dos criados</p><p>que o incomodavam com seus semblantes fechados, mas o poeta Eurípides,</p><p>por quem a história nos chega, a manteve livre de qualquer coisa que não</p><p>tivesse relação direta com a morte e com a volta de Alceste à vida. Uma ou</p><p>duas mortes a mais, ainda que naturais com Hércules presente, teriam</p><p>borrado o retrato que o autor desejava pintar.</p><p>Conforme Hércules tinha jurado quando era escravo de Ônfale, assim</p><p>que se viu livre começou a punir o rei Eurito, uma vez que ele próprio fora</p><p>punido por Zeus por matar o �lho do rei. Reuniu um exército, capturou a</p><p>cidade do rei e o condenou à morte. Mas Eurito também foi vingado, pois</p><p>essa vitória foi a causa indireta da morte do próprio Hércules.</p><p>Antes de concluir por completo a destruição da cidade, Hércules</p><p>despachou para casa, onde sua dedicada esposa, Dejanira, aguardava o</p><p>marido voltar de junto de Ônfale, na Lídia, um grupo de jovens escravas,</p><p>uma delas especialmente bela: Íole, a �lha do rei. O homem que as levou até</p><p>Dejanira lhe disse que Hércules estava loucamente apaixonado por essa</p><p>princesa. A notícia não foi um golpe tão duro para Dejanira quanto se</p><p>poderia imaginar, pois ela acreditava ter um poderoso amuleto, que vinha</p><p>guardando por muitos anos, justamente contra um mal desse tipo: a</p><p>presença em sua casa de uma mulher que o marido preferisse. Logo depois</p><p>do seu casamento, quando Hércules a levava para casa, os dois tinham</p><p>chegado a um rio onde o centauro Nesso fazia as vezes de barqueiro,</p><p>transportando os viajantes de uma margem à outra. Ele pôs Dejanira nas</p><p>costas e, no meio do rio, a ofendeu. Ela gritou e Hércules matou o centauro</p><p>com uma �echada quando ele chegou à outra margem. Antes de morrer,</p><p>Nesso disse a Dejanira para pegar um pouco do seu sangue e usar como</p><p>amuleto contra Hércules se ele, algum dia, amasse outra mulher mais do que</p><p>a ela. Ao ouvir falar em Íole, Dejanira pensou que essa hora tinha chegado e</p><p>besuntou com o sangue do centauro uma esplêndida túnica, que despachou</p><p>para Hércules pelo mensageiro.</p><p>Quando Hércules vestiu a túnica, esta teve no herói o mesmo efeito da</p><p>roupa que Medeia havia mandado para a rival que Jasão estava prestes a</p><p>desposar. Foi tomado por uma dor assustadora, como se estivesse dentro de</p><p>um fogo ardente. Ao sentir essa agonia, virou-se primeiro para o mensageiro</p><p>de Dejanira, que era totalmente inocente, claro, agarrou-o e o arremessou no</p><p>mar. Ainda podia matar os outros, mas pelo visto ele próprio não podia</p><p>morrer. A agonia que sentia quase não o enfraqueceu. O que matara</p><p>imediatamente a jovem princesa de Corinto não era capaz de matar</p><p>Hércules. Aquilo era uma tortura, mas ele viveu e foi levado para casa.</p><p>Dejanira, pouco antes, �cara sabendo o que o seu presente havia feito ao</p><p>marido, e se matara. No �m, Hércules acabou fazendo o mesmo. Como a</p><p>morte não vinha</p><p>até ele, ele iria até a morte. Ordenou àqueles ao seu redor</p><p>que construíssem uma imensa pira no monte Eta e o levassem até lá.</p><p>Quando por �m chegou, soube que poderia morrer e �cou satisfeito. “Isto é</p><p>o descanso”, falou. “É o �m.” E ao ser erguido para cima da pira ele se deitou</p><p>nela como alguém que, diante da mesa de um banquete, se reclina no seu</p><p>divã.</p><p>Pediu a seu jovem seguidor Filocteto que segurasse a tocha e pusesse</p><p>fogo na madeira, e a ele entregou suas �echas e seu arco, que também</p><p>ganhariam muita fama nas mãos do rapaz, em Troia. As chamas então</p><p>subiram e Hércules não foi mais visto na Terra. Foi levado para o Olimpo,</p><p>onde se reconciliou com Hera e se casou com sua �lha Hebe, e onde</p><p>Após seus extenuantes trabalhos repousa,</p><p>Tendo a paz eterna como maior prêmio</p><p>No lar dos abençoados.</p><p>Mas não é fácil imaginá-lo saboreando satisfeito o descanso e a paz,</p><p>tampouco permitindo aos abençoados deuses fazerem o mesmo.</p><p>À</p><p>CAPÍTULO IV</p><p>Atalanta</p><p>Apenas os autores tardios Ovídio e Apolodoro contam a história inteira de</p><p>Atalanta, mas esta é uma história antiga. Um dos poemas atribuídos a</p><p>Hesíodo, mas provavelmente um pouco posterior, digamos que do início do</p><p>século VII a.C., descreve a raça e os pomos de ouro, e a Ilíada nos fornece</p><p>um relato da caça ao javali calidônio. Para este meu relato, me baseei em</p><p>Apolodoro, que provavelmente escreveu no século I ou II d.C. O relato de</p><p>Ovídio só é bom em determinados trechos. Ele pinta um retrato encantador</p><p>de Atalanta em meio aos caçadores, que incluí na minha versão, mas</p><p>muitas vezes, como na descrição do javali, é tão exagerado que beira o</p><p>ridículo. Embora não seja pitoresco, Apolodoro nunca é absurdo.</p><p>s vezes se diz que houve duas heroínas com o nome Atalanta.</p><p>Certamente dois homens, Íaso e Esqueneu, são ambos chamados de</p><p>seu pai, mas, nas histórias antigas, é comum que nomes diferentes sejam</p><p>dados a uma mesma pessoa se ela for pouco importante. Caso tenham</p><p>existido duas Atalantas, é certamente notável que ambas tenham desejado</p><p>zarpar a bordo do Argo, que ambas tenham participado da caçada ao javali</p><p>calidônio, que ambas tenham desposado um homem que as derrotou numa</p><p>corrida e que ambas tenham acabado transformadas em leoas. Como são</p><p>histórias praticamente iguais, é mais simples partir do princípio de que</p><p>houve apenas uma Atalanta. De fato, até mesmo nas histórias mitológicas</p><p>seria improvável supor que houvesse duas donzelas vivendo na mesma</p><p>época que amavam a aventura tanto quanto o mais destemido dos heróis e</p><p>que também fossem capazes de atirar, correr e lutar melhor do que qualquer</p><p>homem de uma das duas grandes épocas do heroísmo.</p><p>O pai de Atalanta, seja qual tenha sido seu nome, sentiu uma amarga</p><p>decepção quando lhe nasceu uma �lha e não um �lho. Decidiu que não valia</p><p>a pena criar a menina e mandou abandonar a minúscula criatura numa</p><p>encosta selvagem para que morresse de frio e de fome. No entanto, como</p><p>acontece com tanta frequência nas histórias, os animais se mostraram mais</p><p>bondosos do que os humanos. Uma ursa cuidou da menina, amamentou-a e</p><p>a aqueceu, e a criança assim cresceu e se transformou numa menina ativa e</p><p>ousada. Então caçadores bondosos a encontraram e a levaram para viver</p><p>com eles. Atalanta acabou mais do que se igualando a eles em todas as</p><p>árduas tarefas da vida de um caçador. Certa vez, dois centauros, muito mais</p><p>velozes e fortes do que qualquer mortal, avistaram-na quando ela estava</p><p>sozinha e a perseguiram. Ela não correu deles; teria sido loucura. Ficou</p><p>parada, levou uma �echa ao arco e disparou. Seguiu-se uma segunda �echa.</p><p>Ambos os centauros foram abatidos, mortalmente feridos.</p><p>Seguiu-se então a famosa caçada ao javali calidônio. Esse animal era</p><p>uma criatura terrível enviada por Ártemis para devastar as terras de Cálidon</p><p>e punir seu rei, Eneu, por ter negligenciado a deusa quando estava</p><p>sacri�cando aos deuses os primeiros frutos da colheita. A fera destruiu a</p><p>região, matou as reses e abateu os homens que tentaram matá-la. Por �m,</p><p>Eneu pediu ajuda aos homens mais valentes da Grécia e um esplêndido</p><p>grupo de jovens heróis se reuniu, muitos dos quais zarpariam mais tarde a</p><p>bordo do Argo. Junto com eles, é claro, estava Atalanta, “O orgulho das</p><p>�orestas da Arcádia”. Temos uma descrição de sua aparência quando ela</p><p>chegou àquele encontro só de homens: “Um escudo reluzente prendia sua</p><p>túnica no pescoço; seus cabelos estavam arrumados de modo simples,</p><p>presos com um nó atrás da cabeça. Uma aljava de prata pendia de seu</p><p>ombro esquerdo e em sua mão havia um arco. Assim estava ela vestida.</p><p>Quanto ao rosto, parecia feminino demais para ser o de um rapaz, e</p><p>masculino demais para ser o de uma moça.” Um dos homens ali presentes,</p><p>porém, achou-a mais bela e mais desejável do que qualquer outra donzela</p><p>que já houvesse visto. O �lho de Eneu, Meleagro, apaixonou-se por Atalanta</p><p>à primeira vista. Mas de uma coisa podemos ter certeza: ela o tratou como</p><p>um bom companheiro, não como um possível amante. Não gostava de</p><p>homens a não ser como companheiros de caçada e estava decidida a nunca</p><p>se casar.</p><p>Alguns dos heróis não apreciaram sua presença e se sentiram</p><p>diminuídos por caçar com uma mulher, mas Meleagro insistiu e eles</p><p>�nalmente cederam. Isso se revelou melhor para eles porque, quando</p><p>cercaram o javali, a fera os atacou tão depressa que matou dois antes que os</p><p>outros pudessem acudi-los, e de modo igualmente desafortunado um</p><p>terceiro homem caiu atingido por um dardo que errou o alvo. Nessa</p><p>confusão de homens morrendo e armas voando descontroladas, Atalanta</p><p>manteve a cabeça fria e feriu o javali. Sua �echa foi a primeira a atingi-lo.</p><p>Meleagro então partiu para cima do animal ferido e o apunhalou no</p><p>coração. Tecnicamente falando, foi ele quem o matou, mas a honra da</p><p>caçada coube a Atalanta e Meleagro insistiu que ela �casse com a pele do</p><p>animal.</p><p>Por estranho que pareça, foi essa a causa da morte dele. Quando</p><p>Meleagro tinha apenas uma semana de vida, as Parcas apareceram para sua</p><p>mãe, Alteia, e lançaram uma tora de lenha no fogo aceso do quarto dela.</p><p>Então, �ando como sempre fazem, girando a roca e torcendo o �o do</p><p>destino, elas entoaram:</p><p>A você, ó recém-nascido, concedemos um presente:</p><p>Viver até esta madeira virar cinzas.</p><p>Alteia tirou o pedaço de madeira do fogo, apagou a chama e o escondeu</p><p>numa arca. Seus irmãos faziam parte do grupo que foi caçar o javali. Eles se</p><p>sentiram ofendidos e �caram enfurecidos de raiva ao ver o prêmio ir parar</p><p>nas mãos de uma moça, como sem dúvida aconteceu com outros caçadores,</p><p>mas esses dois eram os tios de Meleagro e não precisavam fazer cerimônia</p><p>com ele. Declararam que Atalanta não deveria �car com a pele e disseram a</p><p>Meleagro que ele não tinha mais direito de dá-la do que qualquer outro.</p><p>Meleagro então os matou, pegando os dois inteiramente desprevenidos.</p><p>A notícia foi levada para Alteia. Seus amados irmãos haviam sido</p><p>mortos por seu �lho porque Meleagro havia se portado feito um tolo por</p><p>causa de uma sirigaita desavergonhada que saía para caçar com homens. Ela</p><p>foi tomada por um arrebatamento de fúria. Correu até a arca, pegou o</p><p>pedaço de madeira e o atirou no fogo. Quando a madeira se incendiou,</p><p>Meleagro desabou no chão, agonizando, e quando ela se consumiu, o</p><p>espírito já tinha deixado seu corpo. Dizem que, horrorizada com o próprio</p><p>ato, Alteia se enforcou. E a caçada ao javali calidônio, portanto, terminou em</p><p>tragédia.</p><p>Atalanta e os pomos de ouro</p><p>Mas para Atalanta foi apenas o começo das aventuras. Alguns dizem que</p><p>ela viajou com os argonautas; outros, que Jasão a convenceu a não ir. Ela</p><p>nunca é mencionada na história dos exploradores e com certeza não era do</p><p>seu feitio se manter discreta quando havia atos de bravura a serem</p><p>cometidos, de modo que parece provável ela não ter ido. A próxima vez que</p><p>ouvimos falar nela é na volta dos argonautas, depois de Medeia matar Pélias,</p><p>tio de Jasão, sob o pretexto de lhe devolver a juventude. Nos jogos fúnebres</p><p>organizados em sua homenagem, Atalanta apareceu</p><p>entre os competidores e</p><p>na luta livre derrotou o jovem que viria a ser pai de Aquiles, o grande herói</p><p>Peleu.</p><p>Foi depois dessa conquista que ela descobriu quem eram seus pais e foi</p><p>morar com eles; seu pai, ao que parece, conformou-se em ter uma �lha que</p><p>parecia quase tão boa quanto um �lho varão, ainda que não de todo. Parece</p><p>estranho vários homens terem querido desposá-la pelo fato de ela ser capaz</p><p>de caçar, atirar e lutar, mas assim foi: Atalanta teve muitos pretendentes.</p><p>Como forma de se livrar deles de modo fácil e agradável, declarou que se</p><p>casaria com quem quer que a derrotasse numa corrida, sabendo muito bem</p><p>que nenhum homem vivo seria capaz disso. Ela se divertia muito. Rapazes</p><p>de pés velozes viviam aparecendo para competir com ela, que sempre corria</p><p>mais depressa.</p><p>Mas por �m acabou aparecendo um que, além dos pés, usou também a</p><p>cabeça. Ele sabia que não era um corredor tão bom quanto ela, mas tinha</p><p>um plano. Com a ajuda de Afrodite, sempre atenta à possibilidade de</p><p>subjugar donzelas rebeldes que desprezavam o amor, esse rapaz engenhoso,</p><p>cujo nome era Melânion ou Hipômenes, conseguiu três pomos (maçãs)</p><p>maravilhosos, de ouro puro, tão lindos quanto os que cresciam no pomar</p><p>das Hespérides. Não havia quem não os cobiçasse.</p><p>Na pista de corrida, enquanto Atalanta olhava em volta decidida,</p><p>preparada para o sinal de partida e cem vezes mais bela sem roupas do que</p><p>vestida, todos os que a viram �caram assombrados com sua beleza, porém,</p><p>mais do que todos, aquele que aguardava para com ela competir. O rapaz,</p><p>porém, controlou-se e segurou bem �rme os pomos de ouro. A corrida</p><p>começou e Atalanta partiu veloz como uma �echa, os cabelos jogados para</p><p>trás sobre os ombros alvos, um rubor rosado a colorir seu belo corpo. Estava</p><p>ultrapassando-o quando o rapaz deixou cair um dos pomos bem à frente</p><p>dela. Foi preciso apenas um instante para ela se abaixar e recolher o lindo</p><p>fruto, mas nessa breve pausa ele a ultrapassou. Um segundo depois ele</p><p>lançou o segundo pomo, dessa vez um pouco para o lado. Ela teve que se</p><p>desviar para alcançá-lo e ele a ultrapassou. Quase na mesma hora, porém,</p><p>ela o alcançou, e a linha de chegada estava agora bem próxima. Mas então a</p><p>terceira esfera dourada cruzou seu caminho e rolou para longe, no meio da</p><p>grama junto à pista. Atalanta a viu brilhar em meio ao verde e não</p><p>conseguiu resistir. Enquanto pegava o pomo, seu adversário, ofegante e</p><p>quase sem ar, alcançou a linha de chegada. Atalanta era sua. Foi o �m de</p><p>seus dias de liberdade sozinha na �oresta e de suas vitórias atléticas.</p><p>Dizem que os dois foram transformados em leões por causa de alguma</p><p>ofensa feita a Zeus ou Afrodite. Mas, antes disso, Atalanta teve um �lho,</p><p>Partenopeu, que foi um dos Sete contra Tebas.</p><p>PARTE QUATRO</p><p>Os heróis da</p><p>guerra de Troia</p><p>M</p><p>CAPÍTULO I</p><p>A guerra de Troia</p><p>Esta história, claro, é tirada quase inteiramente de Homero. Mas a Ilíada</p><p>começa depois de os gregos chegarem a Troia, quando Apolo manda a peste</p><p>que os castiga. Nada se diz sobre o sacrifício de I�gênia e há apenas uma</p><p>alusão dúbia ao julgamento de Páris. Tirei a história de I�gênia de</p><p>Agamêmnon, uma peça de Ésquilo, poeta trágico do século V a.C., e o</p><p>julgamento de Páris, de As troianas, peça de seu contemporâneo Eurípides.</p><p>Acrescentei alguns poucos detalhes, como a história de Enone, tirada do</p><p>prosista Apolodoro, que decerto a escreveu no século I ou II d.C. Apolodoro</p><p>em geral é muito desinteressante, mas, ao tratar dos acontecimentos</p><p>imediatamente anteriores àIlíada, parece ter se inspirado ao abordar um</p><p>tema tão grandioso.</p><p>ais de mil anos antes de Cristo, perto da borda oriental do</p><p>Mediterrâneo, �cava uma grande cidade muito rica e muito poderosa</p><p>que nenhuma outra na terra inteira era capaz de suplantar. Seu nome era</p><p>Troia, e até hoje não existe cidade mais famosa. O motivo dessa fama</p><p>duradoura foi uma guerra contada num dos maiores poemas do mundo, a</p><p>Ilíada, e a causa dessa guerra remonta a uma disputa entre três deusas</p><p>ciumentas.</p><p>Prólogo: O JULGAMENTO DE PÁRIS</p><p>Éris, a malvada deusa da discórdia, naturalmente não gozava de grande</p><p>popularidade no Olimpo e, quando os deuses davam um banquete,</p><p>conseguiam deixá-la de fora. Profundamente ofendida, ela decidiu criar</p><p>problemas, e de fato nisso teve muito sucesso. Num casamento importante,</p><p>o do rei Peleu com a ninfa do mar Tétis, para o qual apenas ela dentre todas</p><p>as divindades deixou de ser convidada, Éris jogou dentro do salão do</p><p>banquete um pomo dourado no qual estava escrito Para a mais bela. É claro</p><p>que todas as deusas quiseram �car com o fruto, mas no �m a escolha se</p><p>resumiu a apenas três: Afrodite, Hera e Palas Atena. Elas pediram a Zeus</p><p>que decidisse, mas ele muito sabiamente se recusou a ter qualquer</p><p>participação no assunto. Disse-lhes para irem ao monte Ida, perto de Troia,</p><p>onde o jovem príncipe Páris, chamado também de Alexandre, pastoreava as</p><p>ovelhas do pai. Zeus disse às deusas que o rapaz era um excelente árbitro da</p><p>beleza. Embora fosse um príncipe real, Páris estava trabalhando como</p><p>pastor porque seu pai, Príamo, rei de Troia, fora alertado de que o príncipe</p><p>um dia causaria a ruína de seu país e, portanto, o mandara embora. Páris</p><p>naquela ocasião morava com uma bela ninfa chamada Enone.</p><p>Pode-se imaginar o assombro de Páris quando as formas esplêndidas das</p><p>três grandes deusas surgiram na sua frente. Mas não lhe pediram que</p><p>olhasse para as três divindades radiosas e escolhesse qual das três parecia</p><p>mais bela, e sim que considerasse as recompensas que cada uma delas</p><p>oferecia e escolhesse qual lhe parecia valer mais a pena. Mesmo assim, a</p><p>escolha não foi fácil. Aquilo que os homens mais valorizam lhe foi oferecido.</p><p>Hera prometeu fazer dele o senhor da Europa e da Ásia; Palas Atena disse</p><p>que ele conduziria os troianos à vitória contra os gregos e deixaria a Grécia</p><p>em ruínas; Afrodite falou que a mulher mais bela do mundo seria sua. Páris,</p><p>fraco de caráter e um pouco covarde também (como demonstrariam os</p><p>futuros acontecimentos), escolheu a terceira opção. E deu o pomo de ouro a</p><p>Afrodite.</p><p>Foi esse o julgamento de Páris, conhecido por todos como o verdadeiro</p><p>estopim da guerra de Troia.</p><p>O julgamento de Páris</p><p>A GUERRA DE TROIA</p><p>A mulher mais bela do mundo era Helena, �lha de Zeus e Leda, e irmã de</p><p>Castor e Pólux. A fama de sua beleza era tanta que todos os príncipes da</p><p>Grécia queriam desposá-la. Quando os pretendentes se reuniram na sua</p><p>casa para pedir o�cialmente a sua mão, eram tantos e de famílias tão</p><p>poderosas que seu célebre pai, o rei Tíndaro, marido de sua mãe, não quis</p><p>escolher nenhum, temendo que os outros se unissem contra ele. Sendo</p><p>assim, primeiro extraiu deles um juramento solene de que defenderiam a</p><p>causa do marido de Helena, fosse quem fosse, caso ele saísse de alguma</p><p>forma prejudicado pelo casamento. Todos os homens tinham interesse em</p><p>prestar o juramento, pois cada um esperava ser o escolhido, de modo que se</p><p>comprometeram a punir até as últimas consequências quem quer que</p><p>raptasse ou tentasse raptar Helena. Tindareu então escolheu Menelau, irmão</p><p>de Agamêmnon, e o nomeou também rei de Esparta.</p><p>Era nesse pé que as coisas estavam quando Páris entregou o pomo de</p><p>ouro a Afrodite. A deusa do amor e da beleza sabia muito bem onde podia</p><p>ser encontrada a mulher mais linda de toda a Terra. Na mesma hora levou o</p><p>jovem pastor até Esparta, sem dar a menor importância a Enone, que foi</p><p>abandonada, e lá Menelau e Helena o receberam educadamente como</p><p>hóspede. Os vínculos entre hóspede e an�trião eram fortes. Cada um devia</p><p>ajudar e jamais prejudicar o outro. Páris, porém, violou esse vínculo sagrado.</p><p>Já Menelau, con�ando nele por completo, deixou Páris em sua casa e viajou</p><p>para Creta. Então</p><p>Páris, que ao chegar</p><p>Adentrou a acolhedora morada de um amigo,</p><p>Envergonhou a mão que o alimentou</p><p>Ao raptar sua mulher.</p><p>Ao voltar, Menelau descobriu que Helena tinha sumido e convocou a</p><p>Grécia inteira para ajudá-lo. Os chefes responderam como lhes cabia</p><p>responder.</p><p>Apresentaram-se ansiosos por aquela grande empreitada, por</p><p>cruzar o mar e transformar em cinzas a poderosa Troia. Dois dos mais</p><p>importantes, porém, não responderam ao chamado: Odisseu, rei da ilha de</p><p>Ítaca, e Aquiles, �lho de Peleu e da ninfa do mar Tétis. Odisseu, um dos</p><p>homens mais astutos e sensatos de toda a Grécia, não quis deixar sua casa e</p><p>sua família para embarcar numa aventura romântica além-mar por causa de</p><p>uma mulher in�el. Assim, �ngiu ter perdido a razão e, quando um</p><p>mensageiro do exército grego chegou, encontrou-o arando um campo e</p><p>semeando sal em vez de sementes. Só que o mensageiro também era astuto:</p><p>pegou o �lho pequeno de Odisseu e o pôs bem na frente do arado. O pai na</p><p>mesma hora desviou o arado, provando assim estar em plena posse de suas</p><p>faculdades mentais. Por maior que fosse sua relutância, teve que se juntar ao</p><p>exército.</p><p>Aquiles foi impedido de ir pela mãe. A ninfa do mar sabia que, se ele</p><p>fosse para Troia, estava fadado a morrer por lá. Despachou-o para a corte de</p><p>Licomedes, o rei que traiçoeiramente havia matado Teseu, e o fez se vestir de</p><p>mulher e se esconder entre as donzelas. Odisseu foi incumbido de encontrá-</p><p>lo pelos chefes. Disfarçado de mercador, foi até a corte onde se dizia estar o</p><p>rapaz levando em sua bagagem enfeites alegres, daqueles que agradam às</p><p>mulheres, além de algumas armas de boa qualidade. Enquanto as moças se</p><p>juntavam em volta dos badulaques, Aquiles se interessou pelas espadas e</p><p>adagas. Odisseu então o reconheceu e não teve di�culdade alguma para</p><p>fazer o rapaz desconsiderar o que a mãe dissera e acompanhá-lo até o</p><p>acampamento dos gregos.</p><p>A grande frota então iniciou os preparativos. Mil navios transportariam</p><p>o exército grego. Eles se reuniram em Áulis, local de ventos fortes e marés</p><p>traiçoeiras, de onde era impossível zarpar enquanto o Vento Norte soprasse.</p><p>E ele continuou soprando, dia após dia.</p><p>O vento partia o coração dos homens,</p><p>Sem poupar nenhum navio ou corda.</p><p>O tempo se arrastava</p><p>E passava em dobro.</p><p>O exército se desesperou. Por �m, o adivinho Calcas declarou que os</p><p>deuses tinham falado com ele: Ártemis estava zangada. Uma das criaturas</p><p>selvagens que ela amava, uma lebre, fora morta pelos gregos, junto com seus</p><p>�lhotes, e a única forma de acalmar o vento e garantir uma viagem segura</p><p>até Troia era apaziguar a deusa com o sacrifício de uma donzela de sangue</p><p>real, I�gênia, �lha mais velha do comandante do exército, Agamêmnon. Isso</p><p>foi terrível para todos, mas, para o pai da moça, foi quase insuportável.</p><p>Se eu tiver que matar</p><p>A alegria de minha casa, minha �lha.</p><p>As mãos de um pai</p><p>Manchadas pelos rios escuros do</p><p>Sangue de uma menina</p><p>Morta diante do altar.</p><p>Mesmo assim, Agamêmnon cedeu. Sua reputação militar estava em jogo,</p><p>assim como sua ambição de derrotar Troia e enaltecer a Grécia.</p><p>Ele ousou cometer o ato</p><p>E matar a �lha em prol de uma guerra.</p><p>Mandou um recado para casa chamando I�gênia, escrevendo para a</p><p>esposa que havia organizado para a �lha um casamento grandioso com</p><p>Aquiles, que já demonstrara ser o melhor e maior de todos os líderes.</p><p>Porém, quando a moça chegou para as bodas, foi levada até o altar para ser</p><p>sacri�cada.</p><p>E todas as suas preces, seus gritos de Pai, Pai,</p><p>Sua vida de donzela,</p><p>Tudo isso nada signi�cou para eles,</p><p>Guerreiros selvagens loucos para combater.</p><p>I�gênia morreu, o Vento Norte parou de soprar e os navios gregos</p><p>zarparam por um mar calmo, mas o preço tremendo que tiveram que pagar</p><p>por isso estava fadado a fazer o mal se abater sobre eles algum dia.</p><p>Chegando à foz do Simóis, um dos rios de Troia, o primeiro a</p><p>desembarcar foi Protesilau. Foi um ato de coragem, pois, segundo o oráculo,</p><p>o primeiro a desembarcar seria o primeiro a morrer. Assim, depois de</p><p>Protesilau ser abatido por uma lança troiana, os gregos lhe prestaram</p><p>homenagem como se ele fosse divino e os deuses também o honraram.</p><p>Mandaram Hermes trazê-lo dos mortos para ver mais uma vez sua esposa</p><p>enlutada, Laodâmia. Mas ela não quis abrir mão do marido uma segunda</p><p>vez. Quando ele voltou para o mundo inferior, ela se matou e foi junto.</p><p>As mil embarcações carregavam um grande exército de soldados; os</p><p>gregos tinham um contingente muito forte, mas a cidade de Troia também</p><p>era forte. Seu rei, Príamo, e sua rainha, Hécuba, tinham muitos �lhos</p><p>corajosos para conduzir a guerra e defender as muralhas, em especial Heitor,</p><p>incomparável em nobreza e coragem e suplantado como guerreiro apenas</p><p>por Aquiles, o campeão dos gregos. Ambos sabiam que morreriam antes de</p><p>Troia cair. Aquiles escutara a mãe dizer: “Seu destino é muito breve. Quem</p><p>dera você pudesse agora ser poupado das lágrimas e das preocupações, pois</p><p>não vai durar muito, �lho meu, de vida curta e digno de pena entre os</p><p>homens.” Apesar de nenhuma divindade ter avisado Heitor, ele também</p><p>tinha a mesma certeza. “Sei muito bem em meu coração e em minha alma”,</p><p>disse à esposa, Andrômaca, “que há de chegar o dia em que a sagrada Troia</p><p>será derrotada, e Príamo e o povo de Príamo.” Ambos os heróis lutavam à</p><p>sombra da morte certa.</p><p>Durante nove anos a vitória foi incerta, pendendo ora para um lado, ora</p><p>para outro. Nenhum dos dois campos conseguia vantagem signi�cativa.</p><p>Então uma contenda surgiu entre dois gregos, Aquiles e Agamêmnon, e</p><p>durante algum tempo isso fez a maré virar a favor dos troianos. Mais uma</p><p>vez o motivo foi uma mulher, Criseida, �lha do sacerdote de Apolo, que os</p><p>gregos tinham raptado e entregado a Agamêmnon. O pai foi implorar a</p><p>liberdade da �lha, mas Agamêmnon não quis abrir mão dela. O sacerdote</p><p>então rezou para o poderoso deus a quem servia e Febo Apolo o escutou. De</p><p>sua carruagem de fogo, disparou �echas �amejantes sobre o exército grego e</p><p>os homens adoeceram e morreram, fazendo as piras funerárias arderem dia</p><p>e noite.</p><p>Por �m, Aquiles convocou uma reunião dos líderes. Disse que não</p><p>conseguiriam fazer frente ao mesmo tempo à peste e aos troianos, e que</p><p>precisavam encontrar um jeito de aplacar Apolo ou voltar para casa. Então o</p><p>vidente Calcas se levantou e disse saber a que se devia a raiva do deus, mas</p><p>que estava com medo de falar a menos que Aquiles garantisse sua segurança.</p><p>“Eu garanto”, respondeu Aquiles, “mesmo se você acusar o próprio</p><p>Agamêmnon.” Todos os presentes sabiam o que isso signi�cava; eles sabiam</p><p>como o sacerdote de Apolo tinha sido tratado. Quando Calcas declarou que</p><p>Criseida precisava ser devolvida ao pai, todos os líderes lhe deram razão e</p><p>Agamêmnon, muito bravo, foi obrigado a concordar. “Mas se devo perder</p><p>esta que era o meu prêmio”, disse ele a Aquiles, “quero outra em seu lugar.”</p><p>Assim, depois de Criseida ser devolvida ao pai, Agamêmnon despachou</p><p>dois de seus ajudantes até a tenda de Aquiles para tirar dele seu prêmio, a</p><p>jovem Briseida. Com muita má vontade eles foram e postaram-se diante do</p><p>herói em grave silêncio. Mas Aquiles, sabendo de suas ordens, disse-lhes que</p><p>não eram eles que estavam agindo mal com ele. Podiam levar a moça sem</p><p>nada temer por si, mas, primeiro, que o escutassem jurar perante os deuses e</p><p>os homens que Agamêmnon iria pagar caro por aquilo.</p><p>Naquela noite, a mãe de Aquiles, a ninfa do mar Tétis, de pés prateados,</p><p>apareceu diante do �lho. Estava tão zangada quanto ele. Disse-lhe para não</p><p>ter mais envolvimento algum com os gregos e, com isso, subiu até o céu e</p><p>pediu a Zeus que desse a vitória aos troianos. Zeus relutou muito. A guerra,</p><p>àquela altura, já tinha chegado ao Olimpo e os deuses tinham se voltado uns</p><p>contra os outros. Afrodite, claro, estava do lado de Páris. Hera e Palas Atena,</p><p>claro também, estavam contra ele. Ares, deus da guerra, sempre �cava do</p><p>mesmo lado de Afrodite, enquanto Poseidon, senhor dos mares, favorecia os</p><p>gregos, que, povo do mar, sempre tinham sido bons marinheiros. Apolo</p><p>gostava de Heitor e por causa dele ajudava os troianos, e Ártemis, por ser</p><p>sua irmã, fazia o mesmo. Zeus preferia os troianos de modo geral, mas</p><p>queria permanecer neutro porque Hera se mostrava muito desagradável</p><p>toda vez que ele a contrariava abertamente.</p><p>perdidos de ar olímpio e celestial.</p><p>s gregos não acreditavam que os deuses tivessem criado o Universo.</p><p>Muito pelo contrário: o Universo é que os tinha criado. Antes de</p><p>haver deuses, o Céu e a Terra já tinham se formado. Eram eles os genitores</p><p>primordiais. Os titãs eram seus �lhos, e os deuses, seus netos.</p><p>OS TITÃS E OS DOZE GRANDES DEUSES DO OLIMPO</p><p>Os titãs, frequentemente chamados de deuses antigos, reinavam supremos</p><p>no Universo desde tempos imemoriais. Tinham um tamanho enorme e uma</p><p>força descomunal. Eram muitos, mas só uns poucos aparecem nas histórias</p><p>da mitologia. O mais importante era CRONOS – SATURNO em latim. Ele</p><p>governava os outros titãs até ser destronado pelo �lho Zeus, que tomou o</p><p>poder para si. Os romanos diziam que quando Júpiter, que é como eles</p><p>chamavam Zeus, subiu ao trono, Saturno fugiu para a Itália e inaugurou a</p><p>Idade de Ouro, um tempo de paz e felicidade perfeitas que durou tanto</p><p>quanto seu reinado.</p><p>O Olimpo</p><p>Os outros titãs notáveis eram OCEANO, o rio que supostamente rodeava a</p><p>Terra; sua esposa TÉTIS; HIPÉRION, pai do Sol, da Lua e da aurora;</p><p>MNEMÓSINE, que signi�ca memória; TÊMIS, em geral traduzida como justiça;</p><p>e JÁPETO, importante por causa dos �lhos: ATLAS, que sustentava o mundo</p><p>nos ombros, e PROMETEU, que foi o salvador da humanidade. Dos deuses</p><p>antigos, apenas esses não foram banidos com a chegada de Zeus, mas</p><p>assumiram um lugar menor.</p><p>Os doze grandes olímpios eram os mais importantes dos deuses que</p><p>sucederam aos titãs. Eram chamados olímpios porque seu lar era o Olimpo.</p><p>Mas o que era o Olimpo não é fácil de dizer. Não há dúvida de que, no</p><p>início, se supunha que fosse o topo de uma montanha, em geral identi�cada</p><p>como a mais alta montanha da Grécia, o monte Olimpo, na Tessália,</p><p>nordeste da Grécia. Mas mesmo no mais antigo poema grego, a Ilíada, essa</p><p>ideia já começa a dar lugar à ideia de um Olimpo situado numa região</p><p>misteriosa, muito acima de todas as montanhas da Terra. Num dos trechos</p><p>da Ilíada, Zeus fala com os deuses a partir do “pico mais alto do Olimpo de</p><p>muitos cimos”, claramente uma montanha. Mas pouco depois ele diz que, se</p><p>quisesse, poderia pendurar a terra e o mar em um dos píncaros do Olimpo,</p><p>claramente não mais uma montanha. Mesmo assim, não se trata do céu.</p><p>Homero faz Poseidon dizer que governa o mar; Hades, os mortos; Zeus, o</p><p>céu, mas o Olimpo é comum a todos os três.</p><p>Fosse o que fosse, a entrada do Olimpo era um imenso portão de nuvens</p><p>protegido pelas Estações. Lá dentro �cavam as moradas dos deuses, onde</p><p>eles viviam, dormiam e se banqueteavam de ambrosia e néctar ouvindo a</p><p>lira de Apolo. Um lar abençoado e perfeito. Segundo Homero, nenhum</p><p>vento jamais sacode a paz tranquila do Olimpo; lá nunca há chuva ou neve;</p><p>mas o �rmamento sem nuvens se estende à sua volta por todos os lados e a</p><p>branca glória da luz solar se espalha por suas paredes.</p><p>Os doze olímpios formavam uma família divina:</p><p>(1) ZEUS (JÚPITER), o chefe; em seguida seus dois irmãos, (2) POSEIDON</p><p>(NETUNO) e (3) HADES, também chamado de PLUTÃO; (4) HÉSTIA (VESTA),</p><p>sua irmã; (5) HERA (JUNO), esposa de Zeus e (6) ARES (MARTE), �lho do</p><p>casal; os �lhos de Zeus: (7) ATENA (MINERVA), (8) APOLO, (9) AFRODITE</p><p>(VÊNUS), (10) HERMES (MERCÚRIO) e (11) ÁRTEMIS (DIANA); e o �lho de Hera</p><p>(12) HEFESTO (VULCANO), que às vezes também é contado como �lho de</p><p>Zeus.</p><p>Zeus (Júpiter)</p><p>Zeus e seus irmãos decidiram na sorte seu quinhão do Universo. A Poseidon</p><p>coube o mar. A Hades, o mundo dos mortos. Zeus se tornou o líder</p><p>supremo. Ele era o senhor do céu, o deus da chuva e o domador das nuvens,</p><p>que brandia o temível raio. Seu poder era maior do que o de todas as outras</p><p>divindades reunidas. Na Ilíada, ele diz à família: “Eu sou o mais poderoso de</p><p>todos. Façam um teste para saber. Amarrem uma corda de ouro no céu e</p><p>segurem, todos vocês, deuses e deusas. Vocês não conseguiriam derrubar</p><p>Zeus. Mas, se eu os quisesse derrubar, eu o faria. Amarraria a corda num dos</p><p>picos do Olimpo e tudo �caria pendurado no ar, sim, a própria terra e o mar</p><p>também.”</p><p>Apesar disso, ele não era onipotente, tampouco onisciente. Podia ser</p><p>contrariado e enganado. Poseidon o engana na Ilíada, assim como Hera. Às</p><p>vezes, também o misterioso poder do Destino é mencionado como sendo</p><p>mais forte do que ele. Homero faz Hera lhe perguntar com desdém se ele</p><p>pretende livrar da morte um homem que o Destino condenou.</p><p>Zeus é representado se apaixonando por sucessivas mulheres e</p><p>recorrendo a todo tipo de artimanha para esconder da esposa sua</p><p>in�delidade. A explicação para o porquê de tais atos serem atribuídos ao</p><p>mais majestoso dos deuses, segundo os estudiosos, é que o Zeus das canções</p><p>e das histórias foi criado como uma combinação de muitos deuses. Quando</p><p>o culto a ele chegava a uma cidade em que já houvesse um líder divino, os</p><p>dois eram lentamente fundidos num só. A esposa do deus anterior era,</p><p>então, transferida para Zeus. O resultado, porém, não foi muito bom e os</p><p>gregos tardios não apreciavam esses intermináveis casos extraconjugais.</p><p>Ainda assim, mesmo nos primeiros registros, Zeus tinha grandeza. Na</p><p>Ilíada, Agamêmnon roga: “Zeus, o mais glorioso, o mais grandioso, deus da</p><p>nuvem de tempestade, tu que resides no céu.” Zeus também exigia dos</p><p>homens não apenas sacrifício, mas ações corretas. O exército grego em Troia</p><p>é avisado que “O pai Zeus nunca ajuda os mentirosos nem aqueles que</p><p>quebram seus juramentos”. Esses dois conceitos em relação a ele, o rasteiro e</p><p>o elevado, persistiram lado a lado por muito tempo.</p><p>Seu escudo era a Égide, terrível de se contemplar; sua ave era a águia; sua</p><p>árvore, o carvalho. Seu oráculo era Dodona, na terra dos carvalhos. A</p><p>vontade de Zeus era revelada pelo farfalhar das folhas de carvalho, que os</p><p>sacerdotes interpretavam.</p><p>Hera (Juno)</p><p>Esposa e irmã de Zeus. Foi criada pelos titãs Oceano e Tétis. Era a protetora</p><p>do matrimônio e cuidava em especial das mulheres casadas. Há muito</p><p>pouco de atraente no retrato que dela pintam os poetas. Ela é de fato</p><p>chamada, num poema primitivo:</p><p>Hera do trono dourado, rainha entre os imortais,</p><p>A mais bela dentre todos, gloriosa dama</p><p>Venerada por todos os abençoados do alto Olimpo,</p><p>E honrada até como Zeus, senhor do trovão.</p><p>Mas, quando qualquer relato a seu respeito entra em detalhes, podemos</p><p>vê-la preocupada sobretudo em punir as muitas mulheres pelas quais Zeus</p><p>se apaixonava, mesmo quando elas cediam apenas porque ele as coagia ou</p><p>ludibriava. Para Hera, não fazia diferença quão relutante ou inocente</p><p>qualquer uma delas fosse: ela tratava todas da mesma forma. Sua raiva</p><p>implacável as perseguia, bem como a seus �lhos. Hera nunca esquecia uma</p><p>ofensa. A guerra de Troia teria terminado em paz honrada, com os dois</p><p>adversários invictos, não fosse seu ódio por um troiano que havia</p><p>considerado outra deusa mais bonita do que ela. A ofensa por sua beleza</p><p>desprezada perdurou nela até Troia ser destruída.</p><p>Numa história importante, a busca do velocino de ouro, Hera é a</p><p>graciosa protetora dos heróis e inspiradora de atos de heroísmo, mas isso</p><p>não acontece em nenhum outro relato. Não obstante, a deusa era venerada</p><p>em todos os lares. As mulheres casadas recorriam a ela quando precisavam</p><p>de ajuda. Ilítia, que amparava as parturientes, era sua �lha.</p><p>A vaca e o pavão eram sagrados para Hera. Argos era sua cidade</p><p>preferida.</p><p>Poseidon (Netuno)</p><p>Era quem governava os mares, irmão de Zeus e segundo deus mais</p><p>importante depois deste. Os gregos de ambos os lados do Egeu eram</p><p>marinheiros e o deus do mar tinha para eles suma importância. A esposa de</p><p>Poseidon era An�trite, neta do titã Oceano. Poseidon tinha um</p><p>esplendoroso palácio nas profundezas do mar, mas podia ser encontrado</p><p>com mais frequência no Olimpo.</p><p>Além de ser o senhor dos mares, foi ele quem deu ao homem o primeiro</p><p>cavalo, e era honrado tanto por uma coisa quanto pela outra.</p><p>Senhor Poseidon, de ti vem o nosso orgulho,</p><p>Os fortes cavalos, os jovens cavalos, e também o comando das</p><p>profundezas.</p><p>Era ele quem controlava a tempestade e a calmaria.</p><p>Mas não pôde resistir a Tétis.</p><p>Teve problemas com Hera, que adivinhou, como de costume, a motivação</p><p>do marido. Zeus por �m precisou dizer que iria lhe bater se não parasse de</p><p>falar. Hera então se calou, mas continuou a pensar em como poderia ajudar</p><p>os gregos e passar por cima de Zeus.</p><p>O plano engendrado por Zeus era simples. Ele sabia que, sem Aquiles, os</p><p>gregos eram inferiores aos troianos e mandou um sonho mentiroso para</p><p>Agamêmnon prometendo-lhe a vitória se ele atacasse. Enquanto Aquiles</p><p>continuava em sua tenda, seguiu-se uma batalha violenta, a mais árdua</p><p>travada até então. Na muralha de Troia, o velho rei Príamo e os outros</p><p>anciãos, muito experientes em relação à guerra, observavam o combate.</p><p>Helena, o motivo de todo aquele sofrimento e morte, foi ao encontro deles,</p><p>mas, ao vê-la, eles não conseguiram sentir culpa alguma. “Os homens</p><p>precisam lutar por mulheres como ela”, disseram uns para os outros, “pois</p><p>seu rosto parece o de um espírito imortal.” Helena �cou ao lado deles e foi</p><p>lhes dizendo o nome deste ou daquele herói grego, até que, para espanto dos</p><p>homens, a batalha cessou. Os exércitos recuaram, cada um para um lado, e,</p><p>no espaço entre eles, Páris e Menelau �caram frente a frente. Obviamente</p><p>fora decidido que os dois maiores interessados decidissem a disputa entre si.</p><p>Páris atacou primeiro, mas Menelau aparou a lança veloz com seu</p><p>escudo e atirou a sua. A arma rasgou a túnica de Páris, mas sem o ferir.</p><p>Menelau sacou a espada, agora sua única arma, mas, ao fazê-lo, ela lhe caiu</p><p>das mãos, partida. Destemido, ainda que desarmado, ele partiu para cima de</p><p>Páris, agarrou-o pela crista do elmo e o tirou do chão. Tê-lo-ia arrastado até</p><p>os gregos, vitorioso, se Afrodite não tivesse intervindo. A deusa arrancou a</p><p>correia que prendia o elmo, fazendo-o se soltar na mão de Menelau. Quanto</p><p>a Páris, que não tinha combatido a não ser para atirar a lança, a deusa o</p><p>envolveu numa nuvem e o levou de volta para Troia.</p><p>Enfurecido, Menelau percorreu as �leiras de troianos em busca de Páris,</p><p>e nenhum homem o teria ajudado, pois todos detestavam Páris, mas este</p><p>tinha sumido e ninguém sabia como nem para onde. Agamêmnon então se</p><p>dirigiu aos dois exércitos, declarou Menelau vencedor e ordenou que os</p><p>troianos devolvessem Helena. Era justo e os troianos teriam concordado não</p><p>fosse a intervenção de Palas Atena, a mando de Hera. Hera estava decidida a</p><p>não deixar a guerra acabar antes de Troia estar em ruínas. Palas Atena então</p><p>desceu até o campo de batalha e convenceu o coração tolo do troiano</p><p>Pândaro a desrespeitar a trégua e disparar uma �echa em Menelau. Ele</p><p>assim o fez e o feriu, só de leve, mas os gregos, enfurecidos com a traição, se</p><p>voltaram contra os troianos e o combate recomeçou. Terror, Destruição e</p><p>Con�ito, cuja fúria nunca arrefece, todos amigos do assassino deus da</p><p>guerra, estavam lá para incentivar os homens a massacrar uns aos outros.</p><p>Ouviram-se então o som dos gemidos dos feridos e o som do triunfo dos</p><p>matadores e a terra se encharcou de sangue.</p><p>Do lado grego, agora sem Aquiles, os dois maiores guerreiros foram Ajax</p><p>e Diomedes. Eles combateram gloriosamente naquele dia e deixaram diante</p><p>de si muitos troianos abatidos. O melhor e mais corajoso depois de Heitor, o</p><p>príncipe Eneias, quase morreu pelas mãos de Diomedes. Eneias tinha</p><p>sangue mais do que real: era �lho da própria Afrodite; quando Diomedes o</p><p>feriu, a deusa desceu depressa para o campo de batalha de modo a salvá-lo.</p><p>Tomou-o em seus braços macios, mas Diomedes, sabendo que ela era uma</p><p>deusa covarde, e não uma daquelas que, como Palas Atena, são exímias nas</p><p>artes do combate, pulou para cima dela e a feriu na mão. Afrodite gritou,</p><p>deixou Eneias cair e, chorando de dor, voltou para o Olimpo, onde Zeus,</p><p>sorrindo ao ver a deusa amante do riso em prantos, ordenou-lhe que �casse</p><p>longe do combate e lembrasse que a sua arte era a arte do amor, não a da</p><p>guerra. Apesar de a mãe não ter conseguido ajudá-lo, Eneias não morreu.</p><p>Apolo o envolveu numa nuvem e o levou para a sagrada Pérgamo, o lugar</p><p>santo de Troia, onde Ártemis o curou da ferida.</p><p>Mas a raiva de Diomedes não cedeu e ele seguiu fazendo estragos entre</p><p>os troianos até se ver cara a cara com Heitor. Então, para sua consternação,</p><p>ele também viu Ares. Todo ensanguentado, o assassino deus da guerra</p><p>estava lutando ao lado de Heitor. Ao ver isso, Diomedes estremeceu e gritou</p><p>para os gregos recuarem, só que devagar, e com o rosto virado para os</p><p>troianos. Hera então se enfureceu. Conduziu seus cavalos depressa até o</p><p>Olimpo e perguntou a Zeus se podia expulsar do campo de batalha Ares,</p><p>aquele �agelo dos homens. Zeus, que gostava tão pouco de Ares quanto</p><p>Hera, embora fosse seu �lho, respondeu sem hesitar que sim. Hera desceu</p><p>depressa para se postar ao lado de Diomedes e instou-o a atacar o terrível</p><p>deus sem temor. O herói, ao ouvir isso, sentiu o coração se encher de alegria.</p><p>Correu para cima de Ares e arremessou sua lança. Palas Atena fez a arma</p><p>acertar o alvo e ela se cravou no corpo de Ares. O deus da guerra urrou tão</p><p>alto quanto 10 mil homens em combate, e esse som terrível fez o exército</p><p>inteiro, tanto gregos como troianos, tremer.</p><p>Ares, na verdade um truculento incapaz de suportar o que ele próprio</p><p>causava a incontáveis legiões de humanos, subiu correndo até Zeus no</p><p>Olimpo para se queixar amargurado da violência de Palas Atena. Zeus,</p><p>porém, o encarou com severidade, disse-lhe que ele era tão insuportável</p><p>quanto a mãe e o mandou parar de reclamar. Sem Ares, entretanto, os</p><p>troianos foram obrigados a recuar. Diante dessa crise, um dos irmãos de</p><p>Heitor, que soube detectar a vontade divina, instou o herói troiano a ir bem</p><p>depressa até a cidade dizer à rainha, sua mãe, para oferecer a Palas Atena os</p><p>mais belos trajes que possuísse e implorar a misericórdia da deusa. Heitor</p><p>percebeu a sabedoria desse conselho e atravessou correndo os portões do</p><p>palácio, onde sua mãe fez tudo conforme ele pediu. A rainha escolheu um</p><p>traje tão esplêndido que brilhava como uma estrela e, ao pousá-lo sobre os</p><p>joelhos da deusa, pediu: “Palas Atena, senhora, poupe a cidade e as esposas</p><p>dos troianos e as crianças.” Mas a deusa negou o pedido.</p><p>Quando voltou ao combate, Heitor virou-se para ver novamente, talvez</p><p>pela última vez, a esposa que tanto amava, Andrômaca, e o �lho, Astíanax.</p><p>Encontrou-a na muralha, para onde tinha ido, aterrorizada, observar os</p><p>homens em combate ao saber que os troianos estavam batendo em retirada.</p><p>Com ela estava uma criada que segurava o menino pequeno. Heitor sorriu e</p><p>os �tou em silêncio, mas Andrômaca segurou sua mão e chorou. “Meu</p><p>querido senhor”, disse ela, “você que é para mim pai, mãe e irmão além de</p><p>marido, �que aqui conosco. Não faça de mim viúva nem do seu �lho órfão.”</p><p>Heitor recusou com toda a delicadeza o seu pedido. Não podia ser um</p><p>covarde, falou. Cabia a ele combater sempre à frente do exército. Mas que</p><p>Andrômaca soubesse que ele jamais esqueceria qual seria a dor dela quando</p><p>ele morresse. Era esse o pensamento que o atormentava mais do que tudo,</p><p>mais do que suas muitas outras preocupações. Ele se virou para ir embora,</p><p>mas antes estendeu os braços para o �lho. Apavorado, o menino recuou,</p><p>com medo do elmo e de sua assustadora crista a balançar. Rindo, Heitor</p><p>tirou o elmo da cabeça. Então, pegando o �lho no colo, acariciou-o e rogou:</p><p>“Ó Zeus, que no futuro os homens possam dizer do meu �lho, quando ele</p><p>voltar do combate: ‘Ele é muito maior do que foi seu pai!’”</p><p>Ele então entregou o menino à esposa e Andrômaca o pegou, sorrindo,</p><p>mas também chorando. E Heitor teve pena dela, tocou-a com carinho e lhe</p><p>disse: “Querida, não �que tão triste. O destino precisa acontecer, mas,</p><p>contrariando meu destino, homem algum poderá me matar.” Então,</p><p>pegando o elmo de volta, ele os deixou e ela foi para casa olhando muitas</p><p>vezes na sua direção e chorando copiosamente.</p><p>De volta ao campo de batalha, Heitor estava ansioso para lutar e durante</p><p>algum tempo teve mais sorte. Zeus agora tinha se lembrado</p><p>Ele ordenava, e o vento da tormenta se erguia</p><p>E as ondas do mar.</p><p>Mas, quando ele passeava em seu carro dourado sobre as águas, o rugir</p><p>das ondas se aquietava e uma paz tranquila acompanhava suas rodas</p><p>silenciosas.</p><p>Poseidon era frequentemente chamado de “aquele que abala a terra” e</p><p>era sempre retratado portando seu tridente – uma lança de três pontas com</p><p>a qual sacudia e destroçava tudo que quisesse.</p><p>Além dos cavalos, tinha alguma ligação com os touros, mas o touro</p><p>também era ligado a muitos outros deuses.</p><p>Hades (Plutão)</p><p>Era o terceiro irmão entre os olímpios e tinha sob seu comando o mundo</p><p>inferior e o domínio dos mortos. Era chamado também de Plutão, o deus da</p><p>riqueza, dos metais preciosos ocultos debaixo da terra. Tanto romanos</p><p>quanto gregos o chamavam por esse nome, mas muitas vezes o traduziam</p><p>como Dis, a palavra latina que signi�ca rico. Hades tinha um famoso elmo</p><p>ou capacete que tornava invisível quem o usasse. Raramente saía de seu</p><p>reino escuro para visitar o Olimpo ou a terra, e também não era incentivado</p><p>a fazê-lo. Não era um visitante bem-vindo. Era impiedoso, inexorável, mas</p><p>justo; um deus terrível, mas não um deus mau.</p><p>Sua esposa era Perséfone (Proserpina), que ele raptou da terra e</p><p>transformou em rainha do mundo inferior.</p><p>Hades era o deus dos mortos, mas não a Morte em si, que os gregos</p><p>chamavam de Tânatos e os romanos, de Orcus.</p><p>Palas Atena (Minerva)</p><p>Era �lha somente de Zeus. Mãe alguma a gerou. Ela brotou da cabeça do pai</p><p>já adulta e de armadura. No primeiro relato a seu respeito, a Ilíada, Palas</p><p>Atena é uma deusa do combate, valorosa e implacável, mas, em outros</p><p>textos, só guerreia para defender o Estado e o lar de inimigos externos. Era</p><p>proeminentemente a deusa da cidade, protetora da vida civilizada, do</p><p>artesanato e da agricultura; foi a inventora das rédeas e quem primeiro</p><p>domou cavalos para os homens usarem.</p><p>Palas Atena era a �lha preferida de Zeus. Ele con�ava nela para carregar</p><p>a temível Égide, seu escudo, e sua arma devastadora, o raio.</p><p>A palavra usada com mais frequência para descrevê-la é “de olhos</p><p>cinzentos”, ou, como a expressão às vezes é traduzida, “de olhos faiscantes”.</p><p>Das três deusas virgens, ela era a principal, chamada de Donzela, Partenos, e</p><p>seu templo era o Partenon. Nos poemas tardios, ela é a personi�cação da</p><p>sabedoria, da razão e da pureza.</p><p>Atenas era sua cidade especial; a oliveira, por ela criada, era sua árvore; a</p><p>coruja era sua ave.</p><p>Apolo</p><p>Filho de Zeus e Leto (Latona), nasceu na pequena ilha de Delos. Já foi</p><p>chamado de “o mais grego de todos os deuses”. Na poesia grega, Apolo é</p><p>uma bela �gura, o músico talentoso que deleita o Olimpo ao tocar sua lira</p><p>de ouro; senhor também do arco de prata, o deus arqueiro de mira certeira;</p><p>o curador também, o primeiro a ensinar aos homens a arte da cura. Mais do</p><p>que esses bons e belos atributos, Apolo é o deus da luz, em quem não existe</p><p>escuridão alguma, sendo, portanto, o deus da verdade. Nenhuma palavra</p><p>falsa jamais lhe sai da boca.</p><p>Ó Febo, do teu trono da verdade,</p><p>Da tua morada no coração do mundo</p><p>Tu falas aos homens.</p><p>Por decreto de Zeus, nenhuma mentira existe ali,</p><p>Nenhuma sombra a ocultar a verdadeira palavra.</p><p>Zeus selou, com eterna correção,</p><p>A honra de Apolo para que todos con�em,</p><p>Com inabalável fé, quando ele fala.</p><p>Delfos, situada à sombra do imenso monte Parnaso, era onde �cava o</p><p>oráculo de Apolo, tendo, portanto, um papel importante na mitologia.</p><p>Castália era sua fonte sagrada; Ce�so, o seu rio. Considerado o centro do</p><p>mundo, atraía muitos peregrinos, tanto da Grécia como de outros países.</p><p>Como santuário, Delfos não tinha rival. As respostas para as perguntas feitas</p><p>por quem buscava ansiosamente a verdade eram dadas por uma sacerdotisa</p><p>que entrava em transe antes de falar. O transe era supostamente causado por</p><p>um vapor que saía de uma profunda fenda na rocha sobre a qual �cava seu</p><p>assento, um banquinho de três pernas, o tripé.</p><p>Apolo era chamado de deliano por causa de Delos, sua ilha natal, e de</p><p>pítio por ter matado a serpente Píton, que antes vivia nas cavernas do monte</p><p>Parnaso. Píton era um monstro assustador e a luta foi dura, mas, no �m, as</p><p>�echas certeiras do deus garantiram a vitória. Outro nome dado com</p><p>frequência a ele era “o lício”, que dizem signi�car deus-lobo, deus da luz ou</p><p>deus da Lícia. Na Ilíada, ele é chamado de senhor dos ratos, mas ninguém</p><p>sabe se é porque protegia os ratos ou porque os destruía. Muitas vezes era</p><p>também o deus-sol. Seu nome, Febo, signi�ca brilhante ou reluzente. Mais</p><p>estritamente falando, porém, o deus-sol era Hélios, �lho do titã Hipérion.</p><p>Em Delfos, Apolo era puramente uma força de bondade, um vínculo</p><p>direto entre o divino e o humano, que guiava os homens para fazê-los</p><p>conhecer a verdade divina, mostrando-lhes como viver em paz com os</p><p>deuses; o puri�cador também, capaz de limpar até mesmo aqueles</p><p>maculados pelo sangue de parentes. Mesmo assim, alguns relatos a seu</p><p>respeito o mostram como um deus impiedoso e cruel. Como acontece com</p><p>todos os deuses, dois conceitos brigavam dentro de Apolo: um primitivo e</p><p>selvagem; outro, belo e poético. Nele resta apenas um pouco do primitivo.</p><p>Sua árvore era o loureiro. Muitas criaturas eram sagradas para ele, as</p><p>principais sendo o gol�nho e o corvo.</p><p>Ártemis (Diana</p><p>Chamada também de Cíntia, pelo lugar onde nasceu,</p><p>O monte Cíntio, em Delos.</p><p>Irmã gêmea de Apolo, �lha de Zeus e Leto. Era uma das três deusas</p><p>virgens do Olimpo:</p><p>A dourada Afrodite, que instila amor em toda a criação,</p><p>Não é capaz de dobrar ou cativar três corações: a pura donzela Vesta,</p><p>Atena dos olhos cinzentos, que só se importa com a guerra e o ofício</p><p>dos artesãos,</p><p>Ártemis, amante das matas e da caça selvagem nas montanhas.</p><p>Ártemis era a senhora da vida selvagem, caçadora-chefe dos deuses,</p><p>cargo estranho para uma mulher. Como boa caçadora, tomava cuidado para</p><p>proteger os jovens; por toda parte era ela a “protetora da viçosa juventude”.</p><p>Apesar disso, numa daquelas contradições espantosas tão comuns na</p><p>mitologia, ela impediu a frota grega de zarpar rumo a Troia até os</p><p>marinheiros lhe sacri�carem uma donzela. Em muitas outras histórias</p><p>também, ela é cruel e vingativa. Por outro lado, quando as mulheres tinham</p><p>uma morte rápida e indolor, dizia-se que tinham sido atingidas por suas</p><p>�echas de prata.</p><p>Assim como Febo era o Sol, Ártemis era a Lua, chamada de Febe ou</p><p>Foibe e de Selene (Luna em latim). Nenhum dos dois nomes lhe pertencia</p><p>originalmente. Febe era uma titã, uma deusa antiga, assim como Selene, de</p><p>fato uma deusa-lua, mas sem ligação com Apolo. Selene era irmã de Hélios,</p><p>o deus-sol, com o qual Apolo era confundido.</p><p>Nos poetas tardios, Ártemis é identi�cada com Hécate. Ela é “a deusa de</p><p>três formas”: Selene no céu, Ártemis na Terra, Hécate no mundo inferior e</p><p>no superior, quando este se encontra envolto pela escuridão. Hécate era a</p><p>deusa da escuridão da lua, as noites negras em que a lua está oculta. Era</p><p>associada aos feitos noturnos, a deusa das encruzilhadas, que eram</p><p>consideradas lugares fantasmagóricos de magia maligna. Uma divindade</p><p>terrível,</p><p>Hécate do inferno</p><p>Com poder para estilhaçar tudo que teima.</p><p>Ouçam! Ouçam! Seus cães ladram pela cidade.</p><p>Onde as estradas se cruzarem, lá ela estará.</p><p>Essa é uma estranha transformação da bela caçadora a correr pela</p><p>�oresta, para a lua que tudo embeleza com sua luz, para a pura deusa-</p><p>donzela para quem</p><p>Aqueles totalmente castos de espírito</p><p>Podem colher folhas, frutas e �ores.</p><p>Os não castos, jamais.</p><p>É em Ártemis que se revela de modo mais vívido a ambivalência entre o</p><p>bem e o mal, aparente em todas as divindades.</p><p>O cipreste era sagrado para ela, assim como todos os animais selvagens,</p><p>mas, em especial, o cervo.</p><p>Afrodite (Vênus)</p><p>Deusa do amor e da beleza, que a todos enfeitiçava, fossem divinos, fossem</p><p>humanos; a deusa que adorava rir, que ria com doçura ou com zombaria</p><p>daqueles que seu charme tinha conquistado; a deusa irresistível, que roubava</p><p>até a sensatez dos sábios.</p><p>Na Ilíada, ela é �lha</p><p>de Zeus e Dione, mas nos poemas tardios diz-se que</p><p>nasceu da espuma do mar, e entendia-se que o signi�cado de seu nome era</p><p>“nascida da espuma”. Aphros, em grego, signi�ca espuma. Esse nascimento</p><p>marinho ocorreu próximo a Citera, de onde ela foi levada pelas ondas até</p><p>Chipre. Desde então, ambas as ilhas se tornaram eternamente sagradas para</p><p>ela, que era chamada de Citérea ou de Cíprica com tanta frequência quanto</p><p>por seu verdadeiro nome.</p><p>Um dos hinos homéricos, ao chamá-la de “bela e dourada deusa”, diz a</p><p>seu respeito:</p><p>O sopro do vento oeste a transportou</p><p>Por sobre o mar ruidoso</p><p>Desde a delicada espuma</p><p>Até Chipre, sua ilha rodeada de ondas.</p><p>E as Horas com guirlandas de ouro</p><p>Receberam-na com alegria.</p><p>Vestiram-na com trajes imortais</p><p>E levaram-na até os deuses.</p><p>Eles foram tomados de assombro ao verem</p><p>Citérea de violeta coroada.</p><p>Os romanos escreveram sobre Vênus da mesma forma. Com ela vem a</p><p>beleza. Os ventos e as nuvens de tempestade fogem dela; lindas �ores</p><p>enfeitam a terra; as ondas do mar riem; ela se move numa luz radiosa. Sem</p><p>ela não há alegria nem beleza em lugar algum. Esse é o seu retrato que os</p><p>poetas mais gostam de pintar.</p><p>Mas Afrodite também tinha outro lado. Era natural que fosse retratada</p><p>de modo pouco lisonjeiro na Ilíada, que tem por tema a batalha de heróis.</p><p>Nela Afrodite aparece como uma criatura frágil, fraca, que um mortal não</p><p>deve temer atacar. Em poemas posteriores, ela é muitas vezes mostrada</p><p>como traiçoeira e maliciosa, exercendo sobre os homens um poder mortal e</p><p>destruidor.</p><p>Na maioria das histórias Afrodite é a esposa de Hefesto (Vulcano), o feio</p><p>e coxo deus da forja.</p><p>Sua árvore era a murta; sua ave, a pomba, e às vezes também o pardal e o</p><p>cisne.</p><p>Hermes (Mercúrio)</p><p>Seu pai era Zeus e sua mãe Maia, �lha de Atlas. Por causa de uma estátua</p><p>muito popular, sua aparência nos é bem mais conhecida do que a de</p><p>qualquer outro deus. Hermes era gracioso e tinha os movimentos rápidos.</p><p>Calçava sandálias aladas; seu chapéu de copa baixa e sua varinha mágica, o</p><p>caduceu, também tinham asas. Ele era o mensageiro de Zeus, que “voa</p><p>rápido como o pensamento para cumprir suas ordens”.</p><p>De todos os deuses, Hermes era o mais astuto e o mais ardiloso; na</p><p>verdade, ele era o mestre dos ladrões, que iniciou sua carreira antes de</p><p>completar um dia de vida.</p><p>O bebê nasceu no romper do dia</p><p>E antes de cair a noite já tinha roubado</p><p>Os rebanhos de Apolo.</p><p>Zeus o obrigou a devolvê-los e Hermes conquistou o perdão de Apolo</p><p>dando-lhe de presente a lira que acabara de inventar, fabricada com o casco</p><p>de uma tartaruga. Talvez houvesse alguma conexão entre essa sua primeira</p><p>história e o fato de ele ser o deus do comércio e do mercado, protetor dos</p><p>mercadores.</p><p>Contrastando grandemente com essa ideia sobre ele, Hermes era</p><p>também o guia solene dos mortos, o divino mensageiro que conduzia as</p><p>almas até sua derradeira morada.</p><p>Ele aparece com mais frequência do que qualquer outro deus nas</p><p>histórias da mitologia.</p><p>Ares (Marte)</p><p>Deus da guerra, �lho de Zeus e de Hera e, segundo Homero, detestado por</p><p>ambos. De fato, Ares é alvo de ódio ao longo de toda a Ilíada, mesmo esta</p><p>sendo um poema de guerra. Ocasionalmente os heróis “se regozijam no</p><p>deleite da batalha de Ares”, mas, com muito mais frequência, se alegram por</p><p>terem escapado “à fúria do implacável deus”. Homero o chama de assassino,</p><p>manchado de sangue, a maldição personi�cada dos mortais; e ele,</p><p>estranhamente, é também um covarde, que uiva de dor e foge quando ferido.</p><p>Apesar disso, Ares tem no campo de batalha um séquito de ajudantes</p><p>capazes de inspirar con�ança em qualquer um. Lá está sua irmã Éris, que</p><p>signi�ca discórdia, bem como seu �lho, Con�ito. A deusa da guerra, Ênio –</p><p>Bellona, em latim –, caminha ao seu lado, e junto com ela estão Terror</p><p>(Deimos), Tremor e Pânico (Fobos). Conforme avançam, o som dos</p><p>gemidos se ergue em seu encalço e o sangue escorre pela terra.</p><p>Os romanos gostavam mais de Marte do que os gregos de Ares. Para</p><p>eles, Marte nunca foi a divindade mesquinha e queixosa da Ilíada, mas sim</p><p>um deus magní�co de armadura reluzente, temível, invencível. Os</p><p>guerreiros do grande poema heroico latino Eneida, longe de se regozijarem</p><p>por dele escapar, se regozijam ao ver que estão prestes a cair “no celebrado</p><p>campo de Marte”. Eles “acorrem à morte gloriosa” e consideram “doce</p><p>morrer em combate”.</p><p>Ares aparece pouco na mitologia. Numa história, ele é amante de</p><p>Afrodite e exposto ao desprezo dos olímpios pelo marido dela, Hefesto, mas</p><p>na maior parte do tempo pouco mais é do que um símbolo da guerra. Não</p><p>tem uma personalidade distinta como Hermes, Hera ou Apolo.</p><p>Ares não tinha cidades em que fosse venerado. Os gregos diziam</p><p>vagamente que ele vinha da Trácia, terra de um povo rude e valente na</p><p>região nordeste da Grécia. Seu pássaro é o abutre. O cachorro foi injustiçado</p><p>por ser escolhido como seu animal.</p><p>Hefesto (Vulcano e Mulcíber)</p><p>Deus do fogo, às vezes descrito como �lho de Zeus e Hera, outras vezes</p><p>apenas de Hera, que o deu à luz como vingança por Zeus ter dado à luz</p><p>Palas Atena. Entre os belos e perfeitos imortais, apenas ele era feio. Além de</p><p>feio, era também coxo. Num trecho da Ilíada, Hefesto diz que sua</p><p>desavergonhada mãe, ao ver que ele tinha nascido deformado, atirou-o do</p><p>céu; em outro trecho, ele declara que foi Zeus quem fez isso, zangado por ele</p><p>ter tentado defender Hera. Essa segunda história é a mais conhecida por</p><p>causa dos famosos versos de Milton. Segundo eles, Mulcíber foi</p><p>Arremessado por um raivoso Júpiter</p><p>Por cima das ameias de cristal; caiu de manhã</p><p>Até o meio-dia, do meio-dia até a noite orvalhada,</p><p>Um dia de verão, e com o sol poente</p><p>Despencou do �rmamento qual estrela cadente</p><p>Sobre Lemnos, a ilha do Egeu.</p><p>Esses acontecimentos, porém, supostamente ocorreram num passado</p><p>distante. Em Homero, Hefesto não corre perigo de ser expulso do Olimpo; é</p><p>muito respeitado por lá, sendo o artesão dos imortais, seu armeiro e ferreiro,</p><p>aquele que fabrica suas moradias e seus móveis, bem como suas armas. Em</p><p>sua o�cina, Hefesto tem criadas que forjou em ouro, capazes de se moverem</p><p>e de ajudá-lo em seu trabalho.</p><p>Nos poetas tardios, diz-se com frequência que a forja de Hefesto �ca</p><p>debaixo deste ou daquele vulcão, causando erupções.</p><p>Sua esposa é uma das três Graças na Ilíada, chamada Aglaia em</p><p>Hesíodo; na Odisseia, sua esposa é Afrodite.</p><p>Hefesto era um deus bom, amante da paz, benquisto tanto na Terra</p><p>como no Olimpo. Junto com Palas Atena, era importante na vida na cidade.</p><p>Os dois eram os patronos do artesanato, arte que, junto com a agricultura,</p><p>forma a base da civilização; ele era o protetor dos ferreiros como ela era dos</p><p>tecelões. Quando as crianças eram formalmente recebidas na organização da</p><p>cidade, o deus da cerimônia era Hefesto.</p><p>Héstia (Vesta)</p><p>Irmã de Zeus e, assim como Palas Atena e Ártemis, uma deusa virgem. Não</p><p>tem personalidade distinta nem papel ativo nos mitos. Era a deusa do lar,</p><p>símbolo da casa, em volta da qual o bebê recém-nascido devia ser carregado</p><p>antes de ser recebido na família. Toda refeição começava e terminava com</p><p>uma oferenda para Héstia.</p><p>Héstia, em todas as moradas de homens e imortais</p><p>És a mais honrada, a quem primeiro e por último</p><p>Se oferece devidamente, nos banquetes, o doce vinho.</p><p>Nunca sem ti deuses ou mortais podem festejar.</p><p>Cada cidade tinha também uma fogueira pública em homenagem a</p><p>Héstia, a qual nunca deixavam se apagar. Se alguma colônia fosse fundada,</p><p>os colonos levavam consigo brasas do fogo da cidade-mãe com as quais</p><p>acendiam o fogo da nova cidade.</p><p>Em Roma, o fogo de Vesta era vigiado por seis sacerdotisas virgens</p><p>chamadas vestais.</p><p>OS DEUSES MENORES DO OLIMPO</p><p>Havia outras divindades olímpias além dos doze deuses mais importantes. A</p><p>principal era o deus do amor, EROS (Cupido em latim). Homero nada sabe a</p><p>seu respeito, mas para Hesíodo ele é</p><p>O mais belo dos deuses imortais.</p><p>Nas primeiras histórias, Eros é geralmente um jovem belo e sério que dá</p><p>aos homens bons presentes. O melhor resumo</p><p>da ideia que os gregos tinham</p><p>a seu respeito vem não de um poeta, mas de um �lósofo, Platão: “O amor –</p><p>Eros – faz sua morada no coração dos homens, mas não em todos, pois onde</p><p>há dureza ele vai embora. Sua maior glória é ser incapaz de fazer o mal ou de</p><p>permitir que o mal seja feito; a força nunca chega perto dele. Pois todos os</p><p>homens o servem por livre e espontânea vontade. E quem é tocado pelo</p><p>Amor não caminha no escuro.”</p><p>Nos primeiros relatos, Eros não é �lho de Afrodite, mas apenas seu</p><p>companheiro eventual. Nos poetas tardios ele é seu �lho e quase sempre um</p><p>menino brincalhão e travesso, ou coisa pior.</p><p>Maldoso é seu coração, mas doce feito mel sua língua,</p><p>Nele não há verdade, o pilantra. Suas brincadeiras são cruéis.</p><p>Tem as mãos pequenas, mas suas �echas voam longe como a morte.</p><p>Pequenina é sua �echa, mas até o céu alcança.</p><p>Não toquem seus presentes traiçoeiros, eles estão mergulhados em</p><p>fogo.</p><p>Eros geralmente era representado com os olhos vendados porque o amor,</p><p>com frequência, é cego. Estava associado a ANTEROS, por vezes considerado</p><p>o vingador do amor não correspondido, por vezes aquele que se opõe ao</p><p>amor; e também a Himeros, o desejo, e a Himeneu, o deus das bodas.</p><p>HEBE era a deusa da juventude, �lha de Zeus e Hera. Algumas vezes aparece</p><p>como portadora do cálice divino; outras, esse cargo é exercido por</p><p>Ganimedes, belo e jovem príncipe troiano raptado e levado para o Olimpo</p><p>pela águia de Zeus. Não existem histórias sobre Hebe exceto a de seu</p><p>casamento com Hércules.</p><p>ÍRIS era a deusa do arco-íris e uma mensageira dos deuses, a única na Ilíada.</p><p>Hermes aparece nesse papel pela primeira vez na Odisseia, mas ele não toma</p><p>o lugar de Íris. Os deuses recorrem ora a um, ora a outro.</p><p>Havia também no Olimpo dois grupos de belas irmãs, as Musas e as</p><p>Graças.</p><p>As GRAÇAS eram três: Aglaia (Esplendor), Eufrosina (Alegria) e Tália (Bom-</p><p>Humor). Elas eram �lhas de Zeus e Eurínome, uma �lha do titã Oceano.</p><p>Com exceção de uma história contada por Homero e Hesíodo, na qual</p><p>Aglaia se casa com Hefesto, as Graças não são tratadas como personalidades</p><p>distintas, mas aparecem sempre juntas, uma tripla encarnação de graça e</p><p>beleza. Os deuses se deleitavam ao vê-las dançar graciosamente ao som da</p><p>lira de Apolo e o homem que elas visitavam era feliz. As Graças “dão viço à</p><p>vida”. Junto com suas companheiras, as Musas, elas eram as “rainhas do</p><p>canto” e, sem elas, festa nenhuma era agradável.</p><p>As MUSAS eram nove, �lhas de Zeus e Mnemósine, a Memória. No início,</p><p>assim como as Graças, não se distinguiam umas das outras. Segundo</p><p>Hesíodo, “Elas têm todas a mesma opinião, seu coração aprecia o canto e seu</p><p>espírito é despreocupado. Feliz o que é amado pelas Musas. Pois, ainda que o</p><p>homem tenha em sua alma tristeza e sofrimento, quando o servo das Musas</p><p>canta, ele esquece na hora os pensamentos sombrios e não se lembra das</p><p>preocupações. É esse o sagrado presente das Musas para os homens.”</p><p>Posteriormente, cada uma tinha sua área especí�ca. Clio era a musa da</p><p>história; Urânia, da astronomia; Melpômene, da tragédia; Talia, da comédia;</p><p>Terpsícore, da dança; Calíope, da poesia épica; Érato, da poesia amorosa;</p><p>Polímnia, do canto para os deuses; Euterpe, da poesia lírica.</p><p>Hesíodo vivia perto do monte Hélicon, uma das montanhas das Musas;</p><p>as outras eram Pierus, na Piéria, onde nasceram; Parnaso; e, naturalmente, o</p><p>Olimpo. Certo dia, as nove apareceram diante de Hesíodo e lhe disseram:</p><p>“Sabemos como dizer coisas falsas que parecem verdadeiras, mas, quando</p><p>queremos, sabemos dizer coisas verdadeiras.” Eram companheiras de Apolo,</p><p>o deus da verdade, assim como das Graças. Segundo Píndaro, a lira é tanto</p><p>delas quanto de Apolo, “a lira dourada à qual escuta o passo, o passo dos</p><p>dançarinos, propriedade tanto de Apolo como das Musas coroadas de</p><p>violetas”. O homem inspirado pelas Musas era muito mais sagrado do que</p><p>qualquer sacerdote.</p><p>À medida que a ideia de Zeus foi se tornando mais imponente, duas</p><p>nobres �guras passaram a se sentar a seu lado no Olimpo: TÊMIS, que</p><p>signi�ca direito ou justiça divina, e DIKÊ, que é a justiça humana. Mas elas</p><p>nunca se tornaram personalidades reais. O mesmo se aplicava a duas</p><p>emoções personi�cadas consideradas por Hesíodo e Homero os mais</p><p>elevados de todos os sentimentos: NÊMESIS, em geral traduzida como a justa</p><p>cólera, e AIDOS, palavra difícil de traduzir, mas de uso comum entre os</p><p>gregos. Ela signi�ca a reverência e a vergonha que impedem os homens de</p><p>agirem mal, mas signi�ca também o sentimento que um homem próspero</p><p>deve ter diante de outro menos afortunado – não propriamente compaixão,</p><p>mas um senso de que a diferença entre ele e o infeliz não é merecida.</p><p>Não parece, porém, que Nêmesis ou Aidos morasse com os deuses.</p><p>Hesíodo diz que, somente quando os homens houvessem se tornado</p><p>inteiramente maus, Nêmesis e Aidos, com seus belos rostos cobertos por</p><p>vestes brancas, deixariam a vasta Terra e partiriam para junto dos imortais.</p><p>De vez em quando, alguns mortais eram trasladados para o Olimpo, mas,</p><p>uma vez lá, desapareciam da literatura. Suas histórias serão contadas mais</p><p>tarde.</p><p>OS DEUSES DAS ÁGUAS</p><p>POSEIDON (Netuno) era o senhor e chefe do mar (o Mediterrâneo) e do Mar</p><p>Amigável (o Ponto Euxino, hoje mar Negro). Os rios subterrâneos também</p><p>eram governados por ele.</p><p>OCEANO, um titã, era senhor do rio Oceano, um grande rio que circundava a</p><p>Terra. Sua esposa era Tétis, também titã. As oceânides, ninfas desse grande</p><p>rio, eram suas �lhas. Os deuses de todos os rios da Terra eram seus �lhos.</p><p>PONTO, que signi�ca mar profundo, era �lho da Mãe Terra e pai de NEREU,</p><p>um deus marítimo bem mais importante do que ele próprio era.</p><p>NEREU era chamado de velho do mar (o Mediterrâneo), “deus suave e</p><p>con�ável” segundo Hesíodo, “de pensamentos justos e bondosos e que</p><p>nunca mente”. Sua esposa era Dóris, uma �lha de Oceano. Eles tinham</p><p>cinquenta lindas �lhas, as ninfas do mar, chamadas NEREIDAS por causa do</p><p>nome de seu pai; uma delas, TÉTIS, era a mãe de Aquiles. Outra era</p><p>ANFITRITE, esposa de Poseidon.</p><p>TRITÃO era o trombeteiro do mar. Sua trombeta era uma enorme concha. Ele</p><p>era �lho de Poseidon e An�trite.</p><p>PROTEU era, às vezes, descrito como �lho de Poseidon, outras era mostrado</p><p>como seu ajudante. Tinha tanto o poder de prever o futuro como o de</p><p>mudar de forma.</p><p>As NÁIADES também eram ninfas da água. Viviam em riachos, nascentes e</p><p>fontes.</p><p>LEUCOTEIA e seu �lho PALÊMON, antes mortais, tornaram-se divindades do</p><p>mar, assim como GLAUCO, mas nenhum dos três era importante.</p><p>O MUNDO SUBTERRÂNEO</p><p>O mundo dos mortos era governado por um dos doze grandes deuses do</p><p>Olimpo, Hades ou Plutão, e por sua rainha, Perséfone. Esse reino muitas</p><p>vezes é chamado por seu nome, o Hades. Segundo a Ilíada, ele �ca debaixo</p><p>dos lugares sagrados da Terra. Na Odisseia, o caminho para lá leva à borda</p><p>do mundo, do outro lado do oceano. Para os poetas tardios, existem várias</p><p>entradas na Terra que conduzem até lá, por meio de cavernas e junto a lagos</p><p>profundos.</p><p>Tártaro e Érebo são, por vezes, duas divisões do mundo inferior, sendo o</p><p>Tártaro a mais profunda, onde �cam aprisionados os deuses antigos; o Érebo</p><p>era por onde os mortos passavam logo depois de morrer. Muitas vezes,</p><p>porém, não existe distinção entre os dois, e ambos, em especial o Tártaro,</p><p>são usados para designar toda a região subterrânea.</p><p>Em Homero, o mundo inferior é vago, um lugar obscuro habitado por</p><p>sombras. Nada é real ali. A existência dos fantasmas, se é que pode ser assim</p><p>chamada, é como um sonho infeliz. Os poetas mais tardios de�nem o</p><p>mundo dos mortos, de modo mais claro, como o lugar em que os maus são</p><p>punidos, e os bons, recompensados. No poeta romano Virgílio, essa ideia é</p><p>apresentada com muitos detalhes como em nenhum poeta grego. Todos os</p><p>tormentos de um grupo e a alegria do outro são longamente descritos.</p><p>Virgílio também é o único poeta a fornecer uma geogra�a clara do mundo</p><p>inferior. O caminho até lá leva ao ponto em que o Aqueronte, o rio das</p><p>tristezas, desagua no Cócito,</p><p>o rio da lamentação. Um velho barqueiro</p><p>chamado Caronte conduz as almas dos mortos até a margem oposta, onde</p><p>�ca o portão inquebrável do Tártaro (nome preferido por Virgílio). Caronte</p><p>só aceita em seu barco as almas daqueles sobre cujos lábios foi deixado, ao</p><p>morrerem, o dinheiro da passagem e que foram devidamente sepultados.</p><p>Sentado em frente ao portão para guardá-lo está CÉRBERO, cão de três</p><p>cabeças e cauda de dragão, que deixa todos os espíritos entrarem, mas não</p><p>deixa nenhum sair. Ao chegar, cada um é conduzido diante de três juízes –</p><p>Radamanto, Minos e Éaco – que julgam e despacham os maus para o</p><p>tormento eterno e os bons para um lugar abençoado chamado Campos</p><p>Elíseos.</p><p>Além do Aqueronte e do Cócito, três outros rios separam o mundo</p><p>inferior do superior: Flegetonte, o rio de fogo; Estige, o rio do juramento</p><p>inquebrantável que os deuses prestam; e o Lete, o rio do esquecimento.</p><p>Em algum lugar dessa vastidão �ca o palácio de Plutão, mas, além de</p><p>dizer que ele tem muitos portões e é ocupado por incontáveis convidados,</p><p>nenhum autor o descreve. Em volta dele �cam terras desoladas, sombrias e</p><p>gélidas, e campos de asfódelos, �ores supostamente estranhas, pálidas e</p><p>espectrais. Não sabemos mais nada sobre ele. Os poetas não gostavam de se</p><p>demorar nesse lugar escondido e soturno.</p><p>As ERÍNIAS (FÚRIAS) são situadas por Virgílio no mundo inferior, onde</p><p>punem os maus. Os poetas gregos as viam principalmente como</p><p>perseguidoras dos pecadores na Terra. Elas eram inexoráveis, mas justas.</p><p>Heráclito diz: “Nem mesmo o Sol transgredirá sua órbita, sem ser apanhado</p><p>pelas Erínias, que ministram a justiça.” Elas em geral eram representadas</p><p>como sendo três: Tisífone, Megera e Alecto.</p><p>SONO e seu irmão MORTE viviam no mundo subterrâneo. Os sonhos também</p><p>subiam de lá até os homens. Eles cruzavam dois portões, um de chifre, pelo</p><p>qual passavam os sonhos verdadeiros, e outro de mar�m, para os falsos.</p><p>OS DEUSES MENORES DA TERRA</p><p>A Terra em si era chamada de Toda-Mãe, mas não se tratava de uma</p><p>divindade. Ela nunca foi separada do solo nem personi�cada. A deusa do</p><p>trigo, DEMÉTER (CERES), uma �lha de Cronos e Reia, e o deus da vinha,</p><p>DIONISO, também chamado BACO, eram as divindades supremas da Terra e</p><p>tinham grande importância na mitologia grega e romana. Suas histórias</p><p>poderão ser encontradas no próximo capítulo. Em comparação com os dois,</p><p>as outras divindades que viviam no mundo tinham pouca importância.</p><p>A principal delas era PÃ. Ele era �lho de Hermes; em sua homenagem, o</p><p>hino homérico o retrata como um deus ruidoso e alegre; mas era também,</p><p>em parte, animal e tinha chifres de bode e patas de bode no lugar dos pés.</p><p>Era o deus dos rebanhos de cabras, o deus dos pastores e também o alegre</p><p>companheiro de dança das ninfas das matas. Todos os lugares selvagens</p><p>eram seu lar – bosques, �orestas e montanhas –, mas, acima de todos, ele</p><p>amava a Arcádia, onde nascera. Pã era um músico sem igual. Em suas �autas</p><p>de junco, tocava melodias tão encantadoras quanto o canto do rouxinol.</p><p>Estava sempre apaixonado por alguma ninfa, mas era sempre rejeitado por</p><p>causa da sua feiura.</p><p>Ruídos que o viajante assustado ouvia fora da cidade, à noite, eram</p><p>supostamente produzidos por Pã, sendo fácil entender de onde veio a</p><p>palavra “pânico”.</p><p>SILENO era, às vezes, descrito como �lho de Pã, outras, como seu irmão, um</p><p>�lho de Hermes. Era um velhote gordo e jovial que geralmente andava</p><p>montado num jumento por estar embriagado demais para ir a pé. Além de</p><p>Pã, é associado a Baco: ensinou o deus do vinho quando jovem e, como</p><p>demonstra sua eterna embriaguez, após ser seu professor, tornou-se um de</p><p>seus devotos seguidores.</p><p>Além desses deuses da Terra, havia também uma dupla de irmãos muito</p><p>famosa e muito apreciada, CASTOR e PÓLUX (POLIDEUCES), os quais, na maior</p><p>parte dos relatos, foram descritos como vivendo metade do seu tempo na</p><p>Terra e a outra metade no céu.</p><p>Eram �lhos de Leda e, em geral representados como deuses, são os</p><p>protetores especiais dos marinheiros,</p><p>Salvadores de navios velozes quando sopram ventos de tempestade</p><p>Nos mares inclementes.</p><p>Eles também tinham o poder de salvar pessoas em batalha. Eram</p><p>especialmente homenageados em Roma, onde eram venerados como</p><p>Os grandes irmãos gêmeos aos quais todos os dórios rezam.</p><p>Mas os relatos a respeito deles são contraditórios. Às vezes, apenas Pólux</p><p>é considerado divino, enquanto Castor é um mortal que conquistou uma</p><p>espécie de imortalidade parcial por causa do amor do irmão.</p><p>LEDA era a esposa do rei Tíndaro, de Esparta, e a história que se conta é</p><p>que ela lhe deu dois �lhos mortais, Castor e Clitemnestra, esposa de</p><p>Agamêmnon; e a Zeus, que a visitou na forma de um cisne, ela deu dois</p><p>outros �lhos, estes imortais, Pólux e Helena, a heroína de Troia. Apesar</p><p>disso, os dois irmãos, Castor e Pólux, eram muitas vezes chamados de “�lhos</p><p>de Zeus”; na verdade, o nome grego pelo qual os dois são mais conhecidos –</p><p>dioscouri (dióscuros) – signi�ca “os rapazes de Zeus”. Por outro lado, eles</p><p>também eram chamados de “�lhos de Tíndaro”, os tyndaridae.</p><p>Os dois sempre são representados como tendo vivido pouco antes da</p><p>Guerra de Troia, contemporâneos de Teseu, Jasão e Atalanta. Participaram</p><p>da caçada ao javali calidônio, saíram em busca do velocino de ouro e</p><p>resgataram Helena quando Teseu a raptou. Mas, em todas essas histórias,</p><p>eles desempenham um papel pouco importante, exceto no relato sobre a</p><p>morte de Castor, quando Pólux demonstrou sua devoção fraterna.</p><p>Os dois foram, não se sabe por quê, até as terras de uns proprietários de</p><p>gado, Idas e Linceu. Lá, segundo Píndaro, Idas, por algum motivo zangado</p><p>em relação às suas reses, apunhalou e matou Castor. Outros autores dizem</p><p>que a causa da desavença foram as duas �lhas do rei daquelas terras,</p><p>Leucipo. Pólux apunhalou Linceu e Zeus atingiu Idas com seu raio. Mas</p><p>Castor estava morto e Pólux �cou inconsolável. Rezou para morrer também</p><p>e Zeus, com pena, permitiu que ele dividisse a vida com o irmão, de modo a</p><p>viver</p><p>Metade do tempo debaixo da terra e metade</p><p>Nas moradas de ouro do céu.</p><p>Segundo essa versão, os dois nunca mais tornaram a se separar. Num dia</p><p>viviam no Hades, no outro, no Olimpo, sempre juntos.</p><p>O autor grego tardio Luciano dá outra versão, na qual seus locais de</p><p>morada são o céu e a Terra, e, quando Pólux vai para um, Castor vai para o</p><p>outro, de modo que os dois nunca se encontram. Na pequena sátira de</p><p>Luciano, Apolo pergunta a Hermes:</p><p>– Me diga, por que nunca vemos Castor e Pólux ao mesmo tempo?</p><p>– Bem – responde Hermes –, eles se gostam tanto que, quando o destino</p><p>decretou que um deveria morrer e apenas um se tornar imortal, eles</p><p>decidiram dividir a imortalidade.</p><p>– Não muito sensato, Hermes. Que atividade decente eles podem ter</p><p>assim? Eu prevejo o futuro; Esculápio cura doenças; você é um mensageiro</p><p>dos deuses; mas e esses dois? Vão passar todo seu tempo sem fazer nada?</p><p>– Certamente que não. Estão a mando de Poseidon. O dever deles é</p><p>salvar qualquer navio em apuros.</p><p>– Ah, agora você está me dizendo alguma coisa. Encanta-me que eles se</p><p>dediquem a uma atividade tão boa.</p><p>Duas estrelas supostamente lhes pertenciam: os Gêmeos.</p><p>Eram sempre representados cavalgando esplêndidos cavalos brancos</p><p>como a neve, mas Homero distingue Castor de Pólux como sendo o melhor</p><p>cavaleiro. Ele chama os dois de</p><p>Castor, domador de cavalos, Polideuces, bom boxeador.</p><p>Os SILENOS eram criaturas parte homem, parte cavalo. Andavam sobre duas</p><p>pernas, não sobre quatro patas, mas com frequência tinham cascos de cavalo</p><p>no lugar dos pés, ocasionalmente orelhas de cavalo e sempre cauda de</p><p>cavalo. Também existem histórias a seu respeito, mas eles em geral são vistos</p><p>em vasos gregos.</p><p>Os SÁTIROS, como Pã, eram homens-bode e, como ele, tinham sua morada</p><p>nos lugares selvagens da Terra.</p><p>Em contraste com esses deuses feios e inumanos, as deusas das matas</p><p>tinham todas a linda forma de jovens: as ORÍADES, ninfas das montanhas, e</p><p>as DRÍADES, por vezes chamadas HAMADRÍADES, ninfas das árvores</p>Mas não pôde resistir a Tétis.Teve problemas com Hera, que adivinhou, como de costume, a motivaçãodo marido. Zeus por �m precisou dizer que iria lhe bater se não parasse defalar. Hera então se calou, mas continuou a pensar em como poderia ajudaros gregos e passar por cima de Zeus.O plano engendrado por Zeus era simples. Ele sabia que, sem Aquiles, osgregos eram inferiores aos troianos e mandou um sonho mentiroso paraAgamêmnon prometendo-lhe a vitória se ele atacasse. Enquanto Aquilescontinuava em sua tenda, seguiu-se uma batalha violenta, a mais árduatravada até então. Na muralha de Troia, o velho rei Príamo e os outrosanciãos, muito experientes em relação à guerra, observavam o combate.Helena, o motivo de todo aquele sofrimento e morte, foi ao encontro deles,mas, ao vê-la, eles não conseguiram sentir culpa alguma. “Os homensprecisam lutar por mulheres como ela”, disseram uns para os outros, “poisseu rosto parece o de um espírito imortal.” Helena �cou ao lado deles e foilhes dizendo o nome deste ou daquele herói grego, até que, para espanto doshomens, a batalha cessou. Os exércitos recuaram, cada um para um lado, e,no espaço entre eles, Páris e Menelau �caram frente a frente. Obviamentefora decidido que os dois maiores interessados decidissem a disputa entre si.Páris atacou primeiro, mas Menelau aparou a lança veloz com seuescudo e atirou a sua. A arma rasgou a túnica de Páris, mas sem o ferir.Menelau sacou a espada, agora sua única arma, mas, ao fazê-lo, ela lhe caiudas mãos, partida. Destemido, ainda que desarmado, ele partiu para cima dePáris, agarrou-o pela crista do elmo e o tirou do chão. Tê-lo-ia arrastado atéos gregos, vitorioso, se Afrodite não tivesse intervindo. A deusa arrancou acorreia que prendia o elmo, fazendo-o se soltar na mão de Menelau. Quantoa Páris, que não tinha combatido a não ser para atirar a lança, a deusa oenvolveu numa nuvem e o levou de volta para Troia.Enfurecido, Menelau percorreu as �leiras de troianos em busca de Páris,e nenhum homem o teria ajudado, pois todos detestavam Páris, mas estetinha sumido e ninguém sabia como nem para onde. Agamêmnon então sedirigiu aos dois exércitos, declarou Menelau vencedor e ordenou que ostroianos devolvessem Helena. Era justo e os troianos teriam concordado nãofosse a intervenção de Palas Atena, a mando de Hera. Hera estava decidida anão deixar a guerra acabar antes de Troia estar em ruínas. Palas Atena entãodesceu até o campo de batalha e convenceu o coração tolo do troianoPândaro a desrespeitar a trégua e disparar uma �echa em Menelau. Eleassim o fez e o feriu, só de leve, mas os gregos, enfurecidos com a traição, sevoltaram contra os troianos e o combate recomeçou. Terror, Destruição eCon�ito, cuja fúria nunca arrefece, todos amigos do assassino deus daguerra, estavam lá para incentivar os homens a massacrar uns aos outros.Ouviram-se então o som dos gemidos dos feridos e o som do triunfo dosmatadores e a terra se encharcou de sangue.Do lado grego, agora sem Aquiles, os dois maiores guerreiros foram Ajaxe Diomedes. Eles combateram gloriosamente naquele dia e deixaram diantede si muitos troianos abatidos. O melhor e mais corajoso depois de Heitor, opríncipe Eneias, quase morreu pelas mãos de Diomedes. Eneias tinhasangue mais do que real: era �lho da própria Afrodite; quando Diomedes oferiu, a deusa desceu depressa para o campo de batalha de modo a salvá-lo.Tomou-o em seus braços macios, mas Diomedes, sabendo que ela era umadeusa covarde, e não uma daquelas que, como Palas Atena, são exímias nasartes do combate, pulou para cima dela e a feriu na mão. Afrodite gritou,deixou Eneias cair e, chorando de dor, voltou para o Olimpo, onde Zeus,sorrindo ao ver a deusa amante do riso em prantos, ordenou-lhe que �casselonge do combate e lembrasse que a sua arte era a arte do amor, não a daguerra. Apesar de a mãe não ter conseguido ajudá-lo, Eneias não morreu.Apolo o envolveu numa nuvem e o levou para a sagrada Pérgamo, o lugarsanto de Troia, onde Ártemis o curou da ferida.Mas a raiva de Diomedes não cedeu e ele seguiu fazendo estragos entreos troianos até se ver cara a cara com Heitor. Então, para sua consternação,ele também viu Ares. Todo ensanguentado, o assassino deus da guerraestava lutando ao lado de Heitor. Ao ver isso, Diomedes estremeceu e gritoupara os gregos recuarem, só que devagar, e com o rosto virado para ostroianos. Hera então se enfureceu. Conduziu seus cavalos depressa até oOlimpo e perguntou a Zeus se podia expulsar do campo de batalha Ares,aquele �agelo dos homens. Zeus, que gostava tão pouco de Ares quantoHera, embora fosse seu �lho, respondeu sem hesitar que sim. Hera desceudepressa para se postar ao lado de Diomedes e instou-o a atacar o terríveldeus sem temor. O herói, ao ouvir isso, sentiu o coração se encher de alegria.Correu para cima de Ares e arremessou sua lança. Palas Atena fez a armaacertar o alvo e ela se cravou no corpo de Ares. O deus da guerra urrou tãoalto quanto 10 mil homens em combate, e esse som terrível fez o exércitointeiro, tanto gregos como troianos, tremer.Ares, na verdade um truculento incapaz de suportar o que ele própriocausava a incontáveis legiões de humanos, subiu correndo até Zeus noOlimpo para se queixar amargurado da violência de Palas Atena. Zeus,porém, o encarou com severidade, disse-lhe que ele era tão insuportávelquanto a mãe e o mandou parar de reclamar. Sem Ares, entretanto, ostroianos foram obrigados a recuar. Diante dessa crise, um dos irmãos deHeitor, que soube detectar a vontade divina, instou o herói troiano a ir bemdepressa até a cidade dizer à rainha, sua mãe, para oferecer a Palas Atena osmais belos trajes que possuísse e implorar a misericórdia da deusa. Heitorpercebeu a sabedoria desse conselho e atravessou correndo os portões dopalácio, onde sua mãe fez tudo conforme ele pediu. A rainha escolheu umtraje tão esplêndido que brilhava como uma estrela e, ao pousá-lo sobre osjoelhos da deusa, pediu: “Palas Atena, senhora, poupe a cidade e as esposasdos troianos e as crianças.” Mas a deusa negou o pedido.Quando voltou ao combate, Heitor virou-se para ver novamente, talvezpela última vez, a esposa que tanto amava, Andrômaca, e o �lho, Astíanax.Encontrou-a na muralha, para onde tinha ido, aterrorizada, observar oshomens em combate ao saber que os troianos estavam batendo em retirada.Com ela estava uma criada que segurava o menino pequeno. Heitor sorriu eos �tou em silêncio, mas Andrômaca segurou sua mão e chorou. “Meuquerido senhor”, disse ela, “você que é para mim pai, mãe e irmão além demarido, �que aqui conosco. Não faça de mim viúva nem do seu �lho órfão.”Heitor recusou com toda a delicadeza o seu pedido. Não podia ser umcovarde, falou. Cabia a ele combater sempre à frente do exército. Mas queAndrômaca soubesse que ele jamais esqueceria qual seria a dor dela quandoele morresse. Era esse o pensamento que o atormentava mais do que tudo,mais do que suas muitas outras preocupações. Ele se virou para ir embora,mas antes estendeu os braços para o �lho. Apavorado, o menino recuou,com medo do elmo e de sua assustadora crista a balançar. Rindo, Heitortirou o elmo da cabeça. Então, pegando o �lho no colo, acariciou-o e rogou:“Ó Zeus, que no futuro os homens possam dizer do meu �lho, quando elevoltar do combate: ‘Ele é muito maior do que foi seu pai!’”Ele então entregou o menino à esposa e Andrômaca o pegou, sorrindo,mas também chorando. E Heitor teve pena dela, tocou-a com carinho e lhedisse: “Querida, não �que tão triste. O destino precisa acontecer, mas,contrariando meu destino, homem algum poderá me matar.” Então,pegando o elmo de volta, ele os deixou e ela foi para casa olhando muitasvezes na sua direção e chorando copiosamente.De volta ao campo de batalha, Heitor estava ansioso para lutar e durantealgum tempo teve mais sorte. Zeus agora tinha se lembrado
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